terça-feira, 12 de julho de 2016

O QUE DÓI

           O  QUE  DÓI



       A polêmica sobre certo gênero de música está lançada. A coreografia também está em questão. Sons, palavras, gestos, são discutidos, imitados e adotados. Mas, sons, palavras e gestos, vão produzindo uma contaminação própria da nossa época: a lei do consumo. A zoologia entra em voga e, vorazmente, consomem-se tigres, cachorras, potrancas, sem nenhum critério de higiene sanitária. Mas não venho para defender os animais, estes tem muitos protetores, e sim as crianças e adolescentes, enquanto especialista em saúde psíquica deste período em que o ser humano opera seu desenvolvimento.
       Começam a surgir, em tempo, incômodos com relação ao gestual e aos conceitos contidos em músicas que andam na moda. Aparecem os primeiros sinais de uma certa inquietação movida por posições feministas, anti-machistas, conservadoras, etc., etc., etc. Por outro lado, posições  pseudo-libertárias  bradam até pelos sintomas sado-masoquistas, como se fossem saudáveis. E ainda, a turma que está lucrando, financeiramente, também começa a se preocupar, pensando que querem “queimar” este filão, e defendem-se dizendo que são boatos o que circula sobre sexo e violência. Boatos aliás, que nascem após nove meses, crianças filhas de crianças de 15, 14, e até 12 anos, geradas em cantos escuros ou  em cantos claros, explicitamente, na “dança das cadeiras” de bailes super-lotados.
      Em zona “nobre” da cidade, adolescentes ainda muito jovens bebem, fumam, tomam ecstasy, cheiram lança. E assistem a cenas explícitas de violência quando um pobre garoto medroso, mas cheio de músculos deformados pelo uso de esteróides anabolizantes, as bombas, decide, por motivo fútil, eliminar um outro pobre garoto distraído ou ingênuo nas regras espartanas da “night” carioca. O sangue é obrigatório nestas cenas de violência explícita, que deixam lesões, algumas irreversíveis, e, por vezes, trazem a morte para a festa. Há várias outras modalidades de violência praticadas nestas festas. Entre elas, gostaria de destacar aquela que é executada quando um desses musculosos decide “ficar” com uma garota e ela não aceita: ele lhe dá um soco na cara. O que deveria ser uma proposta de prazer é, instantaneamente, transformada em violência.
      Talvez alguns pensem que estou dramatizando, exagerando, que seja de alguma seita religiosa contra a diversão e o prazer, ou que estou fazendo uma maldade com os pais e os filhos, os primeiros porque não sabiam destas coisas e ficaram horrorizados, e os segundos porque vão ser prejudicados não podendo mais sair no próximo sábado. Não é, em absoluto, isto que pretendo. Faço parte desta sociedade, e, de alguma maneira, sinto-me também responsável pelo que está acontecendo e pelo que penso vir a acontecer. No entanto, quando ouvimos o noticiário, ou o relato de alguém, temos  tendência a sentir como muito distante de nós, a sentir estranheza, pois afinal se não aconteceu com um de nossos filhos, estes fatos não conseguem nos atingir por mais de alguns minutos, tempo suficiente para se deletar mais uma das inúmeras informações que sofremos por dia . São tantos os casos, tamanha a freqüência, inúmeras as modalidades, que parece se tornar comum, e, aqui está um dos problemas que gostaria de abordar: já nos acostumamos. Não dói mais. A banalização da violência e do sexo é a maior das violências que está a nos destruir. E banalizamos.  
      Caminhamos a passos largos para um caos social onde não haverá mais regras, não haverá mais sentimentos, não haverá mais “humanicidade” – neologismo que arrisco para definir um certo sentimento de pertinência ao que há de mais humano em cada um de nós, e que nos une a  quase todos. E neste estado de não-direito, tudo pode. A perversão é a marca mais prestigiada das relações que deveriam ser afetivas e se tornaram descartáveis. Os modelos identificatórios são os ditados pela mídia sob as leis do consumo descartável. É nesta perspectiva que se insere a valorização da aquisição de cada nova “dancinha”, percorrendo em pouco tempo um caminho que, partindo do simbólico (há alguns anos), foi se animalizando em uma concretude feia, para assim reinar hoje, insistindo em dominar tudo. A sutileza que alimentava o imaginário não tem mais lugar na grotesca cena erótica atual. Com que realismo crianças dançam e cantam relações sexuais perversas em festinhas infantis. E com que realismo, adolescentes, quase crianças, dançam nas cadeiras relações sexuais ao vivo e em público. Uns e outros patrocinados pela permissividade que se instalou nos quatro cantos da nossa malha social. Pais tem medo de seus filhos, mesmo quando eles tem apenas sete anos de idade. Temem dizer não. Saímos da época que criança não existia como gente, para a era da tirania infantil. As crianças passaram a dar as ordens, e, na sua imaturidade, quantas vezes se desorganizam mentalmente porque esta tarefa está acima de suas possibilidades. A psicanálise contribuiu para que descobríssemos a riqueza e importância da infância, mas também contribuiu para que se vulgarizasse, erroneamente, o conceito de trauma. Exageros foram cometidos em nome de um “psicologismo verborreico”, que tem nos levado à perda do exercício dos limites nas relações pais-filhos, professores-alunos, adultos-crianças, à perda do saudável “não pode”. Estabelecer limites para uma criança é respeitá-la e amá-la, porque os limites são estruturantes para o desenvolvimento de sua mente, capacitando-a a exercer a liberdade, de maneira responsável. Dar limite não é castrar, assim como dar liberdade não é ser permissivo. Também o adolescente necessita de limites para contê-lo em seus impulsos onipotentes, próprios desta fase. Os adolescentes de hoje fazem parte da primeira geração anti-trauma, quando todo o sistema educacional foi  revolucionado, modificando papéis exercidos dentro da família. Esta tomou cara nova, aliás, caras novas chegando a atingir a marca de 104 formas atuais de família, segundo pesquisa recente.  Filhos do divórcio, da sexualidade liberada, da psicanálise, de uma mãe profissional, do computador, eles são usuários de drogas em progressiva curva ascendente. Drogas usadas pelos seus pais e drogas novas, ainda pouco conhecidas nos seus efeitos e lesões. Valores, quais? Bandeiras, quais?  Projetos, quais?  Desejos, quais? São portadores de dois vírus: o vírus da droga e o vírus do desafeto. O primeiro é uma virose social de grandes proporções e crescimento descontrolado, o segundo uma virose familiar também avassaladora, ambas epidemias que estão destruindo o presente e o futuro de todos. Se estes dois vírus são hoje duas epidemias, em suas diversas formas, a violência, doença contagiosa e degenerativa que as permeia, já é endêmica.
      Dirão alguns, e o salário mínimo, e a reforma agrária, e a reforma tributária, e a lei de responsabilidade fiscal, e a mortalidade infantil, e a política de saúde mental infantil, agora com as vítimas do vírus Zica, e a corrupção, e a falta de educação no Congresso, e a falta de escola, e a fome, e a miséria? E a miséria. Aprendemos a gritar nestes últimos anos. A denúncia ocupa lugar de destaque na mídia, o que é muito importante para um povo que teve sua boca, arbitrariamente, calada por um período. Denunciamos, denunciamos, e denunciamos, mas não nos responsabilizamos. No entanto, somos todos responsáveis pelo estado social que vivemos. Nossos governantes não tem dado conta destas coisas por razões várias que, de tão extensas, não caberiam aqui. E, como eles não fazem nada ou quase nada, temos a desculpa de que nada podemos fazer. Aqui reside um grande erro onde nos escondemos. Continuamos a nos comportar como se  continuássemos  em exceção,  a  ter um árbitro diante do qual somos impotentes. Perpetuamos uma situação infantilizada de dependermos de um poder maior, e nos fazemos impotentes. Mas, a mortalidade infantil tem mudado sua marca pela ação da pastoral da criança, sem esperar pelas verbas. A miséria tem sido combatida com a farinha nutritiva do cuidado e da dedicação de alguns que vem se multiplicando. Portanto, podemos!
      Se a miséria social é vergonhosa e pode matar uma criança, a miséria psicológica é perversa e mata uma sociedade. Combatemos o trabalho infantil dos pequenos carvoeiros, mas nem sequer identificamos a exploração infantil pela mídia. As pequenas prostitutas nos horrorizam (por alguns minutos...), mas não identificamos o abuso sexual praticado por adultos que se divertem a olhar meninas se contorcendo e latindo. Este é o mal maior que nos aflige. A miséria psicológica não depende da situação financeira, nem mesmo da maior das pobrezas sociais. A miséria psicológica nasce do descompromisso com o outro, do egoísmo, do uso descartável do outro, da visão curta que não reflete, da desvalorização do sentir, do vazio afetivo, da banalização das dores, da concretude que matou a fantasia, da perversão com o outro para se dar bem. Crianças do carvão ou da televisão, adolescentes dos bailes ou das discotecas caras, descuidados e perdidos de seu rumo, estão unidos pela miséria de uma sociedade que não sabe proteger seus filhos, não cuida e nem se responsabiliza por eles, que não sabe ser pai e mãe, uma  sociedade  filicida.

      Dói. Dói muito.

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