quinta-feira, 26 de abril de 2018

A lei de Alienação Parental e o superior interesse da criança

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Fátima Tardelli, Serventuário da Justiça e Afins
Publicado por Fátima Tardelli
há 6 meses
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1 - Do ativismo pedófilo no mundo; da indústria da pedofilia
Pedofilia é a atração sexual primária por indivíduos impúberes. Não é necessariamente crime, porquanto a lei penal não alcança os desejos, mas sim a externalização deste desejo. A fim de exemplificar a distinção, é possível usar o paralelo com o racismo: ser racista não é crime, muito embora seja moralmente repulsivo. Já externalizar esse racismo pela linguagem escrita, falada ou simbólica e gestual constitui fatos tipificados como crime na lei penal brasileira (Lei 7.716/89 e artigo 140 do Código Penal). O mesmo ocorre com a pedofilia: o indivíduo ter tais desejos é condição médica (CID 10 F 65.6) e enquanto tais desejos se mantiverem no campo interior, não são alcançados pela lei penal, mas a externalização de tais desejos, quer seja pela manutenção de vídeos expondo crianças ou até mesmo abusando sexualmente delas (dentre outras condutas), são tipificadas na lei (Código Penal, artigo 217 A e Lei 8069/90).
Esta distinção entre o que pode ser alcançado pela lei penal (ações criminosas) e o que cairia no campo do expurgo moral (meros desejos sem ações para concretização material) tem sido utilizada por indivíduos para defender o ativismo pedófilo. O objetivo é mudar as legislações ou jurisprudência nos mais diversos países de forma a permitir que adultos tenham contato sexual com crianças. O ativismo pedófilo[1] é o conjunto de ações, escritos e declarações de aceitação social ou simples apoio à essa prática danosa contra incapazes.
Nascido em 1950 nos Baíses Baixos, por meio da atividade do psicólogo clinico Frits Bernard e do senador Edward Brongersma, surgiram grupos em idos de 1970. Na década de 1980, por razões óbvias e pelo forte repudio social às atividades de tais grupos, eles começaram a arrefecer, mas não desapareceram.
No mundo todo diversas organizações foram acusadas de acobertar escândalos de pedofilia: a Igreja Católica[2], uma das mais profícuas neste sentido, não só escondeu os casos para proteger o nome da instituição, como também atuou ativamente em prol da proteção dos abusados. E não apenas esse ramo religioso foi afetado: pululam denúncias de pedofilia também em igrejas pentecostais. Para se ter uma ideia, uma busca no Google resulta em 281.000 resultados apenas em português[3]. Grupos políticos também foram pegos se beneficiando da prostituição infantil[4], e os casos são tantos que cansativo relatá-los um a um.
A pedofilia é uma condição médica que no lugar de ser tratada por aqueles que à possuem, são materializadas por estes. O doente não busca tratamento mas sim a concretização de seus desejos, mesmo que tais concretizações constituam crime. E há aqueles que auferem enormes lucros explorando essa demanda: estima-se que a indústria da exploração sexual infantil lucre mais do que a indústria armamentista[5].
Existem fóruns com audiência gigantesca onde criminosos compartilham entre si material onde crianças são abusadas das piores formas possíveis:
Infelizmente, porém, a maioria dos casos de abuso sexual infantil ocorrem dentro dos lares, por pessoas íntimas ou conhecidas das vítimas[6]. O problema se acentua quando se tem em mente que os casos de abusos sexuais são subnotificados[7] no Brasil por conta da falta de credibilidade que se dá à palavra da vítima criança. Sobre o assunto, Claudia Balbinotti, no texto ‘A violência sexual infantil intrafamiliar: A revitimização da criança e do adolescente vítimas de abuso’[8] anotou que:
“....A ausência de credibilidade da criança se estende não só dentro do âmbito familiar, quanto no sistema legal. A crença de que ‘crianças mentem e adultos falam a verdade’ ou de que ‘a comunicação das crianças é menos válida ou menos confiável’ traz prejuízos no processo judicial....”
O ativismo pedófilo, como dito, concentra suas atuações na ‘desmistificação do pedófilo’ tentando, com isso, retirar o forte repúdio social contra esses indivíduos, fazendo com que eles obtenham simpatia social, para influenciar legisladores e juristas, para que adultos tenham acesso sexual às crianças.
2 – Richard Gardner; a Síndrome da Alienação parental e o ativismo pedófilo:
Richard Gardner, nascido em 28/04/1931 e falecido em 25/05/2003, era um psiquiatra americano que atuou em vários litígios envolvendo guarda de crianças nos EUA. Em 1985, enquanto atuava em um caso como perito técnico judicial, nomeou pela primeira vez uma série de condutas que as crianças apresentavam como ‘Síndrome da Alienação Parental’. Gardner atuou em mais de 400 casos de disputas de crianças.
Sobre Richard Gardner, a jurista e magistrada Portuguesa Maria Clara Sotomayor[9] disse que:
“....GARDNER criou as suas teses para defender ex-combatentes acusados de violência contra as mulheres e/ou de abuso sexual dos filhos, tendo feito a sua carreira profissional como perito, em processos de divórcio ou de regulação das responsabilidades parentais, a defender homens acusados de abusar sexualmente dos seus filhos, através da estratégia de desacreditar as vítimas para inverter as posições e transformar o acusado em vítima.
As teorias de GARDNER têm uma origem sexista e pedófila, na medida em que o seu autor, em trabalho publicado em 1992, intitulado “True and false accusations of child sex abuse”, entendia que as mulheres eram meros objectos, receptáculos do sémen do homem, e que as parafilias, incluindo a pedofilia estão ao serviço de exercitar a máquina sexual para a procriação da espécie humana. Na verdade, a SAP [Síndrome da Alienação Parental] revelou ser uma interpretação misógina da recusa da criança em conviver com o progenitor não guardião, que presume a maldade, o egoísmo e a irracionalidade das mulheres, gerando situações de risco para as crianças e provocando um retrocesso nos direitos humanos das mulheres e das crianças .
RICHARD GARDNER, nas primeiras edições dos seus trabalhos, mostrava ser tolerante com a pedofilia e com o abuso sexual de crianças, tendo feito afirmações públicas no mesmo sentido, divulgadas pelo Independent: «A pedofilia, acrescentou GARDNER, “é uma prática generalizada e aceite entre literalmente biliões de pessoas”. Interrogado, novamente, por um entrevistador sobre o que devia fazer uma mãe, se a sua filha se queixasse de abuso sexual por parte do pai, Gardner respondeu: “O que deve ela dizer? Não digas isso sobre o teu pai. Se o disseres, eu bato-te”.
No seu livro auto-publicado, intitulado True and False Allegations of Child Sexual Abuse, GARDNER adoptava o discurso legitimador e desculpabilizante da pedofilia, afirmando que “o incesto não é danoso para as crianças, mas é, antes, o pensamento que o torna lesivo, citando Shakespeare: “Nada é bom ou mau. É o pensamento que o faz assim”. “Nestas discussões, a criança tem que perceber que, na nossa sociedade Ocidental, assumimos uma posição muito punitiva e moralista sobre encontros sexuais adulto- -criança”. “O pai abusador tem que ser ajudado a dar-se conta de que, a pedofilia foi considerada a norma pela vasta maioria dos indivíduos na história do mundo.
Deve ser ajudado a perceber que, ainda hoje, é uma prática generalizada e aceite entre literalmente biliões de pessoas” . GARDNER afirmava, ainda, contrariando todos os conhecimentos científicos sobre o sofrimento das vítimas, que qualquer dano causado pelas parafilias sexuais não é o resultado das parafilias em si mesmas, mas sim do estigma social que as rodeia: “O determinante acerca de saber se a experiência será traumática é a atitude social em face desses encontros»46 , defendendo que «as actividades sexuais entre adultos e crianças são “parte do repertório natural da actividade sexual humana”, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia “estimula” sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e fá-la “ansiar” experiências sexuais que redundarão num aumento da procriação.»
Trata-se de uma concepção, que considera a criança objecto dos adultos, nega o seu sofrimento e os efeitos negativos, a longo prazo, na vida das crianças, com alterações do seu equilíbrio bio-psicológico para sempre. Esta visão do abuso sexual ignora as várias fases do desenvolvimento do ser humano e as necessidades específicas das crianças, assim como o direito da criança ao livre desenvolvimento da personalidade. As afirmações de GARDNER significam uma crença numa sociedade patriarcal assente na propriedade do homem, como chefe de família, sobre as crianças e as mulheres, e numa aprovação da pedofilia, ideologia que nega à criança o estatuto de pessoa autónoma e livre, considerando-a um objecto dos adultos do sexo masculino, submetido ao poder e livre arbítrio destes. GARDNER terá tido, na hora da morte, sentimentos de culpa, tendo-se suicidado de forma violenta, esfaqueando-se a si mesmo, conforme informa a imprensa norte-americana, com base no relatório da autópsia publicado no New York Time”.
O texto da ínclita magistrada supracitada, não ressoa como única voz a proclamar as motivações do médico autor da SAP, muitas outras se somam a elas[10] [11] [12] [13], como a do juiz Argentino Carlos Rozanski[14], que diz explicitamente que:
A SAP é um embuste criado por um pedófilo norte americano, Richard Gardner, medico, no desespero diante do avanço de investigações acerca do fenômeno do abuso infantil.
Durante séculos não foi necessário inventar teorias como essa porque se desqualificava diretamente (as denúncias) dizendo que as crianças mentiam, e isso bastava. Quando há décadas, começou-se a investigar melhor o fenômeno, descobriram que crianças até certa idade não podem fantasiar sobre situações visuais não vividas, que não mentem sobre esses temas, surge a preocupação dos pedófilos, dos que fazem negócio com a pedofilia e dos que se identificam com os pedófilos, e ai então criam-se teorias, nesse caso uma falsa teoria. A Síndrome da Alienação Parental é inexistente, onde o que se faz, em vez de dizer ‘as crianças mentem, que já não é plausível, é dizer: as mães fazem lavagem cerebral nas crianças para que acreditem que foram abusadas”
Também está disponível na internet um vídeo onde o próprio autor da SAP fala sobre ela[15].
A teoria criada pelo Gardner, por sua vez, não é reconhecida em lugar nenhum do mundo como uma teoria científica pois não tem base empírica, trata-se de mera hipótese, sobre a qual seus autores e defensores falharam em encontrar provas científicas. Por este motivo, ela não é incluída nos manuais de diagnóstico oficiais (DSM-IV e CID-10). Portanto, não há o que se falar na existência de uma síndrome real, quando esta não é reconhecida pela área à que supostamente pertenceria. Apesar de não ser aceita enquanto síndrome, referida teoria, sem base cientifica alguma e criada como meio para defender homens acusados de abusos de crianças, ganhou corpo em vários países (exemplo: Brasil), enquanto tem sido fortemente repudiada por outros (Canadá, EUA, Reino Unido). No México, a lei de alienação parental foi revogada por ser considerada inconstitucional[16].
Grupos masculinistas (essencialmente, grupos de ódio contra o gênero feminino, racistas e homofóbicos) em suas páginas de discussões (os chamados ‘chans’, dos quais o atirador da UnB, denominado ‘Engenheiro Emerson’[17] era assíduo frequentador) defendem o uso da Alienação Parental para que seus membros possam vencer contendas judiciais (ações de fixações de alimentos e guarda). deste modo, a lei deve ser cuidadosamente aplicada pelo operador de Direito, com o fim de não referendar tais condutas.
3 – Paternidade, Maternidade e Desigualdade de gênero no Brasil
Nosso pais tem mais de 5,5 milhões de pessoas sem o nome do pai no registro de nascimento; as mulheres, denominadas ‘mães solteiras’, sofrem com pesado estigma social: além de terem de criar a prole sozinhas, ainda enfrentam preconceitos de toda sorte.
Quando a mulher grávida, conhecendo quem é o pai, busca alimentos gravídicos (Lei 11.804/2008), o que se vê é o uso, pelo apontado pai, de defesa lastreada no sexismo e preconceito de gênero; ocorre amiúde de a honra da mulher ser atacada como forma de defesa pelos requeridos. O processo, por sua vez, tem seu trâmite estendido até que a criança nasça, quando então a ação é convertida em investigação de paternidade cumulada com alimentos e, durante todo o lapso temporal decorrido, a grávida e posteriormente mãe, fica obrigada a carregar sozinha sobre seus ombros o peso financeiro da maternidade. E como se tal não bastasse, ainda lhe é imputada a culpa por ter ‘escolhido mal’ o parceiro.
Ignora-se, por vezes, que se a mulher adota algum critério para escolher o parceiro, é qualificada de interesseira e preconceituosa e, quando não adota, lhe cabe com exclusivamente o ônus desta escolha. A mulher, no fim, sempre é a prejudicada.
Quando finalmente a mulher consegue o reconhecimento da paternidade e a condenação do pai ao pagamento de alimentos, não raro a batalha judicial continua, posto que o pai não paga e tem de ser movida nova ação, agora de cobrança, denominada ‘cumprimento de sentença’.
Quando o pai paga os alimentos corretamente e exerce o direito de visitas, não raramente a sociedade o qualifica como um pai excelente, quando a paternidade não se resume a visitas sazonais (ou quinzenais), mas sim as obrigações como guarda, criação, educação, alimentação e outros fatores. Praticamente toda a carga fica sobre os ombros da mulher, e o pai, a cada 15 dias, acaba colhendo os louros do aplauso social enquanto que à mãe resta a adjetivação de que ‘não faz mais do que sua obrigação’.
Nas famílias ainda unidas pelo casamento ou união estável, melhor sorte não socorre à mulher, já que que ela continua a carregar sozinha a maior parte do trabalho de cuidado e criação dos filhos. Apesar de em grande parte dos lares brasileiros as mulheres trabalharem, ainda estão elas submetidas a dupla jornada, já que todas as tarefas domésticas ficam a seu encargo. O estudo ‘Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça’[18], publicado pelo IPEA, constatou que a mulher trabalha 7,5 horas por semana a mais que os homens por conta dessa dupla jornada.
Em casais separados, quando recrudescem às disputas, geralmente a guarda fica com a mãe, já que pelo contexto social em que vivemos, a responsabilidade pelos cuidados com a prole é associada ao gênero feminino. Então, enquanto aos homens é dada opção de serem pais ativos na vida dos filhos, às mães isso é obrigatório. Em inúmeros casos os pais simplesmente não pagam alimentos, não visitam os filhos, e não participam minimamente.
Mas quando acionados na Justiça por abandono afetivo, nossos tribunais tem entendido pelo descabimento, posto que não entendem como ilícito a ausência de vínculo afetivo (ApelCiv 5995064900 TJSP, 4ª Turma de Direito Privado, desembargador Maia da Cunha); quando acionados ao pagamento de alimentos pelo rito da coação pessoal (prisão), alegam não terem recursos; quando acionados pelo rito da constrição patrimonial não se encontram bens sujeitos à penhora. Não raro, ao estabelecerem nova família e prole acabam pedindo revisional de alimentos em total inobservância da paternidade responsável. Por fim, as batalhas judiciais tornam-se tão cansativas e inexitosas que as genitoras muitas vezes optam pela desistência.
Tem-se, portanto, que mulheres e crianças, tanto no contexto social quanto jurídico, são a parte mais fraca.
4 – A desigualdade de gêneros no Judiciário.
A posição social da mulher no curso da História humana sempre foi forçadamente inferior à do homem, e em processos judiciais, a palavra da mulher sempre foi desacreditada. No Código de Manu, por exemplo, encontra-se uma regra (artigo 50) que só permitia às mulheres deporem em processos contra outras mulheres.
No Direito Hebraico (que influenciou o Direito Canônico, que por sua vez influenciou os ordenamentos das sociedades ocidentais) é latente a subordinação da mulher. O apóstolo Paulo de Tarso, por exemplo, ensinou que as mulheres deveriam ficar caladas nos templos. Nos 66 livros que compõem a Bíblia, percebemos coisas extremamente sexistas, tais como:
“ Se a mulher for estuprada na cidade e não gritar o suficiente, deve ser apedrejada até morrer “ (Dt 22:23-24)
“Se o estuprador for apanhado, ele deverá pagar uma quantia ao pai e casar com a estuprada “ (Dt 22:28-29).
O Termo ‘histeria’, hoje considerado um termo médico (aplicado a qualquer indivíduo que apresente os sintomas), tem como origem uma palavra grega que significa ‘útero’, então a histeria era atribuída às mulheres, ditas como histéricas. A história do feminino no mundo sempre colocou a mulher como ser indigno de credibilidade. Quando reclamam contra qualquer coisa, são chamadas de ‘histéricas, exageradas, descontroladas’ e tal discriminação se acentua quando a reclamação é oposta ao comportamento de algum homem.
Inegável a influência de tais preceitos religiosos nas legislações, tanto que o Código Penal Brasileiro tinha o seguinte dispositivo (alterado apenas em 2005, pela Lei 11.160):
“Artigo 107 – Extingue-se a punibilidade:
VII – Pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”
Tem-se, portanto, que até 2005 era possível casar-se com a vítima para evitar ser punido pelo crime de estupro. Mas ainda que tal dispositivo tenha sido revogado, o Brasil ocupa o vergonhoso 5º lugar no ranking de casamentos infantis[19], e, apesar das mudanças ocorridas na lei em 2009, tribunais brasileiros continuam ignorando a presunção da violência para deixar de punir estupradores de menores[20]. Nossos tribunais continuam aceitando o consentimento da família (como se família pudesse consentir com o cometimento de um crime) para afastar condenação de estupro de vulnerável[21], e o nosso Congresso Nacional quer diminuir a idade de consentimento para 12 anos (Projeto de Lei do Senado n. 236/12).
No livro ‘Debate Interdisciplinar sobre os Direitos Humanos das Mulheres’, organizado por Sidney Francisco Reis dos Santos e Carmem Miranda de Lacerda, defendem os autores que as mulheres enfrentam inúmeras dificuldades para obter guarda e proteção judicial aos seus direitos e aos dos filhos; e de como mulheres tem dificuldade em obter proteção contra parceiros e ex-parceiros violentos por conta da resistência de juízes em aplicar a Lei Maria da Penha e de como as mulheres enfrentam enormes dificuldades nos tribunais:
“O SJC [Sistema de Justiça Criminal] vai expressar e reproduzir a estrutura e o simbolismo de gênero, expressando e contribuindo a reproduzir o patriarcado – assim como o capitalismo. Dizer que é um sistema integrativo do controle social informal significa então que ele atua residualmente no âmbito deste, mas neste funcionamento residual reforça o controle informal masculino e feminino, e os respectivos espaços, papéis e estereótipos a quem devem se manter confinados” (pág. 233)
“...Regra geral, o conjunto probatório nos processos de estupro é extremamente frágil, limitando-se à prova pericial e testemunhal e esgotando-se, muitas vezes, no depoimento da vítima. Isto é facilmente compreensível pelas circunstâncias em que ocorrem. São crimes geralmente praticados em lugares ermos ou na intimidade dos lares, distantes do público e de testemunhas. Esta é a razão, justifica-se, pela qual, nos crimes sexuais, a palavra da vítima e o laudo de exame de conjunção carnal assumem especial relevância, o que, aliás, parece unanimidade em matéria judicial, doutrinária e jurisprudencial.
Mas se exige, contudo, que sua palavra seja corroborada pelos demais elementos probatórios constantes nos autos, conforme o ilustram fragmentos do discurso decisório pesquisado. O que se pode perceber, pelos discursos analisados, é que esses outros elementos probatórios nada mais são do que a vida pregressa da própria vítima. Ora, se o conjunto probatório se reduz, muitas vezes, à palavra da vítima, então está a exigir que sua palavra seja corroborada [...] por sua vida pregressa, pela sua moral sexual ilibada, por seu recato e pudor [...] ao tempo que a vítima é julgada pela sua reputação sexual, é o resto deste julgamento que determina a importância de suas afirmações “ (pág. 235-236)
Se à mulher impõe-se essa dificuldade na defesa em juízo, melhor sorte não socorre às crianças. Apesar de o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069/90) ter rompido com a doutrina da situação irregular (Código de Menores, Lei 6.607/79) quando, seguindo o artigo 227 da CF/88, acolheu a doutrina da proteção integral, reconhecendo a criança não como propriedade dos adultos, mas sim como sujeitos de direitos, ainda ecoa em nossa sociedade o resquício de uma época em que as crianças eram objetos de direito e não sujeitos. E por conta deste resquício ideológico-social é que crianças também sofrem no Judiciário:
“[...] e não é diferente em relação às vítimas crianças, cujas palavra goza da mesma falta de credibilidade, embora por outro motivo: não são escutadas, não tem voz, porque a tendência é não se acreditar no que dizem ou e desqualificar a sua versão dos fatos como fantasias infantis.
Ocorre que, pois, é que no campo da moral sexual o sistema penal promove, talvez mais do que qualquer outro, uma inversão de papeis e do ônus da prova. A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, em regra geral, é de iniciativa privada – acaba por ver-se ela própria julgada (pela visão masculina da lei, pela polícia e da justiça), incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada” (pág. 236).
Recentemente uma menina de 10 anos filmou o próprio estupro para que se desse crédito à sua palavra[22].
5 – Da Lei de Alienação parental; do perigo das falsas acusações de alienação serem usadas para encobrir condutas ilícitas:
Justifica-se o estudo da Alienação Parental pelo Direito pelo fato de que aqui no Brasil, referida síndrome se materializou no Projeto de Lei 4053/2008[23], de autoria do deputado Regis de Oliveira; na propositura o autor assim se justifica:
Cabe sublinhar que a presente justificação é elaborada com base em artigo de Rosana Barbosa Ciprião Simão, publicado no livro “Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião – Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos” (Editora Equilíbrio, 2007), em informações do site da associação “SOS – Papai e Mamãe” e no artigo “Síndrome de Alienação Parental”, de François Podevyn, traduzido pela “Associação de Pais e Mães Separados’ – APASE, com a colaboração da associação “Pais para Sempre”. Também colaboraram com sugestões individuais membros das associações "Pais para Sempre", "Pai Legal", "Pais por Justiça" e da sociedade civil.
[...] Também não há, atualmente, definição ou previsão legal do que seja alienação parental ou síndrome da alienação parental[...]”
Em outras palavras, o autor do projeto presume que a alienação parental é de fato uma síndrome existente, quando inexiste qualquer base científica a esse respeito. Além disso, se baseou em dois artigos de dois únicos autores e nas palavras de associações civis e com a colaboração de seis ONGs, das quais quatro se dedicam exclusivamente aos interesses de pais (homens). Não houve amplo debate com a sociedade civil, não houve apresentação de dados estatísticos que demonstrassem que nas disputas de guarda existissem reiterados comportamentos por parte dos guardiões que justificassem a edição de uma lei a respeito. Apenas a voz dos homens, às quais já se dão crédito por conta da estrutura social que vivemos, foram ouvidas:
“[...] retomando a exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei nacional, encontra-se a afirmação de que este foi elaborado a partir de livro sobre a síndrome de alienação parental editado por uma associação brasileira de pais separados, bem como de informações e textos traduzidos, disponíveis no site desta e de outras associações, e, ainda, de sugestões de membros participantes das mesmas. Não se encontra, entretanto, qualquer menção aos diversos questionamentos e polêmicas presentes na literatura internacional sobre o tema em apreço. Concebe-se que, no contexto nacional, a ausência dessas discussões sobre a teoria proposta por Gardner veio prejudicar o surgimento de possíveis reflexões e debates sociais, contribuindo para que o assunto fosse difundido como verdade inconteste[...]”[24].
Assim, sem maiores discussões, ouvindo-se apenas uma das partes interessadas (pais), o projeto acabou aprovado, transformando-se na Lei 12.318/2010[25] .
Guarda relevo o fato de que a alienação parental, tal como consta na lei, define que se o guardião se mudar para local distante sem justificativa, fica configurada a alienação (artigo 2º, parágrafo único, inciso VII). Ora, pois o argumento principal para quem defende a alienação é que a criança teria direito ao convívio com o genitor (que não o guardião). Desta forma, o genitor que não defende a guarda também deveria ser proibido de mudar de residência (para uma distante). Como a lei não prevê isso, somente o cônjuge que detém a guarda fica proibido de mudar-se ou tem sua mudança de domicílio condicionada à obrigação de apresentar justificativa.
Se a lei de fato tencionasse preservar os interesses dos infantes, como falsamente afirma no artigo 3º, resguardando o direito dela (criança) ao convívio com o pai, então também o genitor que não detém a guarda teria necessariamente a obrigação de não se distanciar, mas não é isso o que acontece; o genitor que não detém a guarda tem o direito de não exercer o direito de visitação, sem que seja obrigado a exercê-la. Fica evidente que a lei busca proteger não os interesses das crianças, mas sim do adulto que não detém guarda.
Outro aspecto pernicioso da lei determina que o psicólogo ou psiquiatra que fizer os laudos para constatar a alienação parental terá de analisar ‘documentos dos autos’ (§ 1º do artigo 5º), quando o Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) e a Resolução nº 007/2003 determinam de que “[...] os psicólogos, ao produzirem documentos escritos, devem se basear exclusivamente (grifo nosso) nos instrumentais técnicos (entrevistas, testes, observações, dinâmicas de grupo, escuta, intervenções verbais) que se configuram como métodos e técnicas psicológicas para a coleta de dados[...]”. Ou seja: a inovação legislativa se imiscuiu em seara que não lhe pertence ao definir como o profissional fará seu trabalho e fazendo determinação divorciada do regramento desta profissão.
Infelizmente, oporem, o dispositivo mais preocupante desta lei é exatamente aquele que auxiliaria um genitor abusador de defender-se de acusações de abuso sexual, a saber:
“Art. 2º Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
[...]
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente”
Falemos então sobre a falsa denúncia: os crimes de abuso sexual no Brasil são subnotificados e o são por conta de nosso Sistema de Justiça Criminal onde as pessoas que denunciam os abusos geralmente são submetidas a julgamentos de toda sorte ou desacreditadas, além do julgamento social, pois, infelizmente em nosso país, um em cada três indivíduos acredita que a culpa do estupro é da vítima[26].
Um interessante artigo jornalístico da BBC[27] mostra as dificuldades que a vítima enfrenta para denunciar o crime:
"Não é incomum que elas sejam submetidas a uma desconfiança da sua palavra desde o início. Existe até um medo da vítima da estigmatização, do julgamento moral, de não ser acreditada quando procura as instituições. Isso precisa ser reconhecido e combatido" , disse a promotora.
"Você tem certeza que vai fazer isso (denunciar)? Essas marcas aí? Estão tão fraquinhas... até você chegar no IML (para fazer exame de corpo de delito), já vão ter desaparecido. Se você denunciar, vai acabar com a vida dele. Ele vai perder o emprego e não vai adiantar nada, porque vai ficar alguns dias preso, depois vai pagar fiança e vai sair ainda mais bravo com você" , dizia o delegado a Maria Fernanda.
"Os agentes públicos - da polícia e até do Judiciário - são membros de uma sociedade machista. E reproduzem esses estereótipos às vezes no atendimento dessas mulheres. Falta capacitação" , afirmou a promotora.
"O próprio delegado me culpou. Quando eu fui à delegacia, eu não me senti à vontade em nenhum momento. Acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncias. Tentaram me incriminar, como se eu tivesse culpa por ser estuprada" , disse a jovem em entrevista ao Fantástico.
"As investigações podem reproduzir estereótipos de gênero. Nesse caso, existe um vídeo e, mais importante, existe a palavra dela. Por que essas mulheres continuam sendo exaustivamente questionadas, cobradas nos mínimos detalhes? Elas têm suas palavras confrontadas o tempo inteiro, como se desde o início essa palavra não fosse digna de crédito", disse Chakian.
A dificuldade em perseguir a punição acaba desestimulando as denúncias. Em casos de vítimas maiores de idade, a ação é pública condicionada ao interesse da vítima em processar; em casos envolvendo menores, a ação é incondicionada, e isto se dá em razão do fato das crianças e adolescentes gozarem da proteção integral.
Em quaisquer dos casos, uma vez denunciado o crime à polícia, cabe à esta promover a investigação e colher provas suficientes para então submetê-las ao Ministério Público, pois este representa o Estado na busca do jus puniendi, e é a ele que cabe o ônus da prova.
Não obstante ser obrigação do Estado provar a autoria e materialidade do crime, pela Lei de Alienação Parental, eventual falha do Estado em coletar provas necessárias a condenação, acaba colocando sob os ombros do genitor guardião a responsabilidade por provar as acusações. Então veja-se que uma mãe, que crendo nas denúncias de seus filhos, acabe cumprindo sua obrigação legal (ao cuidado e à proteção) e denunciando a prática, corre o risco de, em caso de ineficiência do Estado em buscar as provas da denúncia, sendo injustamente acusada de incidir no inciso VIdo parágrafo 2º da Lei 12.318/2010: pode ela ser acusada de alienação parental apenas por defender seu filho.
E o cenário todo pode ainda ficar pior, pois está em discussão o projeto 4.488/2016[28] que quer tornar crime eventual denuncia caso a mãe não o consiga provar:
Art. 3.º – [...]
§ 1.º - Constitui crime contra a criança e o adolescente, quem, por ação ou omissão, cometa atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza.
Pena – detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos § 2.º O crime é agravado em 1/3 da pena:
I – se praticado por motivo torpe, por manejo irregular da Lei 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos;
As consequências mais perversas deste projeto, se aprovado, serão que: a) eventual falha do Estado em reunir as provas do crime será imputada à mãe, b) que será criminalizada por tentar proteger o filho, c) em caso de condenação da mãe por tal crime, a guarda será invertida em favor do pai, que pode ser um abusador.
Ainda que cause espanto, isto tem ocorrido amiúde, especialmente nos EUA, onde essa teoria SAP tomou maior crédito. Há um vídeo, disponibilizado pela “Safe Kids Internacional”, onde um rapaz relata como foi retirado da mãe e entregue ao seu pai abusador[29] [30]. Nos tribunais, sob o manto da falsa consideração do melhor interesse das crianças, os especialistas tem priorizado a manutenção das relações entre pais abusadores e seus filhos com o objetivo de assegurar os ‘direitos dos abusadores’[31].
No Brasil, o caso mais notório de inversão de guarda em favor de pai abusador foi o caso Joanna Cardoso Marcenal Marins[32]; o tribunal concedeu a inversão da guarda para o pai André Rodrigues Marins que, segundo o delegado Luiz Henrique Marques Pereira, titular da Delegacia da Criança e Adolescente, ‘sentia prazer em torturar a criança’[33]. Joanna, infelizmente, acabou falecendo em virtude dos maus-tratos e tortura.
Então temos que o uso da SAP para proteger abusadores é um perigo real e não fictício. Necessário pois que os operadores de direito e futuros operadores sejam devidamente instruídos dos perigos de sua aplicação, sob pena de colocar pessoas, em especial crianças, que segundo a Constituição (artigo 227) e a lei ordinária (caput do artigo 4 do ECA) tem de ter seus direitos priorizados de forma absoluta, em sério risco de vida.
6 – Do documentário “A morte inventada”:
Trata-se de um longrametragem brasileiro, em formato de documentário, dirigido por Alan Nino, que tem sido usado para ministrar aulas sobre a citada lei nas matérias de Direito de Família e Psicologia Juridica. Importante observação que se deve fazer é que todos os hoje adultos, outrora crianças, envolvidos nos casos citados mostram-se pessoas que realmente experimentaram graves sofrimentos em razão do desacordo entre adultos. Tais indivíduos não devem ser julgados, especialmente porque foram as vítimas dos fatos descritos.
Outra observação importante é que o documentário é parcial, só se preocupando em mostrar um dos lados; em nenhum momento foi dada oportunidade aos acusados de alienação parental de se defenderem. Para qualquer pessoa que busca estudar o assunto sobre a ótica do Direito, tal fato é de importante relevo, porque inobserva um direito fundamental, que é o da ampla defesa.
A nenhuma pessoa pode ser imputada uma conduta em desacordo com a legislação sem que lhe seja dada oportunidade de se defender, e quaisquer documentários ou vídeos que atribuam a um indivíduo conduta ilícita, quer seja no âmbito civil ou criminal, deve ser visto pelo operador de direito com extrema reserva. Essa reserva deve ainda ser mais acentuada porque os profissionais que defendem a teoria em dito documentário pregam que não se deve acreditar na palavra da criança[35]:
“[...] Os autores citados são unânimes em aconselhar a não se assegurar na palavra da criança quando esta diz que não quer conviver com o genitor ausente. Sugerem, por outro lado, que o genitor afastado deve perseverar no esforço de estabelecer e manter contato com o filho, mesmo sentindo a rejeição constante, humilhante e desmoralizante[...]”
Convenhamos que tal sugestão é extremamente preocupante para quem de fato se preocupa com a segurança das crianças, já que ao presumir que as crianças estão mentindo (ou sendo induzidas a mentir), poder-se-ia estar acobertando verdadeiros casos de abuso sexual.
Dito isso, vamos aos casos:
6.1 – Caso Sócrates, Karla e Daniela
Karla relata que só voltou a ver o pai aos 19 anos, quando saiu de casa porque a mãe a agrediu. Aqui finalmente temos um dado real que pode configurar abuso parental. Daniela relata que após ambas terem ido para os EUA ver o pai, este disse não ter buscado vê-las para preservá-las, ao que ela respondeu ‘você não buscou contato para preservar você’.
6.2 – Caso José Carlos e Rafaella.
José Carlos e sua atual companheira reservaram um apartamento na cidade de Recife para que a ex-esposa de José Carlos lá residisse com os filhos Rafaella e Rodrigo. Num determinado momento, a ex-esposa resolveu evadir-se de Recife com destino ao Rio de Janeiro.
Rafaella relata que ‘não sabe porque’ a mãe resolveu retornar ao Rio de Janeiro e mais adiante diz que ‘não sabe se o que o pai havia prometido para a mãe, se ele havia prometido voltar com ela e como não voltou ela teria resolvido voltar para o Rio’.
Em suma, a palavra chave para a compreensão da questão é que Rafaella NÃO SABE. Ela desconhece os motivos da mãe; não sabe na verdade o que aconteceu. Rafaella diz que ela e o irmão achavam que o pai era ‘filho da puta’, mas não diz ser a mãe responsável por eles terem chegado a esta conclusão.
Se a mãe de Rafaella houvesse dito aos filhos que o pai não prestava então poderia ser configurada a alienação nos termos da lei (art. 2, parágrafo único, inciso I da Lei 12.318/2008). Mais adiante, Rafaella relata que o pai exercia os direitos à visitas (ou seja: o pai não estava sendo tolhido da visitação), mas que sentia dificuldades em aproveitar esse período porque parecia que se aproveitasse, estaria ‘traindo a mãe’; relata ainda que sentia dificuldade em contar à mãe que havia se divertido, mas não menciona que essa dificuldade era por conta de algo que a mãe houvesse dito, de forma que essa dificuldade pode muito bem ser imputada ao conteúdo interno da então criança (em sentir-se na obrigação de estar ao lado da mãe) do que à intervenção externa da mãe.
Rafaella ainda diz que ‘você sempre escuta falar mal de seu pai, você sempre escuta dizer que ah, eu tenho de ligar antes para lembrar de seu aniversário senão ele não liga’ e, logo na sequência, ela admite que isso era verdade, pois ela mesma teve de ligar para o pai para que ele lembrasse do aniversário do irmão.
Ou seja: neste episódio em especifico a mãe não disse nada que constituísse campanha contra o pai; a mãe antes relatou a verdade dos fatos. A lei de alienação parental então pretende obrigar as mães a mentirem sobre o pai, omitindo falhas de caráter ou desinteresse dele pelos filhos? À mãe é tolhido o direito de falar a verdade sobre o pai para não que ser acusada de alienação parental?
Rafaella ainda conta que ligava para o pai apenas para pedir dinheiro e que ficava orgulhosa de dizer isso à mãe; ela relata que a mãe era tudo para ela e que para ela, negar o pai era uma forma de demonstrar isso. Não fica claro se essa conduta era incentivada pela mãe ou se era conduta ínsita apenas ao interior de Rafaella, isto é, não fica claro se a mãe era quem fazia com que Rafaella fizesse ou pensasse tal coisa. Rafaella ainda relata que ficou 11 anos sem ver o pai, então o interlocutor atento se pergunta: de fato esse distanciamento é culpa da mãe ou é possível que o pai tenha se acomodado na condição de ‘não posso ver os filhos e então não vou buscar vê-los’? Rafaella relata que ela ligava apenas para pedir dinheiro ao pai, não há sequer um relato de que o pai tenha iniciado o contato.
Em determinada parte da entrevista, Rafaella diz que teve uma mãe muito maravilhosa, carinhosa, atenciosa, mas que ao mesmo tempo falava muito mal do pai dela e coloca que isso fez com que ela criasse ódio ao pai e atrapalhou muito o relacionamento de ambos.
Neste ponto se vislumbra a possibilidade de ter ocorrido abuso parental por parte da mãe, todavia, é apenas um vislumbre, dado que pelas falas anteriores não ficou claro se a mãe fazia campanha falando gratuitamente mal do pai com o objetivo de separar pai e filho, ou se a mãe desabafava perto da filha sobre os problemas comportamentais do pai ou a falta de interesse dele com os filhos. Lembremos que esse homem sequer lembrava do aniversário dos filhos e ficou 11 anos sem vê-los. Imputar à mãe conduta temerária de abuso parental contra o pai quando não se comprova tal conduta (inclusive ouvindo a defesa dela) é temerário para qualquer operador de Direito.
O que se percebe é uma pessoa extremamente sofrida pela falta que lhe fez a ausência da figura paterna, mas que tenta colocar esse sofrimento como se fosse responsabilidade (sem nunca demonstrar o nexo de causalidade) da mãe, posto que colocar como responsabilidade do pai lhe seria muito doloroso.
6.3 – Caso Enéas e Marcelo:
O caso envolve disputa judicial existente, mas em nenhum momento os dados de referida disputa (dados judiciais) são expostos, e a única parte à que se dá voz é o litigante Enéas. O fato de o processo seguir em segredo de justiça não constitui escusa para que o autor do documentário não tenha franqueado os termos para o interlocutor, especialmente porque, no momento em que o autor do documentário expõe a visão de uma das partes torna-se ele obrigado (se quiser fazer trabalho imparcial) a fornecer ao interlocutor informações idôneas quanto ao caso posto em litígio. Quando não o faz, não pode o interlocutor sério ignorar que está sendo ofendido uma premissa básica do direito, que é a ampla defesa.
Outra questão a ser posta em enfoque é que Marcelo (filho) também diz que tem apenas alguns ‘flashs’ de duas brigas ocorridas, sem ser capaz de dar maior dimensão ao conteúdo das brigas. Também não resta provado de forma clara a alegada alienação parental nesse primeiro momento.
Marcelo relata que mesmo quando ouvia a mãe dizer algo errado que o pai tinha feito, ‘não ficava muito clara a imagem de pai que estragou tudo e fez besteira’. Ou seja: novamente não ficou configurada a tese da alienação.
Logo após ouve-se relato de Enéas, uma das partes envolvidas no litigio e é ele quem traz informação de alienação. Novamente a contraparte não foi ouvida.
Marcelo então relata que quando a mãe descobria que o pai estava vindo com oficial de justiça para ver os filhos, que ele, o irmão e a mãe se escondiam nas casas de amigos. Aqui sim pode estar caracterizada a alienação parental pois não obstante a ordem judicial autorizando o pai a ver os filhos, a mãe se omitia ao cumprimento.
6.4 – Caso Paulo (pai), Vitor e Mariana (filhos)
Relata que antes de iniciar novo relacionamento, que a mãe de seus filhos permitia visitas livres, mas que após a mãe começou a restringir o direito. Mais uma vez só uma das partes envolvidas está sendo ouvida.
6.5 – Caso S (mãe) e filho:
Pai usa a força e ameaça para distanciar mãe de filho. No fim do casamento, a mãe dormia no quarto junto com o filho porque tinha medo do pai. Após separação, pai passava todos os finais de semana com o filho e segundo relatos da mãe, quando retornava, o filho sequer olhava para a cara da mãe. Também aqui não se encontra nenhum dado sobre a contraparte que não aqueles fornecidos pela parte interessada. Sequer o suposto alienado (menor) é ouvido.
6.6 – Caso A (pai) e criança
O pai, supostamente alienado, relata que depois de 6 anos de casado, a criança nasceu, eles ficaram um ano juntos, até que ‘sem justificativa’, a mãe mudou-se levando a criança. Ele descobriu onde a criança estava e começou a visitar, mas as visitas ficavam cada vez mais difíceis, até que ele ingressou como regulamentação e, segundo ele, a mulher, para ‘se defender’ no processo de regulamentação de visitas, alegou abuso. Então relata que a psicóloga que atuou no processo judicial colocou no laudo de que existiam indícios de abuso. Afirma ainda, em sua defesa, que não foi laudo nem parecer. Oras, profissionais que atuam no judiciário não se manifestam sem que sejam em laudos ou pareceres, ou sem que o Magistrado atuante na causa tenha assim determinado.
Estamos falando de uma profissional da área, que atua no Judiciário, que deu parecer no sentido de que houve abuso. Oras, o pai (acusado de abuso) desqualifica a atuação da profissional e o autor do documentário não demonstra ter minimamente ido buscar, junto ao judiciário, informações mais precisas sobre se o que o pai alega é ou não verdade. Ouve-se apenas uma das partes interessadas – o acusado de abuso - que desqualifica o profissional do Judiciário, sem preocupação alguma com a busca de informações junto ao órgão competente.
Porque a profissional arriscaria sua carreira e sua credibilidade de forma gratuita, fazendo uma afirmação inverídica? Porque o diretor do documentário não se preocupou em buscar as informações junto ao Judiciário?
6.7 – Caso Hélio (avô paterno)
O suposto alienado alega que ele (avô paterno) e o filho (pai) foram acusados em um ‘pedido de providências’ no qual se alegava que ambos abusavam sexualmente da criança. Aqui é importante anotar que o pedido foi feito junto à Vara de Infância e não nas Varas de Família. Regulamentações de visitas e disputas de guarda são afetas às Varas de Família; as Varas de Infância são acionadas quando existe possível risco à criança.
Segundo ele o pedido de providências teria sido fundamentado em um parecer de uma psicóloga.
6. 8 - Das falas dos profissionais:
Só foram ouvidos profissionais em prol da alienação. Trata-se de uma visão parcial que qualquer profissional sério da área de Direito deve também ver com reservas.
6.8.1 - Alexandra Ullian, advogada e psicóloga:
Sugere que o genitor que ingressa com regulamentação o faz não para assegurar à criança o direito de visitações, mas sim para manter o controle. A oferta seria gerenciamento de controle.
Ora, pois que tal alegação desta profissional está dissociada do contexto social brasileiro, em que a regulamentação das visitas é necessária para que se preserve a rotina dos infantes. Não raro vemos casos de pais que retiram os filhos durante a semana e depois sequer os levam à escola no dia seguinte. A falta de criticidade de dita profissional é extremamente preocupante.
Ainda sugere que a alienação parental muitas vezes ocorre ainda quando o casal está unido; segundo ela, a mãe, que é quem mais cuida da criança, não qualifica o pai, não mostra à criança a importância do pai. Dita profissional mais uma vez esquece-se que os lares brasileiros são marcados pela desigualdade, com a mulher mãe tendo de arcar com todo o peso não só das tarefas domésticas, como também da criação e educação dos filhos (é ela quem tem de se ausentar ao trabalho para comparecer às reuniões, é ela quem tem de auxiliar os filhos nas tarefas) e muitas vezes a tarefa do pai se resume a trabalhar. Então a fala da profissional exige que a mãe adjetive qualificativamente um genitor que pouco faz pelo filho, sob pena de ser considerada como alienadora.
Lembremos que sequer a lei citada exige isso: a mãe deixar de qualificar o pai não constitui alienação para os termos da lei, mas só se ela fizer campanha difamatória contra o pai. A lei não define como alienação a mãe não qualificar, mas sim a mãe desqualificar.
Mais grave ainda é quando essa mencionada profissional alega que tem aumentado as denúncias de abuso sem ter a menor preocupação de provar o que diz. Quais estatísticas ela utiliza? Ou é apenas o que se define como ‘achoestatística’?
A profissional alega que havendo uma simples denuncia, imediatamente o genitor é afastado. Isso não é inteiramente verdade; a primeira atitude que se vê amiúde nos tribunais são juízes determinarem o direito de visitações junto aos CEVATs[36].
6.8.2 – Gerardo Carnevale – juiz de direito
Corretamente o magistrado afirma que laudos psicológicos que não tenham ouvido a outra parte não devem ser considerados. E é o que os tribunais tem feito, na maioria dos casos. Os juízes de primeira instância não tem determinado o afastamento total com base em laudo onde não foram ouvidas as outras partes ou com base em simples alegações. Obviamente os magistrados tem tomado providências para assegurar a segurança da criança, determinando visitas monitoradas junto aos CEVATs.
Mais adiante o magistrado diz que chega ‘um relato surpreendente’ de que o pai teria abusado ou a mãe maltratado. A surpresa do magistrado, data vênia, não se justifica, uma vez que pululam casos verdadeiros de abuso parental, prática infelizmente comum que ofende gravemente os direitos dos infantes.
Continua o magistrado alegando que os juízes, diante deste relato, ‘por via das dúvidas’ afasta, mas que esse não seria o caminho. Oras, discorda-se também deste posicionamento, pois o que deve ser observado é o interesse superior da criança. Uma vez chegando ao Judiciário qualquer alegação de abuso, os profissionais que lidam com os infantes têm que tomar a decisão mais benéfica à criança e, no caso de eventual prática de abuso (sexual ou maus tratos) obviamente que seria muito mais prejudicial à criança continuar a ter contato com o possível abusador do que dele ser afastada ou que esse contato fosse monitorado.
Mais adiante o Excelentíssimo Juiz alega que o processo demora muito e que decisão de afastamento causará prejuízos à criança. Oras, a morosidade do Judiciário é responsabilidade estatal. A falha em fornecer justiça célere não pode servir como desculpa para que não se afaste (ou não se determine visitas monitoradas) em caso de risco para a criança. O Estado que se esforce para implementar medidas que deem efetividade ao princípio constitucional que determina que as partes têm direito à uma duração razoável do processo.
6.8.3 – Desembargadora (não nomeada):
Alega que o afastamento total traria outro problema, pois não sendo verdadeiras as alegações de abuso haveria prejuízo para a criança e para o pai. O que a Excelentíssima Desembargadora não considera é se as alegações forem verdadeiras? Quais prejuízos o infante teria?
CONCLUSÃO
A alienação parental não é uma síndrome aceita pela OMS e não consta nos manuais porque os seus autores e defensores se desincumbiram do ônus de prová-la. Foi criada aparentemente como forma de defesa de genitores acusados de pedofilia contra seus filhos.
Apesar disso, inúmeros tribunais pelo mundo a tem abraçado, apesar de farta quantidade de profissionais que acertadamente a criticam.
No Brasil criou-se a lei de alienação parental, que foi baseada em um livro e revisada por associações de pais; trata-se de uma lei que não contou com debate para ser aprovada e só ouviu um lado.
No caso especifico do documentário em estudo, o diretor tampouco mostrou qualquer preocupação em trazer estatísticas ou sequer os dados dos processos envolvendo as pessoas em litigio.
De fato, existem no Brasil abusos parentais onde o genitor que detém a guarda tenta prejudicar o convívio com o outro; todavia não há documentação estatística da porcentagem de casos em que isso ocorre e não há estudos determinando o quão comum seria essa prática.
Os dados disponíveis muitas vezes ignoram a realidade extremamente sexista de nosso pais, a dificuldade que mulheres e crianças tem na defesa de seus direitos em juízo e o perigo de que a defesa da alienação parental seja utilizada para a defesa de acusados de abuso sexual contra os filhos.
O documentário em si não deve ser considerado como fonte para um jurista minimamente comprometido tanto com a verdade real, quanto com a acuidade da informação, já que trata-se de visão unilateral em prol da lei.
A proteção integral, ou o superior interesse da crianças, previstos tanto na Constituição Federal (artigo 227 da CF/88) quanto no Estatuto da Criança e Adolescente (caput do artigo  da Lei 8069/90) exige que:
“Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas ou de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão principalmente em conta o interesse superior da criança"[37]
Assim, estando em colidência o perigo de crianças estarem submetidas à abuso parental do genitor guardião (que tenta prejudicar o convívio da criança com o outro genitor) e o perigo de crianças terem de conviver com genitor que delas abusa sexualmente, o operador de Direito, ou o 'Estado-juiz' tem a obrigação legal de optar pelo risco menor, afastando o genitor acusado ou determinando visitas monitoradas.

[37] ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do AdolescenteComentado. Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério Sanches Cunha. Parte I, Capítulo 1, parte II, Capítulo I e 24. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 51-72, p.73-101 e p. 384-401