sexta-feira, 13 de setembro de 2013

VIOLÊNCIA DA IMPUNIDADE: MAL-ESTAR OU ORGULHO NACIONAL?



VIOLÊNCIA DA IMPUNIDADE:
MAL-ESTAR    OU    ORGULHO    NACIONAL?
                                                                

                                                                     Ana Maria Iencarelli *


                   Reconhecemos com certa facilidade as imagens de exploração de mão de obra de crianças e adolescentes nos pequenos carvoeiros do serrado, ou nas meninas que vendem o corpo na orla de nossas cidades litorâneas, nas crianças dos sinais de trânsito vendendo balinhas açucaradas ou bolinhas acrobáticas. Mas, numa segunda versão, não enxergamos o trabalho de crianças e adolescentes no tráfico, nas passarelas, na publicidade, ou nas novelas. Quando na nossa sala, vemos na telinha crianças muito pequenas que nos emocionam chorando, se comunicando com a mãe que já morreu ou sendo intimidadas e assombradas por uma avó má, por exemplo, esquecemos que são crianças trabalhando, e quanto esta brilhante atuação vai custar, psicologicamente, para aquelas crianças.  
                   Por outro lado, como explicar, por exemplo, que uma garota de 14 anos, matriculada na 4ª série só consiga ler as letras das palavras sem juntá-las nem mesmo em fonemas, e que um menino de 13 anos, da 3ª série, não saiba ler ou fazer conta de diminuir por escrito, e se saia tão bem organizando e contabilizando o comércio de drogas?  O que aconteceu com aquela estatística que mostrava cerca de 40% de repetência na 1ª série? O ensino melhorou? Não. Hoje não é permitida reprovação, que foi substituída pela aprovação progressiva, “resolvendo” assim os tais 40%. Aliás, a matrícula da criança (em alguns casos apenas o carnê de vacinação) é moeda em bolsas sociais. A aprendizagem, não entra em questão, deixando claro assim, a desvalorização e insinuada inutilidade da escolaridade e da educação pelo próprio Estado. Mas ter os filhos matriculados se tornou rentável, assim como ter um filho a cada ano aumenta a renda de uma mãe desvalida. Parece-me que há aqui um indício de uma perversão social em que a criança passa a ser produto a ser vendido desde que nasce.
                   A entrada precocíssima no mercado de trabalho por todas estas vias indica a falência e o descrédito na proposta escolar e, mais tarde, nas profissões regulares e regulamentadas. É esperado que a Escola tenha o compromisso com a formação do caráter e com a transmissão de cultura e de conhecimento geral, enfim, a responsabilidade pelo processo de humanização. Em lugar disso, e do aprender a estudar, a se organizar, a prever usando o raciocínio lógico, observamos uma crescente tendência a se produzir neste período uma escola de violência psicológica que interrompe o desenvolvimento psicológico saudável, com a banalização da agressividade, a disseminação da prática do bullying, o culto e o cultivo da impunidade, presente no discurso social, através de uma espécie de adoração contemplativa. As leis, belíssimas, a de Responsabilidade Fiscal ou o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o seu cumprimento, esquecido ou negligenciado. Ficamos intrigados quando vemos que Magistrados e, mais recentemente, Ministros, assaltados ou recebidos à bala, não prestam queixa, dizendo que “isto é normal nas grandes cidades”. Se não sabemos por que isto acontece, temos a forte impressão de que as nossas Instituições não inspiram credibilidade suficiente para o exercício da cidadania nem mesmo para as pessoas que fazem parte e são pagas por estas Instituições. Para onde foi a autoridade?
                   Não gostaria de fazer deste precioso momento uma denúncia. Tenho a impressão que, em momentos de barbárie contra nossas crianças, temos gritado, temos vestido camisetas em atos numerosos, temos difundido e-mails, mas não temos sido ouvidos. Gostaria de acrescentar mais uma reflexão conseqüente, juntando-me, de novo, às vozes desta luta. Se preciso for, repetirei, incansavelmente, por mais um milhão de vezes até sermos ouvidos.
                   Observamos que todo o progresso de conhecimento do Homem não tem se convertido em progresso humano, mas sim em aumento de poder. O poder destrutivo está no nosso comportamento cotidiano. A premência da satisfação dos desejos individuais é a ordem que rege. A incapacidade de empatizar é uma espécie de lei básica que patrocina este comportamento egoísta vigente. Afinal, se colocar no lugar do outro tem sido considerado bobeira de quem quer arrumar problema. Em seu artigo, O Mal-estar na Civilização, podemos acompanhar o pensamento de Freud com a observação do que está se passando conosco. O desenvolvimento humano é resultante da boa satisfação do princípio do prazer submetido ao princípio da realidade, sob a regência do nosso superego. Nossa condição de humanização está submetida por sua vez a união com os outros humanos, a integração a uma comunidade humana ou adaptação a ela. O processo de desenvolvimento cultural, como o processo individual, nos impõe restrições. As regras de convivência e as leis fazem parte deste superego comunal. Sabemos que, se por um lado a premência da felicidade buscada pelo indivíduo, esbarra na interdição do grupo, o sentimento de frustração  advindo pode fazer com que este indivíduo rompa esta lei imposta e realize seu desejo. Espera-se que a desaprovação da comunidade e a punição por este ato, conduza aquele indivíduo à tomada de consciência e conseqüente formação de culpa e remorso. Ou seja, quando a autoridade interna (superego individual) falha, é a autoridade externa (superego da comunidade) que entra em cena. Disto depende o movimento  civilizatório, porquanto este movimento prevê todo o desenvolvimento do pensamento reflexivo que  produz abstração, nosso diferencial. Mas, como isto está ocorrendo em nossa sociedade? 
                   Da mesma maneira que já sabemos que a criança ouve mais do que lhe é dito, que ela é antenada, que ela tem em curso um processo identificatório onde os protagonistas são aquelas pessoas que lhe são especiais, sabemos que nossas crianças estão vivendo toda esta barbárie social: o menino que é estraçalhado pendurado pelo cinto de segurança, os 40 votos secretos, os 40 mensaleiros, a barbárie tributária, a do sistema de juros, a da educação, a da saúde, a da previdência, a empregada confundida com uma prostituta, o índio em chamas, a barbárie das drogas, etc., etc., etc. Podemos pensar que criança não entende destas coisas e, portanto, não é atingida por elas. Mas também sabemos que o que habita a mente de uma mãe e de um pai um tempo depois, é captado pela criança ainda bebê em forma de impressão e sensação agradável ou desagradável e assustadora. Além disso, pensar que só teve sangue na porta do carro é também uma tentativa de negação do sangue de milhares de crianças que escrevem esta nossa história de miséria violenta pela perversão social.
                   A violência narcísica, nova forma, é praticada contra nossas crianças quando são expostas precocemente para fins de venda. O seu corpo  se torna foco de olhares apreciativos e rentáveis ou depreciativos pelo critério atual de beleza da imagem visual. O sucesso a qualquer preço é o que importa porque este se tornou um sinal de “felicidade”. Assim, adultos acreditam que de “book” de suas filhas nas mãos a vida delas, e deles, claro, estará resolvida mesmo quando ela tem que ir para o Japão aos 14 anos. A competição pela disputa de um papel numa novela faz com que adultos sigam, religiosamente, instruções e horários de cursos preparatórios para testes, sem data de término. Poderíamos incluir aqui também a obrigação aprisionante do menino de se tornar um “Ronaldinho” nas escolinhas de futebol, vigiado de perto, geralmente, por uma mãe que deseja este sucesso para o filho, sucesso que virá acompanhado de uma mais garantida aposentadoria para ela. Modelo e atriz, e jogador de futebol, são os ideais de nossas crianças, alimentados pela comunidade.
                   A guerra urbana também tem violentado nossas crianças. Cada cadáver rompe a barreira do imaginário de milhares de crianças e instala uma concretude incompatível com a necessidade, própria e indispensável da infância, de fantasiar: a realidade brutalizada ocupa todo o espaço mental com imagens horrendas de morte violenta. É preciso se desviar destes corpos a caminho da escola, logo pela manhã, e fazer sumir o medo que ficou preso, sabendo que no dia seguinte tudo se repete. Invadir a mente com imagens violentas concretas danifica de maneira gravíssima a possibilidade de ter saúde mental e, conseqüentemente, social.
                   Também praticamos violência contra a criança quando assistimos o nascimento de cerca de 500 000 bebês/ano filhos de adolescentes, crianças  que ainda necessitam de cuidados que passam a cuidar de outras crianças.    Mas, também é de 500 000/ano o número de mortes violentas no Brasil. Ou quando temos cartazes que vão envelhecendo e amarelando as fotografias cada vez menores, porque o número é cada vez maior de crianças desaparecidas. As outras crianças, as que não desapareceram, também tem o conhecimento deste perigo que correm. 
                     Se o assistencialismo diminuiu a linha da miséria sócio-econômica em 5.9 milhões de brasileiros, é no mínimo preocupante, que os tire da miséria tendo como critério sua inclusão na linha de consumo, para passar a assistir televisão. Evidentemente, não desconsideramos a dor da fome e da falta de condição básica para a vida, igualmente intolerante, mas ilustrar o sucesso pelos números do IBGE, de um programa de Governo, pela aquisição de um aparelho de televisão, sugere a manutenção da miséria enquanto imposição de verdades absolutas, linguagem usada por este meio de comunicação.   Esta é uma das formas da miséria psicológica, alienante e dominadora, talvez a pior das misérias humanas.                 
                 Todas estas ameaças estão, permanentemente, presentes na mente das nossas crianças e dos nossos adolescentes. E, como modelos identificatórios, estamos fornecendo o material para a continuação deste violento e sombrio estado de coisas. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência, do desânimo que se converte em uma certa excitação pela barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Pertencemos a um grupo quando complementamos alguém que conta uma história escabrosa, com um caso nosso. Isto me parece também um mecanismo de defesa. Ao mitigar, estamos tentando minorar a ansiedade e o medo causados pela nova informação.
                   A falsificação e a pirataria não são mais exclusividade de certos artigos. Legitimamos a pirataria da fita de vídeo game quando, na saída do metrô depois da tarde de trabalho honesto e/ou institucional, compramos algumas no camelô pelo preço de uma na loja. A justificativa é que o Governo encarece muito com os impostos, e, além disso, a da loja ninguém garante que também não é pirateada, ou contrabandeada. Sem esquecer que para nosso filho, criança, tanto faz e ele pode quebrar ou largar para lá e não vai lhe dar tanta raiva porque foi baratinha. Estamos assim cometendo várias falhas educacionais, que são difíceis de serem levadas em consideração, tamanha é a tolerância e a banalização de pequenos desvios. No entanto, estes mesmos pequenos desvios estão sendo assimilados pelas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um critério claro de certo e errado, de pode e não pode, de limite, de lei, de punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que, por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa conceituado por M. Klein, a identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Vale lembrar aqui o depoimento da mãe de um jovem morto há algum tempo atrás por ter tentado ser solidário com uma senhora de 79 anos que estava sendo assaltada. Os comentários ouvidos pela mãe do rapaz insinuavam que era incompreensível ele ter sido “bonzinho”, por que? Então a culpa foi dele, tinha que ser esperto, quem mandou ser solidário!
                   Se não encontramos a atitude adequada nas pessoas com relação à prática das diversas formas de violência contra a criança e o adolescente, também não encontramos políticas públicas consistentes, conseqüentes e persistentes. Uns culpam os outros, mas todos temos responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica. Se relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os grandes, se negamos nossa participação, se nos identificamos com o agressor, negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o conteúdo, não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização social. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade.   
    

*Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Crianças e Adolescentes
V Jornada Internacional sobre Violência Contra Crianças.
Mesa: O estado atual da Sociedade.

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2007.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO – UERJ
XXII Seminário de Psicopedagogia

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO

               “Se você brincar com ela, eu não sou mais sua amiga!” Ou, “se você jogar bola com ele, não sou mais seu amigo”. Talvez esta seja uma das primeiras formas de exclusão. Presa à ameaça de ser rejeitada, a criança vai ceder à ordem, e efetuará a rejeição da outra amiga, sem se dar conta, que, para ter a sensação de ser querida, incluída no afeto do outro, está praticando uma exclusão. Excluir é sinônimo de rejeitar porque não presta, não merece nossa atenção, nosso afeto, deve ser descartado. Enquanto lembrança infantil, sabemos que, raramente causou um dano duradouro, pois logo aprendemos que este jogo de exclusão e inclusão vai fazer parte da vida de todos.  Além disso, também aprendemos a ter um critério de avaliação que decidirá a quem vamos excluir segundo a identificação empática que sentimos. Assim, vamos desenvolvendo um processo empático-responsável, que permitirá ao mesmo tempo a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, aquisição da condição, exclusivamente, humana de solidariedade, e o acesso à avaliação das conseqüências e sansões das decisões tomadas, a responsabilidade. Esta, nos parece ser, a principal condição de respeito às leis, desde as regras intra-familiares na infância até o código civil na vida adulta.
                No entanto, quando aumentamos nossa lente e pensamos a exclusão social praticada por todos nós a crianças que são, profundamente, “marcadas na pele” como excluídas, estamos julgando e condenando, precoce e indefinidamente, estas crianças a permanecerem à margem da sociedade, ou melhor, do processo de humanização. E, esta margem pode se encontrar, não na vizinhança, mas a grande distância do concentrado social. Temos assistido alguns resultados catastróficos desta exclusão nos noticiários de violências praticadas por excluídos que se tornaram seres sub-humanos, e, em alguns casos, seres sub-animais.
                Faz-se necessário explicitar neste momento o que entendemos por violência da exclusão. Sabemos que é fácil localizarmos excluídos pensando nas crianças de rua, nas crianças abrigadas, nas crianças de comunidades muito carentes, aliás, hoje, todas o são, nas crianças desaparecidas, ou ainda, nas crianças que não tem computador na escola. Gostaríamos de estender este conceito de exclusão às crianças discriminadas de várias formas na escola, às tituladas sem-terrinha, às excluídas dentro de casa, e às crianças “inexistentes”, as sem registro de nascimento.
                O  E.C.A.,  Estatuto da Criança e do Adolescente, diz:
                         “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da Lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” Art. 5º.

                   “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e a saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” Art. 7º.     
           Direitos fundamentais, o que estamos garantindo para nossas crianças?  Será que não estamos excluindo milhões delas do processo saudável de desenvolvimento? Políticas sociais públicas?
              O Art. 7º do E.C.A. se refere ao nascimento em condições dignas de existência. Estas condições dignas são inauguradas pelo registro civil, aquele primeiro documento que atesta a existência de alguém, em condições dignas ou indignas. A estimativa do I.B.G.E., Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, aponta para cerca de 800.000 bebês nascidos em 2002 não foram registrados, em 2003 foram 745.000, em 2004 foram 374.540 crianças, com um acréscimo de cerca de 200.000 nascidas nos meses de outubro a dezembro, o que chegaria a quase 600.000 crianças inexistentes. A A.N.D.I., Agência Nacional de Direitos da Infância, em 2007 eram mais de 375.000 sem registro, sendo que em algumas cidades do semi-árido o sub-registro alcançava 94% dos nascimentos. Segundo informação da Pastoral da Criança, “em 2002, 29,9% dos registros de nascimento feitos no Brasil foram tardios. Pelos dados do I.B.G.E., o registro tardio cresce nos anos em que há eleição. Isso, na análise dos especialistas, se deve ao fato de candidatos estimularem os eleitores a tirar o registro e, em seguida, o título de eleitor.” Os fatores que contribuem para o sub-registro no Brasil são de diversas ordens: sócio-econômicas, sócio-culturais, dificuldade de acesso aos cartórios, e político-institucionais com a ausência de fiscalização da Lei, a inexistência de rede de proteção à criança, a ausência de cartório em cerca de 400 municípios. Assim, o I.B.G.E.  não tem estimativa sobre o total da população que vive sem um documento sequer. O problema do sub-registro se repete nas estatísticas de mortalidade: no Nordeste, 36,2% dos óbitos não são registrados e, no Norte, 32,3%, 13,5% no Centro-oeste, 11% no Sudeste, e 7,5% no Sul. Nascer e morrer sem existir civilmente, e estas são estimativas, apenas.
               O Art. 5º do E.C.A. afirma que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação e exploração. Será adequado ao desenvolvimento saudável de uma criança participar de uma invasão de terra ou imóvel, mesmo que por direito a um pedaço de chão ou teto, presenciando cenas de vandalismo, de violência, enfim, toda a transgressão protagonizada pelas partes envolvidas? A Reforma Agrária, promessa de campanha de tantos políticos de lateralidade cada vez mais débil, parece ficar a serviço da manutenção da miséria, a econômica e a psicológica, como tantas outras coisas de faz de conta deste nosso país.  Não é nosso objetivo aqui, a questão da desigualdade, da perversa concentração nas mãos de poucos, etc., etc., etc. Queremos focalizar, à luz do Art. 5º do E.C.A., a criança filha do trabalhador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, já intitulada “Sem Terrinha”, que dorme em barraca de plástico em chão batido dividido com animais silvestres, marcha por estradas durante dias, vive na pele, cotidianamente, as tensões sociais do Movimento nas invasões, é separada dos pais ficando abrigada em instituições improvisadas, freqüenta com irregularidade a escola também improvisada do acampamento, e participa ativamente de marchas e passeatas políticas infantis em números altos.  São 160.000 crianças inscritas nas escolas do M.S.T. O Jornal do Movimento noticia: ...”cerca de 1200 crianças e adolescentes de 7 a 12 anos estão reunidas em Pernambuco”..., “os Sem Terrinha de 7 a 12 anos estão reunidos de 4ª a 6ª feira para o 7º Encontro Estadual na chácara do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Paraná. Após a marcha, as crianças apresentam uma pauta de reivindicações para a Secretaria Estadual de Educação”. Este é o cuidado e o afeto, hoje reconhecidos como valores jurídicos, que estamos, pais, família, sociedade, Conselhos Tutelares, Operadores de Educação, Operadores de Justiça e Estado, oferecendo a estes milhares de crianças? Onde ficaram a proteção e a promoção do desenvolvimento, os direitos fundamentais? A exploração do trabalho infantil é facilmente reconhecida nos pequenos carvoeiros, nos pequenos cortadores de cana, nas pequenas prostitutas das nossas cidades litorâneas. As estradas também estão repletas de meninas e meninos que se submetem a programas sexuais com caminhoneiros por até R$ 5,00. Aliás, o combate à prostituição infantil também foi promessa de campanha. Mas, temos fechado os olhos para a prestação de serviço político de crianças. Esta prática é também uma forma de exclusão. Marcadas pela cor-símbolo e discriminadas pelo “apelido”, elas estão “acampando na vida”.
                Talvez fosse esperado que tratássemos da exclusão digital. Este é um divisor de águas que, nos parece, divide todas as crianças em dois grupos: as que têm computador e as que não têm computador. Nossa preocupação é maior quando pensamos na exclusão do processo educacional. Em geral, o grupo que tem computador tem escola com professores e aulas, mas nem sempre tem aprendizagem. Antes de adquirir a noção de tempo e espaço, a criança experiencia o não-tempo e não-espaço do mundo virtual. Zygmunt Bauman, sociólogo que definiu nosso tempo como modernidade líquida, chama nossa atenção: “A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo. No universo do software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, “em tempo nenhum””. Assim, o sistema de ensino, agonizante, segue em linha paralela. O índice de analfabetismo, segundo o IPEA, caiu a quase 1%, não se mensura o índice de analfabetos funcionais, leitura das palavras sem nenhuma compreensão do que está sendo lido, que parece chegar a 70%. O “faz de conta” esquece a menina de 15 anos, cursando a 8ª série, que só consegue ler a seqüência das letras das palavras, sem juntá-las. O antigo problema da repetência da 2ª série, que beirava os 40%, não existe mais porque hoje é desaconselhado reprovar, independente dos resultados obtidos pelo aluno, passando a haver a aprovação, dita progressiva, por Conselho de Classe.  O I.B.G.E. constatou, recentemente, os números do analfabetismo brasileiro. Mais de 2,1 milhões de estudantes, com idade entre 7 e 14 anos, podem ser considerados analfabetos. Por outro lado, a pesquisa “Juventude e Políticas Sociais no Brasil”, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), destaca a distorção idade-série como um dos maiores problemas na área educacional. Quase 34% dos jovens de 15 a 17 anos ainda estão no ensino fundamental, quando pela idade deveriam estar cursando as séries do ensino médio. Na faixa etária de 18 a 24 anos, 88% dos jovens não estão no nível adequado, ou seja, o ensino superior. Nessa mesma faixa etária, chama a atenção o fato de que mais de 30% já se evadiu das escolas. Para combater estes números que vão para debaixo do tapete, prefeituras e ONGs combatem a exclusão digital com a abertura de tele-centros. E esta é mais uma forma de exclusão violenta. Muitas ONGs passaram a ser conexão de verbas públicas e bolsos particulares, sem nenhum compromisso com o “projeto laranja”. Mas, e as crianças e adolescentes que precisavam daquele projeto?
               A corrupção está sendo ensinada por todos os lados para nossas crianças e adolescentes. O Decreto nº 28462, publicado em Diário Oficial em 21/09/2007, intitula como “Mérito Escolar” um prêmio em dinheiro para alunos com melhores notas, nas escolas municipais. Primeiro a aprovação compulsória, ou seja, a desqualificação da aprendizagem e, portanto do trabalho do professor. Juntou-se a esta aberração perversa, estudar ou não estudar tem igual resultado, nova aberração perversa introduzindo-se dinheiro para “pagar” a menores que obtiveram as melhores notas. Isto tudo, dentro de um sistema dito de Educação. Mas, que Educação? O que estamos ensinando com a aprovação obrigatória ou com este “mérito escolar”? Novamente é desqualificado o professor, seu trabalho e toda a sua representação na formação e no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Os salários, as condições de trabalho, os investimentos na qualidade da escola, etc.,etc.,etc., não tem nenhum espaço político.      
               Retornamos ao comportamento empático-responsável. Indiferentes e imunes ao sofrimento do outro, incapazes de empatizar com as necessidades do outro, não conseguimos nos responsabilizar pelo que estamos praticando. Esfriamos cada vez mais. Afinal, você não tem nada a haver com isso, serve de consolo para os que ainda se mobilizam um pouco. Esta é a perversão da exclusão que estamos todos permitindo e praticando. A ausência de cuidado e afeto que implica em maus-tratos, agressões físicas, psicológicas e sexuais, humilhações, indiferença e desafeto, acontece dentro das famílias, e tem sido nocivamente tolerada. A falta de responsabilidade pública faz com que a negligência de hoje, rapidamente, se torne exclusão amanhã. Uma escola que continua a ser chamada de escola, sem  professores, sem material didático, sem poder reprovar os resultados insuficientes, premiando aluno com dinheiro maior que salário de professor, sem instalações, sem higiene, sem segurança para os alunos e professores, e que nada acontece até o final do ano letivo, quando apresentará “resultados”, é a promoção da mais violenta exclusão, porquanto esta falsificação será sentida por todas as crianças e adolescentes como o lixo que lhe cabe.
               Sendo aluno-vítima, aluno-agressor, e aluno-testemunha omisso na prática do bullying, sendo sem-terrinha, sendo inexistente sem-registro civil, sendo analfabeto promovido nas séries escolares, sendo moeda de tráfico, de prostituição ou de mérito escolar, nossa criança e adolescente estão sendo excluídos do processo de desenvolvimento saudável que permitirá uma vida digna. A negligência social cometida pelos nossos governantes, representantes e operadores de justiça está sendo corroborada por todos nós, pela conivência com este estado perverso. É preciso cuidar com responsabilidade de nossas crianças. Precisamos excluir a exclusão.  

Ana Maria Iencarelli  anaiencarelli@gmail.com
XXII Seminário de Psicopedagogia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

05 de novembro de 2008.

terça-feira, 3 de setembro de 2013


           Este livro será lançado em outubro próximo. Ele trata da ressonância psicológica dos danos e as marcas permanentes do abuso sexual. O medo, o corpo, a transgressão, o prazer, a revelação, o abusador, a mãe, os irmãos, os Operadores de Justiça, os terapeutas, as inconclusões, são alguns dos seus capítulos.









Abuso sexual: ação e reação!                     Migalhas n. 1466 de  01.08.2006 
                                                                                                 www.migalhas.com.br

Tânia da Silva Pereira*

O crime de abuso sexual contra a criança é odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.

Esse tipo de crime,tenha ele, em qual dosagem for, o seu ingrediente patológico, tão antigo quanto o próprio homem, com seus desvios inescrutáveis – e nem por isso menos culpáveis e puníveis – deveria ser hoje uma excrescência quase residual no avanço da civilização, sob os aspectos fundamentais da moral e da ética. Pois ocorre o contrário, contradizendo, aliás, os mais elementares preceitos da cultura moderna, ou como preferem alguns, pós-moderna e ultrapassando até mesmo o que deveria pertencer ao terreno da ficção em suas incursões na sordidez humana: está em plena e febril atividade no mundo atual o que os corações mais cândidos ou singelos devem resistir a acreditar como real - um movimento com nome e digital: o “backlash”.

Trata-se da mobilização de recursos humanos e financeiros com o objetivo de desacreditar as vítimas de violência intrafamiliar, seus terapeutas, quem quer que tente proteger as vítimas, e, sobretudo, elas próprias, as crianças pequenas abusadas, assim como seus advogados e peritos. Por absurdo que pareça, que não se subestime o poder crescente dessa maré do mal. Não estamos diante de um fenômeno localizado, transitório e frágil. Muito ao contrário. E é contra ele que os cidadãos de todos os continentes, não se excluindo obviamente os brasileiros de bem, devem se mobilizar antes que esse trabalho deletério contamine definitivamente o ser humano de amanhã. (Depois de amanhã pode ser tarde demais).

O “backlash” surgiu na década de 80 no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Na Argentina obteve um maior impulso a partir do ano 2000, por iniciativa do advogado e ex-juiz Eduardo Cárdenas, ao denunciar em um periódico jurídico – La Ley - “uma verdadeira indústria de denúncias de abuso sexual” em nome de uma suposta “defesa da unidade familiar”. Com forte influência nos Tribunais argentinos, o referido advogado fez graves acusações a colegas e especialistas, atacando também a credibilidade do trabalho desenvolvido por instituições públicas. Diante deste movimento, segundo Virginia Berlinerblau “disfarçado de boas intenções”, foi encaminhado importante documento à Subsecretaria de Direitos Humanos daquele pais assinado por uma centena de profissionais de instituições públicas e privadas, advertindo para uma “escalada que põe obstáculos ao processo de visualização da violência doméstica”.

Nesta mesma linha de orientação, também no Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro; eles se utilizam de questionáveis mecanismos para desmontar os serviços criados com o objetivo de apurar e atender situações de abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a vítima. Magistrados e Promotores, acusados de “parcialidade”, e profissionais responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido denunciados em seus órgãos de classe visando intimidá-los ou impedi-los de atuar em situações de abuso sexual.

Tais considerações não devem ameaçar as iniciativas de manutenção e consolidação de um “trabalho em rede” que integre os vários equipamentos sociais. Essa integração não pode ser interpretada como um conluio entre profissionais que investem sua atuação na apuração da verdade e na proteção das vítimas.

O papel da polícia é importante na medida em que existam equipes especializadas em entrevistas de revelação, sobretudo com jovens e crianças e as respectivas famílias. O desenvolvimento de programas permanentes especializados multidisciplinares deve abranger a formação jurídica e técnica relacionada com o abuso sexual. A definição de um modelo de intervenção criminal e a identificação de estratégias e táticas de investigação eficazes são apenas uma parte dos desafios. A participação de peritos qualificados para expressarem a opinião quanto à confiabilidade dos depoimentos da criança representa apoio significativo.

A baixa efetividade dos meios probatórios tem acarretado a impunidade de suspeitos. Cabe lembrar que não são incomuns as hipóteses em que os magistrados, em nome de efetivo cuidado, mantêm uma visitação assistida por uma pessoa da confiança do genitor denunciante. Na maioria das vezes o acusado se afasta sem se interessar em conviver naquelas condições, o que induz a suspeita de suas efetivas intenções.

A ocorrência rotineira destes casos contra crianças e adolescentes permanece como uma questão que a maioria das pessoas prefere ignorar. Difícil de ser investigado, o abuso sexual manifesta-se como crime secreto ou prática oculta, contra vítimas que são sempre contrárias a relatá-lo ou praticamente incapazes de fazê-lo. Em geral, a vítima é a única testemunha e as evidências físicas de abuso sexual existem apenas em uma pequena porcentagem de casos. Esses fatores atropelam as investigações em todos os seus níveis — desde a sua denúncia até o julgamento.

Não é raro e representa uma experiência freqüentemente traumática proceder-se a uma “acareação” entre a criança e o acusado, sobretudo quando este é um membro da família. Nesses casos, a criança pode sentir uma culpa adicional caso ele seja condenado. Sentimentos conflitantes para com o acusado são, em geral, uma causa significante do trauma experimentado pela criança abusada sexualmente.

Diante da freqüente dificuldade de revelação do abuso, sobretudo no Judiciário, destaque-se a iniciativa do Tribunal do Rio Grande do Sul ao implantar um sistema identificado como “Depoimento sem danos” por iniciativa da Desembargadora Maria Berenice Dias. Em ambiente adequadamente equipado, a vítima é ouvida por um psicólogo ou assistente social. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo. Assim, a vítima é ouvida uma única vez e seu depoimento pode ser assistido inclusive no Tribunal quando do julgamento de um eventual recurso.
 Dentre os “mitos e realidades” que envolvem esse tipo de violência devemos distinguir situações controversas que devem merecer atenção dos especialistas e do Sistema de Justiça: os crimes são praticados em todos os níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos. A maioria das vezes são pessoas aparentemente normais e queridas pelas crianças ou adolescentes. A maioria dos agressores é heterossexual e mantém relações sexuais com adultos; pessoas estranhas são responsáveis por pequeno percentual dos casos registrados; diante da afirmação comum de que a criança que é abusada mente e inventa, documento oficial de orientação aos professores afirma que “apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de crianças maiores que objetivam alguma vantagem”.

Estes e demais aspectos do problema refletem destacada importância nos estudos e programas de atendimento às situações de abuso sexual. Estes últimos devem trabalhar, inclusive, com projetos de esclarecimento no sentido de se orientar os responsáveis em face de sinais transmitidos por crianças e jovens acerca do que lhes sucede. Da mesma forma é flagrante a enorme dependência das mulheres aos seus maridos ou companheiros e, na maioria das vezes, se negam a crer na possibilidade de que o mesmo possa cometer tal ato ou mesmo se sentem impotentes para enfrentá-lo.

Uma atuação interinstitucional é necessária. Devem ser priorizados a promoção, apoio e estímulo a programas de capacitação de recursos humanos, aplicáveis à função de agentes governamentais e não governamentais, que trabalhem especificamente com crianças e adolescentes, sempre com vistas à atuação multidisciplinar.

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 *Advogada e Professora de Direito da UERJ e da PUC/Rio. Diretora da Comissão Nacional para Infância e Juventude do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família