Artigos – <p>SAMUEL, mais uma criança desprotegida – Por Ana Maria Iencarelli
Samuel, 06 anos, um pré-Bernardo, um pré-Isabela, um pré-Joana, um pré-Flávia, um pré-centenas que foram condenados à morte por cegueira e surdez deliberadas de familiares, amigos de família, funcionários domésticos, professores, psicólogos, e outros, do entorno deles, e técnicos, ditos especializados, e por sentenças que se multiplicam pelo país. Laudos sentenciais, acordos sentenciais. Não acredito que ninguém tenha lido os sinais de apelo destas e de tantas outras crianças. Acredito que foram vistos e ouvidos os pedidos de socorro, mas raros, muito raros, são os adultos que querem se comprometer. Assim, por injeção letal, jogada pela janela, em coma por maus tratos não esclarecidos, ou por um saco plástico, a autorização para matar crianças, no seio da família, está relacionada à permissividade e impunidade na aplicação das leis da proteção delas. A falsa acusação de alienação parental permeia inúmeros destes casos. A violência física, psicológica e sexual intrafamiliar, não é devidamente cuidada, muito menos punida.
O vídeo de Samuel no G1 é emblemático, tragédia anunciada, fala por si só. Crianças desacreditadas ou nem ouvidas, profissionais despreparados, corrupção intelectual, de influência e, em espécie, mães que são taxadas todas de histéricas rancorosas, que não se conformam com a separação e praticam, todas, a tal da Alienação Parental, O calo social, “mas, pai é pai” tem sido a mais frequente argumentação em processos plenos de silogismos e achismos rasos. Como falou aquela Juíza de Vara de Família, “chega cada vez mais caso de denúncia de abuso sexual, mas graças a Deus, é tudo alienação, 100% é alienação parental da mãe”. 100% é a pérola da moda nos processos de família?! Ponto de vista machista, sexista, misógino? Será que não é o pedágio que as mulheres estão pagando pelas suas conquistas, ainda insípidas, mas algumas efetivas? Não é um discurso feminista. É a realidade. Constroem-se pseudoteorias para se esconder atrás delas. E, fugir da responsabilidade da proteção de uma criança.
Vale a pena ressaltar que o conceito de Alienação Parental foi criado por Richard Gardner, perito que defendia homens acusados de praticar violência doméstica e abuso sexual de filhos. Gardner criou o conceito invertendo os lugares: o acusado passou a ser vítima e a vítima, acusada. Gardner é entusiasta da pedofilia, e escreve que “as atividades sexuais entre um adulto e uma criança são parte do repertório natural da atividade sexual humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e a faz ansiar por experiências sexuais que redundarão num aumento da procriação”, e ainda, “o incesto não é danoso para a criança, mas é, antes, o pensamento que o torna lesivo”, em seu livro “True and False Accusations of Child Sex Abuse”, 1992, nas páginas 24-25, e na página 549. É possível acessar este material aberrante pelo site Amazon.
Como xenófilos, importamos sem saber, sem verificar, sem estudar. E, criminalizamos a Alienação Parental das mães, porque não há um só pai que tenha sido enquadrado nesta lei, apesar de todos já tenhamos ouvido um pai usar aqueles adjetivos desvalorizantes e chulos para se referir à mãe da criança. Quem nunca ouviu um pai raivoso proferir a frase: “sua mãe está botando macho dentro de casa, não dou dinheiro para sustentar os machos dela”. Retiro da frase as denominações chulas. Denegrir o cônjuge faz parte de muitos casamentos. Não é raro testemunhar ao longo de anos um cônjuge desvalorizando o outro, marido ou mulher, ambos expõem este comportamento que faz parte de relações adoecidas com um componente sado-masoquista, onde há submissão de um e dominação de outro. E o casamento segue assim. Será que a justiça pensa que irá punir criminalmente as mulheres, porque a lei é só para mulheres, que praticam alienação parental intrafamiliar? Com câmeras instaladas dentro das casas destas mulheres? Mas isto não precisaria, bastaria uma alegação verbal, sem nenhuma comprovação, que o judiciário acataria de pronto.
E mais, este conceito de alienação parental não tem fundamentação científica, afirma Maria Clara Sottomayor, Juíza do Supremo Tribunal de Portugal desde 2012, e estudiosa e autora do livro “Temas de Direito das Crianças”. Ainda mais quando é atrelado à questão de gênero, como está acontecendo entre nós, válido só para mulheres. Isto é nada científico porque alienação não é decorrente do ciclo menstrual.
Temos conhecimento da vergonha que alguns Operadores de Justiça, que têm responsabilidade empática com a criança, sentem diante da situação que se instalou e deste frequente descumprimento do Princípio de Redução de Danos e do Princípio de Melhor Interesse da Criança pelo modus operandi atual.
A indignação exposta nos milhares de acessos e comentários, assim como os comentários de despreparados com título, infelizmente, morrerá também, em breve, porque este é o ritmo virtual. O tempo da mídia contrasta com o tempo do judiciário. Prazos, apelações, vistas, recursos, as conhecidas e infinitas estratégias do exercício do Direito em nossa terra. E Samuel vai continuar sofrendo, desesperado, vai perder o que resta da infância, até desistir de gritar e se adaptar à tortura que sofre. E aí vai ter uma “perita” que vai fazer um laudo dizendo que ele está ótimo, que gosta do pai, etc., etc., etc.
Há um detalhe. O ódio da impotência vivida numa situação de opressão se transforma em retaliação, em desejo de vingança, o “não vou sofrer sozinho”. A perversão foi implantada e autorizada por uma figura de autoridade pai, e confirmada pela instituição autoridade, no mais profundo de sua mente. Assim, é muito provável e frequente que assim se monta um transgressor.
Confunde-se título com função. Pai é uma função, não um título. Não é dono. Pai cuida, respeita, protege, se responsabiliza. Em tempos em que a procriação saiu do método do corpo a corpo, e a Justiça produz registro de criança onde constam dois pais ou duas mães, ou até três mães, enfim, em que o conceito biológico de pai e mãe se ampliou, ouve-se a medieval frase: “pai é pai”. Usada, na verdade, por aqueles que querem se livrar da angústia da dúvida, para se livrar dos horrores perversos de psicopatas com grande capacidade de manipulação e convencimento, este calo social foi engendrado numa pseudoteoria que pretende uma verdade absoluta de que sem a presença e participação do pai a criança não se desenvolve. Não se sabe onde há embasamento teórico, pesquisas e experiência clínica, para sustentar tal afirmação. Mas, a despeito do raso conceito de pai e da razão da criação do conceito de alienação parental das mulheres, a ciência e seus procedimentos, aqui, não são necessários.
Estamos criando e mantendo uma ampla legião de indivíduos incapazes para o exercício da cidadania. Ou a criança se aloja no medo, e permanece vulnerável independente da idade, até a vida adulta, ou ela assimila que pode transgredir a lei, que é permitido, e então temos o nascimento da delinquência e do crime. Se, ensinamos com tanta dor que a lei existe, mas não precisa ser cumprida, aliás, vivemos momentos cruéis desta explicitação, estas crianças têm como opção na formação de seu caráter a identificação com o agressor. A maior probabilidade é de que se tornem transgressores de todos os níveis, perversos diversos, criminosos, incluindo o tipo “serial killer”, que cabe na dinâmica da mistura do medo e do ódio: se tenho medo do meu pai, mas quero matá-lo, mato pessoas sem rosto para mim.
Além da legião de crianças que crescerão com microcefalia, haverá a legião de transgressores e criminosos, catástrofes anunciadas e deliberadas pelo descompromisso político e a negligência irresponsável de todos nós, uma explícita, outra tatuada na alma de meninos e meninas, mas ambas, com a aplicação da pena mais severa, a perpétua, às mulheres/mães, ambas, consequência da perversão institucional que é negligenciada pela nossa sociedade cenográfica, de faz de conta.
Ana Maria Brayner Iencarelli é psicanalista de criança e adolescente.

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