sábado, 26 de setembro de 2020

VIOLÊNCIA, PODER E MEDO. A LETALIDADE PSÍQUICA DA ACUSAÇÃO DE ALIENAÇÃO PARENTAL

 

VIOLÊNCIA, PODER E MEDO.

A LETALIDADE PSÍQUICA DA ACUSAÇÃO DE ALIENAÇÃO PARENTAL**

                                                                                                                                                  Ana Maria Iencarelli *

 **Este é um capítulo do Livro "A Invisibilidade de Crianças e Mulheres Vítimas da Perversidade da Lei de Alienação Parental - Pedofilia, violência e Barbarismo", Organizado pela Dra. Claudia Galiberne Ferreira e o juiz de Direito Dr Romano José Enzweiler, Conceito Editora.florianópolis, 2019.

       Violência. Comportamento emocional de ataque, geralmente reativo. É o medo do outro que provoca este tipo de resposta. Por vezes, experiências continuadas de medo da violência do outro, faz com que este indivíduo adote o padrão violência em suas diversas formas de expressão.

       Poder. Em resposta ao medo de ser submetido ao outro, o homem tem uma gana de poder para se sentir oprimindo o outro por quem se sente ameaçado.

       Medo. Sistema de alerta à ameaça de ordem física, sexual e psicológica, de resposta sistêmica. A única das quatro angústias básicas do ser humano, desde a época das cavernas, que não foi solucionada. A fome, o frio, e a dor, angústias que tiveram solução, mesmo que em se considerando a desigualdade de sistemas econômicos que se instalaram ao longo dos séculos. No entanto, o medo é a angústia que permanece.

       Nós, humanos, nascemos muito incompletos, com vários sistemas ainda por amadurecer. Se considerarmos os mamíferos herbívoros como parâmetro, um bebê desta espécie já se põe de pé e dá os primeiros passos em menos de 20 minutos. Nos mesmos primeiros 20 minutos um caprino já busca e encontra por si só o alimento preferencial dos mamíferos, o leite materno.

       O medo, a angústia que não conseguimos “resolver” como as outras, é o mecanismo de alerta, em várias intensidades, que entra em ação quando se desenha uma ameaça à sobrevivência. Ele tem a função dupla de proteger a vida e de evitar a morte. Referimo-nos aqui à morte corporal e à morte psíquica. O medo como defesa tem rápida resposta por estar implicado na ameaça à vida.Busca a fuga, o enfrentamento com embate, ou a submissão, como última opção de sobrevivência psíquica.

       Mesmo convivendo, com os vários níveis atuais de morteapontados pela Ciência, que incluem até o que a Medicina denomina de zona cinzenta, estados de coma irreversíveis, com morte relativa a determinados conceitos de funções vitais, faz-se necessário refletir sobre a morte psíquica, e seus vários estados, por vezes, também irreversíveis, mesmo que a vida biológica se mantenha. A exposição continuada ao impacto do extremo estresse produz repercussões psicopatológicas da ordem do estresse pós-traumático deixado nos soldados que foram à guerra. Quando a guerra era, essencialmente, a exposição à morte e às mortes.  As conhecidas “neuroses de guerra”, que abrangiam desde uma leve irritabilidade com certos ruídos, até quadros persecutórios invalidantes, têm correspondência nas sequelas instaladas nas crianças que sofrem abuso sexual incestuoso.

       O neologismo alienação parental, entre nós, transformado em lei, conjuga Violência, Poder e Medo. É a nova forma de violência contra a mulher e a criança, é a vivência do Poder que esmaga a vulnerabilidade, é a prática da exacerbação da sensação de medo agudo que se torna crônico. Cunhado com o propósito de defender pedófilos/ofensores, promovendo a perda de guarda da mãe e seu afastamento, com o rompimento da vida da criança, tem efeitos deletérios pela sua característica predadora de afeto, de continuidade, e, sobretudo, de adversidade nefasta da maturação de estruturas e funções cerebrais, desrespeitando assim o desenvolvimento infantil. Como preceito dogmático, a perda da guarda da mãe por alegação da prática de alienação parental, avançou sobre a advertência e a multa, previstas na lei, e se tornou protagonista, e, com celeridade espantosa.

       É do conhecimento de especialistas e também de leigos que maus tratos físicos, sexuais e emocionais, durante o desenvolvimento infantil, tenham relação com dificuldades emocionais e problemas psiquiátricos na vida adulta. O sistema límbico responde por esta função de processar as emoções.No entanto, estudos e pesquisas, (TEICHER, M. H.) evidenciam que não se restringe ao desenvolvimento psicológico apenas. Não muito difícil de entender, os abusos sexuais intrafamiliares perpetrados a uma criança, também danificam estruturas e funções cerebrais que estão em desenvolvimento.

       O ingrediente Medo, protagonista do impacto do extremo estresse que ocorre na vivência do abuso, é apontado como relacionado à atrofia de estruturas cerebrais, tais como o hemisfério esquerdo, o hipocampo e a amígdala, e a já conhecidarelação com o sistema límbico, apontado como responsável pelo processamentodas emoções. O hipocampo é tido como de importância na função da memória verbal e na memória emocional. A amígdala está relacionada ao conteúdo emocional da memória, principalmente sentimentos de medo e reações agressivas. Violência e medo parecem emanar da mesma estrutura cerebral. E, como o corpo da criança está em crescimento, faz-se necessário considerarque este crescimento sofre alterações de hipertrofia ou de atrofia fisiológica, o que acarreta alteração da função que esta estrutura exerce.

       Se, a principal função da amígdala é filtrar e interpretar informações relacionadas com a sobrevivência e necessidades emocionais prementes do indivíduo, o que desencadeia as reações agressivas por proteção e preservação da vida, temos o medo protagonizando a resposta ao impacto de extremoestresse. E, na sequência, a violência reativa.

       Vítimas de incesto, para além das sequelas psicológicas já conhecidas que se processam por conta do sistema límbico, têm uma acentuada incidência de anormalidades nos traçados de EEGs (eletroencefalogramas), configurando quadros de Epilepsia de Lobo Temporal, com um percentual considerável entre grupo de pessoas que sofreram abusos precoces. Irritabilidade, ansiedade, impulsividade,delinquência, abuso de substâncias, impulsos automutiladores, pensamentos ou tentativas suicidas, são alguns dos comportamentos relacionados ao efeito do abuso precoce sofrido, físico ou sexual. Lembrando que além das alterações de estruturas cerebrais, a superexposição ao extremo estresse, também os neurotransmissores que inibem e atenuam a excitabilidade elétrica sofrem uma redução, permitindo assim que a atividade elétrica seja excessiva, o que pode desencadear crises, inclusive, convulsivas.

       Outro aspecto pouco estudado se refere à questão endocrinológica das crianças vítimas de abuso sexual continuado. Como se observa, a maior incidência de penetração nas atividades sexuais entre adultos e crianças é a penetração anal digital. O dedo indicador ou o dedo médio são, muito frequentemente, usados para praticar atos libidinosos com meninas e meninos porque não deixam as famosas e ainda demandadas em juízo, “provas materiais”. A penetração anal digital não rompe hímen nem deixa sêmen. Este, por vezes é deixado sim no reto, principalmente de bebês porque se mistura nas fezes das fraldas. Também sem possibilidade de comprovação de materialidade porquanto não se tem notificação nenhuma das ocorrências com bebês. Só temos constatações através de Operações da Polícia Federal, que restam em sigilo. Apenas a notícia destas imagens e vídeos feitos com bebês encontrados pelos policiais nas páginas da pornografia infantil da internet. Portanto, nenhuma contabilização. Só a indignação dos que são obrigados a ver por serviço.

       A massagem feita por via anal em órgãos internos da criança também não são contabilizados nem estudados. Mas, não é difícil pensar que um dedo de um adulto em relação às dimensões do corpo das crianças de 2, 4, 6 anos, alcança glândulas como a próstata nos meninos e os ovários nas meninas, estimulando-as na produção precoce de hormônios sexuais que fazem parte do crescimento hormonal que se faz anômalo. Não encontramos literatura desta questão. Temos apenas a constatação empírica.

       É necessário que haja uma confluência de conceitos e funcionamento que transbordam a questão das sequelas psicológicas, para que se possa compreender os diversos vetores do desenvolvimento infantil. Um olhar sobre o desenvolvimento cognitivo, incluindo algo sobre a aquisição da memória, e o desenvolvimento linguístico.

       Como já assinalamos, o bebê-homem nasce com muitas incompletudes, que o impelem a ter necessidade de dois alimentos: o nutricional e o afetivo. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências de um adulto que lhe seja especial. O leite e o afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados básicos, são sua única possibilidade de continuar existindo. O afeto é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental saudável e da saúde como um todo. E o cuidado é a expressão deste afeto de qualidade.Por isto ele se apega a uma pessoa preferencial que o alimente nestes dois aspectos. A experiência afetiva com esta pessoa, que depois, gradativamente, vai sendo multiplicada, permitirá seu pleno desenvolvimento. O afeto como cuidado tecerá os alicerces de que precisa para crescer. Seu desenvolvimento cognitivo, pela precariedade de estruturas e suas funções, se dará pela experiência. Movimentos espasmódicos e repetitivos se selecionam na busca pela intencionalidade, se combinando de maneira cada vez mais ampla.Por ensaio e erro o bebê vai aprimorando seus movimentos e conseguindo cada vez mais o resultado que deseja. A experiência é a base de todo o desenvolvimento cognitivo.

       A primeira fase é o período sensório-motor, de 0 a 18 meses, o funcionamento é puramente empírico, as aquisições se sucedem por repetição e depois por combinação de movimentos. É a intencionalidade experimentada nos movimentos, originalmente, espasmódicos que atesta o nascimento da inteligência. Repetir o movimento para obter determinada sensação, tátil, auditiva ou visual.

       A infância, portanto, é a fase do raciocínio concreto. Ou seja, até os 11 anos, mais ou menos, a criança só consegue raciocinar através da experiência, sempre usando a repetição como critério de qualidade na aquisição de qualquer conhecimento. O pensamento lógico se amplia com a possibilidade, a partir dos 11/12 anos, do período das operações abstratas, para se completar em torno dos 15/16 anos. Só então o adolescente é capaz de prescindir, totalmente, do estímulo concreto para raciocinar.  

       O desenvolvimento linguístico também é embebido de afeto. Os sons se seguem ao choro, única comunicação inicial, e vão sendo selecionados pela audição dos fonemas da língua-mãe do bebê. As palavras são afetos ou estados. Palavra-frase, depois as combinações de mais de uma palavra, como no desenvolvimento cognitivo, são selecionadas por ensaio e erro. Mas todas as palavras são concretas, experienciais.

       A memória tem um funcionamento que vai adquirindo organização ao longo da infância. Nos primeiros anos, dos 03 aos 10/12 anos, as operações mnêmicas vão se tornando cada vez mais precisas. Para isso a organização no armazenamento/resgate precisa ser repetida à exaustão. De par com o desenvolvimento cognitivo e linguístico, a memória se expande: pessoas, objetos, lugares e, por último, tempo. Por isto, uma criança de 3/4 anos é capaz de relatar um abuso sexual sofrido contando quem, como e onde. Durante toda a infância este processo é investido porque é preciso adquirir uma boa memória para as exigências da aprendizagem escolar e a aprendizagem experiencial para a vida. Por isso, a alegaçãode falsas memórias na infância, não tem também como se instalar se não há um conhecimento experimental.

       O esquecimento, sob a forma de recalcamento, mecanismo de defesa do ego, entra em ação para evitar a morte psíquica quando o trauma é muito intenso. O esquecimento/recalcamento é grave, e muito comum quando a criança não é acreditada e permanece sofrendo um trauma cumulativo (continuado).

       Portanto, o desenvolvimento da criança está pautado na experiência, no seu mundo concreto que se amplia com a escolaridade, mas sempre necessitando do que passa pelos seus sentidos. A experiência de violência, de qualquer ordem, causa uma instabilidade no organismo em desenvolvimento, acionando o medo como sistema de alerta de sobrevivência.

       Considere-se ainda que em consonância com o desenvolvimento cognitivo, linguístico e da memória, a sua inserção social lhe demanda um sistema de regras e leis de convívio, que vai sendo adquirido ao longo da infância. Através do convívio, primeiro familiar e depois escolar, também pela experiência concreta, a criança aprende este conjunto de regras que formará aos poucos seu código de ética, seu código moral, simples como sua maneira de raciocinar.

       É neste terreno, ainda em desenvolvimento, que ela inicia sua concepção e experiência de Poder. A violência da transgressão pela violação de seu corpo,embaralha todos os rudimentos fundamentais de seu código de ética de convivência familiar. Este é um obstáculo para a boa formação de uma ética e uma moral adequadas à vida de cidadania.

       Ocorre que, apesar de sua lógica fisiológica, todasas alterações carecem de pesquisas entre nós. Sofremos da deficiência de estudos científicos que sigam padrões objetivos. O comportamento humano pode ser objetivado. Com o advento do dogma da alienação parental, por exemplo, temos a impressão que o abuso sexual intrafamiliar acabou, contrariando os escores brasileiros de pedofilia. Há que se ter a curiosidade científica de saber que efeitos fisiológicos, psicológicos, e sociais são promovidos pelo impacto do extremo estresse continuado do abuso sexual intrafamiliar.

       A realidade hoje é que os conhecimentos científicos pesquisados e evidenciados ao longo de muito tempo estão sendo ignorados. A insensibilidade está instalada banindo por completo o mais simples bom senso. Parece haver intencionalidade na atitude de punir a mãe que denuncia um abuso ou violência, e a criança que revelou uma questão incestuosa. O ataque à maternidade e à infância, promovido pela lei de alienação parental é indelével. A criança relata um abuso sexual intrafamiliar, fornece detalhes, descreve, pormenorizadamente, aspectos e momentos da prática sexual de um adulto, e é, sistematicamente, desqualificada.

       O título dado à criança de “Sujeito de Direito” não lhe é conferido porque sua voz não é reconhecida. As teorias, os estudos, as pesquisas e a experiência de especialistas, não são considerados.

       É a Violência que subverte a ordem da realidade. Para uma mente em formação, que busca, rigorosamente, os dados de cada conhecimento, este é um momento de destruição.

       É o Poder absoluto e déspota que obstrui a estruturação de algum Código de Ética, quando a regra de certo e errado é rasgada por alguém que a criança ama, obedece, depende, e, sobretudo, se identifica. E este Poder ultrapassa a figura de autoridade do pai, e estupra de novo. É o Poder do Estado que a criança tem seu primeiro contato e que a oprime e devasta. É o Poder destruidor da Instituição que marcará esta criança para sempre.

       É o Medo que vai permanecer. Medo de sofrer punição, medo de fazer a mãe ser espancada, presa ou morta, as ameaças do abusador, medo da culpa que se atribui, medo de perder os privilégios dados na sedução do abusador, medo de lembraro segredo que lhe persegue diuturnamente, medo de esquecer e soltar uma informação do segredo. Medo com ódio pela acusação de mentira que lhe é atribuída, por uma violência.

       E, ao revelar, como desejou por muitos dias, semanas ou meses, não alcança o sonhado descanso. É punido com a Privação Materna prescrita pela Lei de Alienação Parental. Entregue, judicialmente, ao pai, como tem sido de praxe, na maioria das vezes com aparato policial de armas em punho, esta criança sente um Medo muito maior. Como nunca sentiu antes. Precisa desistir.Inicia-se o processo de adaptação ao abuso sexual incestuoso. E rapidamente, por economia psíquica, ela faz a Retratação. Exigida  sofrida.pelo abusador, almejada pelos operadores de justiça que então se sentem convencidos de que acertaram.

       Finalmente, a prova do Sofisma: A mãe denunciou um abuso sexual incestuoso,

                                                             O abuso não logrou provado, materialmente,

                                                             LOGO: é alienação parental da mãe.

       A indução ao erro é parte do nascedouro de inadaptados e incapacitados para o convívio afetivo-social. A afirmação que segue o “logo”, após as duas premissas instala uma condução sem sustentação. Uma lei nem sempre é uma questão política voltada para o coletivo. Uma lei, é, antes, uma questão de Poder, que beneficia um pequeno grupo. A História nos ensina:

       A Colonização era legalizada.

       O Comércio Humano, a Escravidão, era legal.

       O Apartheid era legal.

       O Holocausto era legalizado.

        O Maternicídio é legalizado.

       A nova forma de violência contra a mulher se vestiu de nova pele: lei da alienação parental. Arrancar um filho de uma mãe por ela ter feito uma denúncia de abuso/violência tem uma equivalência traumática de perda por morte do filho. Institucionalizada, esta violência mata o Direito à Maternidade, deixando assim a mãe morta por dentro.   

       A Tortura do Estupro Continuado de Crianças é amparada e sustentada pela Lei de Alienação Parental. É legal. Tornou-se dogmática. O Poder sempre atraiu os fracos e perversos.

“Desistir? Não. Eu estou aqui, tenho vocês para falar. E meu filho? Com quem ele vai conversar quando ficar triste? A quem ele recorre? Ele contou os abusos, contou para mim, contou para a delegada, com detalhes, e foi preso enquanto dormia. A polícia arrombou a porta e entrou de arma na mão. Ele me pedia ajuda, chorava, Não entendia nada. Eu penso como ele está sozinho. Não desisto.”

“Mãe, mãe, por favor! Eu não quero ir! Ele enfia o dedo no meu *! Ele manda eu chupar o pinto dele! Eu não quero ir!”

“O meu pinto está machucado. O meu pai pega ele, abre, olha lá dentro. Ele não mexia no meu pinto, só no meu bumbum. Agora ele faz dodói no meu pinto.”

“Eu tava vendo filme, aí ele começou a passar o pinto na minha pepeca, eu bati no pinto dele, e ele me bateu. Eu tava quietinha”.

“O meu pai tirou foto do meu bumbum, do meu bumbum do meu bumbum, e do piupiu dele junto com meu bumbum. Foto no computador”.

“Eu tenho medo do meu pai. Ele diz que toda vez que eu for na casa dele ele mexe no meu bumbum. E ele mexe. Ele disse que minha mãe vai ser presa. Ele é amigo da juíza! Eu tenho muito medo dele.”

Meu pai disse que vai matar a minha mãe e tacar fogo em você, vó. Ele vai matar a minha mãe se eu falar que ele mexe no meu bumbum.”

“meu pai faz ginástica com o pinto. Ele fez ginástica no meu pinto e o “tio” fez ginástica no pinto do papai.”

“Por que o leitinho do pinto do papai tem gosto estragado?”

       A mãe não desiste. Mas estes meninos e meninas, de idades entre 3 e 9 anos, todos entregues, judicialmente, ao pai que foi denunciado pelos próprios filhos, desistem. Cansam. Entram em processo de adaptação, e aprendem as posições que deixam menos dores. Então, para apaziguar um pouco a mente, que tem que, incessantemente, lembrar de não esquecer e esquecer para não lembrar, encontra a Retratação. Neste momento, quando nega o fato dos abusos continuados, ele é acreditado pelos operadores de justiça. Esta é uma violência de dimensões imensuráveis. O Poder esmaga, e o medo se cristaliza.  

       Violência. Poder. Medo.

 

 

Referências Bibliográficas:

  1. BELLIS, M.D., KESHAVAN, M.S., CLARK, D.B., CASEY, B.J., GIEDD, J.N., BORING, A.M., FRUSTACI, K., e RYAN, N.D,”Developmental traumatology”, part 2: braindevelopment” in Biological Psychiatry, vol 45, n.10. 1999.
  2. BOWLBY, J., “Soins Maternels et Santé Mentale”. Organisation Mondial de La Santé. Genève. 1954.

3.      CALVI, B., “Abuso Sexual em La Infancia – Efectos psíquicos” Lugar Editorial. Buenos Aires. 2009.

4.      CHILDHOOD, “Escuta de Crianças e Adolescentes em Situação de Violência Sexual – Aspectos Teóricos e Metodológicos”.EdUCB. Brasília. 2015.

5.      CHILDHOOD, “Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência Sexual – Metodologias para tomada de Depoimento Especial”. Appris Editora. Curitiba. 2017.

6.      DIAS, M.B., “Incesto e Alienação Parental – Realidades que a Justiça insiste em não ver”. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2010.

7.      ENZWEILER, R. J., FERREIRA, C. G. Síndrome da Alienação Parental, uma Iníqua Falácia. Revista da ESMESC, v.21, n.27. Santa Catarina, 2014.

8.      FORTES, C. “Todos contra a Pedofilia”. Arraes Editora. Belo Horizonte. 2015.

9.      GARDNER, R., “True and False Accusation of Child Sex Abuse”. Creative Therapeutics. 1992.

10.  IENCARELLI, A.M.B., “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”. Zagodoni Editora. São Paulo. 2013.

11.  MAZET, Ph.,/HOUZEL, D., “Psychiatrie de l’Enfant et de l’Adolescent”. Maloine S.A. Éditeur.Paris 1979.

12.  SOTTOMAYOR, M.C., “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”. Edições Almedina. Coimbra. 2011.

13.  SOTTOMAYOR, M.C.,”Temas de Direito das Crianças”.Edições Almedina. Coimbra. 2014.  

14.  TEICHER,M.H.,”Wounts that timewon’theal: the neurobiology of child abuse”. In Cerebrum, vol.2, n.4. Dana Press. 2000.

ABUSO SEXUAL, aborto, estupros diversos, sempre uma tatuagem em meninos e meninas

 

ABUSO SEXUAL, aborto, estupros diversos, sempre uma tatuagem em meninos e meninas.

     Este tema incomoda só em pensar. Mas, há alguns todos ficamos indignados com a gravidez de uma menina de 10 anos. Foram 84 meninas de 10 a 14 anos que dão à luz, em um trimestre, no nosso país. As notificadas. E quantas foram as que pariram em casa? Nestes números temos apenas as ocorrências que crescem no ventre de uma criança por 9 meses e nascem. E as ocorrências que evitam, por razões óbvias, o canal vaginal das meninas? Sabemos que o abuso sexual é um crime quase perfeito. Não deixa marcas, não permite a prova, portanto. Temos apenas duas pessoas na cena do crime: o abusador e o abusado. Logo, temos apenas 1 única pessoa que poderá relatá-lo.

     As meninas, mesmo antes da menarca, a primeira menstruação, podem vir a engravidar pela atividade hormonal que já está em curso. Mas o corpo não comporta uma gestação, colocando assim sua vida em risco. Este, aliás, é um dos 3 itens previstos na lei do aborto legal. Lei de 1940. Os outros 2 itens dizem respeito ao estupro, e à anencefalia. Assim, aquela menina que provocou uma comoção social, estava contemplada com 2 dos 3 itens do aborto legal. Mesmo assim, vimos um deslocamento do foco da questão, o abuso sexual continuado que sofria desde os 6 anos, aproximadamente. A questão passou a ser uma posição moral, alegada religiosa, radicalizada, que passou a estuprar a menina de outra maneira. Desconsiderados os estupros continuados, e o risco de morte que a menina estava exposta por uma gravidez precocíssima, a lei foi violada. Divulgação da identidade da menina garantida pelo ECA, divulgação do endereço de moradia da criança. Nada detinha a fúria das pessoas que defendiam uma posição ideológica religiosa, atropelando a lei civil. Desrespeito. Insensibilidade. Hoje, mais uma menina, 11 anos, no mesmo Estado, foi hospitalizada.

No entanto, o Ministério da Saúde emite Portaria que visa a intimidação e o constrangimento. Não se exige que os médicos notifiquem os abusos que causaram fissuras anais, (notificação obrigatória pelo artigo 13 do ECA),mas vai se exigir que se notifique quando a interrupção legal da gravidez for pedida? Além da perversidade de propor mostrar a imagem ultrassonográfica do embrião/feto para a menina se assombrar o resto da vida.

     E os meninos? Pedófilos praticam estupros em meninos. É equivocada a impressão de que o abuso em menino implica em homossexualidade do abusador, e vai produzir um homossexual no abusado. Apesar de ser encenado em terreno de sexualidade, o abuso sexual não diz respeito à sexualidade. O abusador não é um hiperssexualizado, não é um tarado. O abuso sexual refere-se não ao prazer sexual, mas ao gozo do Poder absoluto. É a sensação de Poder advinda da dominação, da opressão do outro, que importa para um abusador. Assim, há um enorme número de abusos sexuais intrafamiliares que acometem os meninos, mais sub-notificados do que os casos de meninas.

     Uma evidência disto é o número crescente de vídeos pornográficos de abusos sexuais em bebês. Esta é a nova formatação da Exposição Sexual, a Intrafamiliar, usando bebês em cenas degradantes. Os bebês não são aliciados pelos pedófilos da internet. O material pornográfico de bebês é todo doméstico, familiar. O corpo de um bebê, como o dos meninos, e das meninas de menos de 10 anos, não possui nenhum atributo de sensualidade. E os bebês ainda contribuem com o pacto do segredo blindado, porquanto ainda não adquiriram a linguagem. Mas, a voz da criança não tem sido escutada nem considerada. Absurdos têm sido cometidos, com nossa omissão, para o acobertamento de pedófilos abusadores que descumprem a interdição ao incesto, o marco civilizatório da humanidade.

O abuso sexual de criança também ocorre em Público

 

 O abuso sexual de criança também ocorre em Público

     Temos a equivocada impressão de que o abuso sexual só acontece na calada da noite, em ambiente fechado. O abuso sexual de crianças e adolescentes acontece de noite e de dia, no cantinho privado ou em meio às pessoas da família, no banho de mar, disfarçado por baixo de um determinado edredon na sala de televisão, ou explícito e público.

     Era verão, um final de tarde de domingo. No ponto carioca apelidado de “baixo-bebê”, em meio àquela multidão de bebês, crianças, mães, pais, babás, avós, uma família se preparava para voltar para casa. A mãe se ocupava do bebê recém-nascido, um pouco mais de 1 ano de idade. Este pai, ali no calçadão em meio a todos, a despeito de trocar a menina, tirou seu biquíni e colocou-a escanchada na sua barriga, também nua. O roçar de sua genitália na barriga e nos pelos da barriga do pai produziram uma resposta imediata: uma sensação prazerosa. O alheamento da menina fez-se visível, o pai parecia se orgulhar de estar como “o dono”, também se satisfazia com o contato de intimidade excitante pele-mucosa, pele dele, mucosa genital dela, por ele estabelecido, a mãe não querendo ou não podendo ver, ficava com o recém-nascido. Quando alertada, preferiu continuar não vendo. O pai, então, atravessou a extensa faixa de areia, levou a menina até a água, e, depois de alguns minutos, voltou com a pequena menina extasiada, como que paralisada na mesma posição. Uma cena de masturbação pública de uma menina quase bebê.

     A atitude desinibida e confiante do abusador opera uma inversão na sensação de dúvida nas pessoas em torno. É tão explícito que, rápida e facilmente, afastamos a percepção que estamos tendo, desviamos nosso olhar, não estamos mais vendo o que estam0os vendo. E, muitas vezes, ainda nos culpamos por termos tido aquele pensamento, aquela mente suja passa a ser a nossa.

          “Ele entrou no mar com o fulaninho no colo, chorando sem querer ir, passou o quebra mar, ficou no fundo com o filho no colo por algum tempo. Quando saíram, o menino não chorava mais, e ele estava com ereção. Fiquei chocado e imobilizado, não fiz nada, não sabia o que fazer, desviei o olhar achando que estava vendo “coisas”. Só hoje sei o que aconteceu.” (Relato de um tio do menino, 4 anos, abusado pelo pai.)

     Sair do mar com uma criança no colo e evidência de ereção compõem uma cena tão repugnante que muitas vezes nos damos explicações mudas, preferindo, como aquela mãe citada, não ver o que vimos, porque esta aberração, como se nada fosse, não cabe na nossa mente.

     A criança abusada, frequentemente, é mantida pelo abusador em seu colo em lugares públicos, em festas familiares, até em festas de aniversário de outra criança. Esse comportamento está relacionado a 3 fatores: o primeiro refere-se à compulsão do abuso, ao prazerzinho da pequena excitação ou ereção do abusador; o segundo ao prazer da onipotência delerante do “ninguém me pega, faço na frente de todo mundo e ninguém vê”; o terceiro refere-se ao medo de ser denunciado pela criança neste tipo de situação de mais difícil controle sobre sua vítima. Este a mais de adrenalina que tanto aprecia.

          “Mãe, aqui nesta foto tinha uma coisa dura embaixo de mim, era no colo do pai, e ele me segurava, eu queria ir brincar com meus primos e ele me apertava.” (Menino de 7 anos, abusado pelo pai, vendo uma foto do aniversário do irmão menor.)    

     Outra situação de abuso público, muito frequente, se passa na festinha da menina de 6-7 anos. A música que divide radicalmente opiniões, mas para parecer “estar por dentro da moda”, a festinha passa a tocar, as meninas se põem a dançar até o chão com poses sensuais explícitas, logo rodeadas pelos adultos a filmar e fotografar, mas, sobretudo, a olhar. Tios, avôs, outros pais, olham com interesse masculino adulto, com fantasias sexuais. É uma sessão de voyeurismo público compartilhado por todos que, babando, parece se divertir muito, com o exibicionismo, atendido pelas meninas ainda muito pequenas para saber qual o tipo de satisfação que estão provocando naqueles homens adultos.

         “Vamos parar de dançar porque você me deixou de pau duro”. (Disse o tio-padrinho à aniversariante em seus 15 anos, no meio do salão cheio de pessoas, familiares e amigos.)

     Este é um capítulo de meu livro “Abuso sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”. São muitas as formas de abusar de uma criança, inclusive na presença de muitas pessoas.  

O ECA e a Sociedade Partida - Final

 

O ECA e a Sociedade Partida - Final

     Verificamos que conceitos relativos ao desenvolvimento da criança são distorcidos de tal maneira que fica muito difícil para a necessária organização da mente em crescimento. Proteção, e o que acontece é a negligência. Liberdade, e o que acontece é a lassidão. Saúde, e o que acontece é o esgoto que passa em vala aberta em frente à casa precária. Educação, e escolas sem carteiras de estudo, sem banheiros. Alimentação, e as falhas da única refeição na escola no lugar do estudo. Esporte, e o jogo de pé no chão e bola rasgada. Lazer, e o gueto que proíbe a mobilidade urbana nas cidades partidas. Profissionalização, e o comércio de drogas que convida desde os 10 anos. Cultura, e o ensino da violência. Dignidade, e o cotidiano humilhante.

     Estas distorções deformam a mente em desenvolvimento. Num tempo em que a clareza de atitudes é fundamental, a criança recebe mensagens ambíguas, contraditórias ou antagônicas. As combinações, as regras, as leis flutuam, e mostram uma seletividade. Todos são iguais perante a Lei? Onde? Quando? Ela sente os maus-tratos, sente a negligência, sente a violência, violações que horrorizam, mas logo são esquecidas. O tempo midiático não é processual, é fenomenológico, e já deixou até de ser analógico. Por outro lado, o tempo jurídico com a Cultura Recursal, é infinito.   Nada compatível com o tempo e as necessidades da criança.

     Estes motivos fazem parte da raiz da relação com a lei. Se não esteve presente, se não foi experimentada na infância, não será adquirida na vida adulta. O processo fica falho, como se continuasse à espera desta aprendizagem. Assim vemos, por exemplo, o comportamento infantil de monitoramento para que ocorra a obediência à lei. É aquele caso emblemático do motorista que fura o sinal, o semáforo vermelho, e só para ao ouvir o apito do agente. Perguntado pelo guarda se não viu que estava vermelho, responde que viu o sinal vermelho mas não viu o guarda. Não raro isto acontece na presença de um filho ou filha, e não raro também, pergunta se o agente não pode “quebrar um galho”, oferecendo uma nota de R$ 50,00, ao que também é assistido pela criança. Como “consertar” isto? O que está sendo falado para a criança é que só se ela estiver sendo vigiada, ela deve obedecer a regra. Se ninguém estiver vendo, ela pode burlá-la. E é precisamente isto que acontece com as violações contra a criança e o adolescente quando se trata da prática de violência doméstica por exemplo. Também a criança assiste a mãe ser agredida verbal ou fisicamente, mas sem que hajam “guardas”, e obrigando a criança à conivência da violência pela intimidação da força. A voz destas crianças tem sido desqualificada por aqueles que deveriam honrar a sua Proteção Integral, por aqueles que operam a lei.

     Aprendemos a denunciar. Mas algumas denúncias são invertidas contra as vítimas. As queixas de uma criança devem ser provadas por ela mesma em toda sua vulnerabilidade. A vítima criança/bebê, tem o ônus da prova. Não se investiga. É abreviado este caminho pela acusação à vítima. É mentira, é fantasia, fala o que mandaram falar, como se a criança fosse um boneco de posto, desconsiderando seu relato pormenorizado e emocionado. Não são apenas palavras, há a linguagem corporal no relato de uma criança vítima. Há emoção. Não vivemos em estúdio cinematográfico de Hollywood. Mas, é como se a criança e a mãe fossem atriz e diretora para executar uma revelação espontânea de uma criança, descrevendo um fato que lhe foi imposto por um adulto intrafamiliar.

     Não temos praticado a garantia do Direito à Dignidade. Não é digno que a criança não tenha as melhores condições para seu pleno desenvolvimento. Já se passaram 30 anos. Estamos bem atrasados. 

O ECA e a Sociedade Partida Parte II

 

O ECA e a Sociedade Partida  -  Parte II

     Afinal, para que servem as leis? E o ECA, para que serve esta lei 8069/1990? Tão completa, copiada por tantos países, será que seu Artigo 1º, o primeiro mesmo, é cumprido?

“Art. 1º  Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.”

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.

§Parágrafo único. “Os direitos anunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.”

Art. 4º “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

Art. 5º  “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

     Estamos somente nos 5 primeiros Artigos. São 267 artigos no formato original do ECA, a lei 8069/1990. A estes Artigos, foram acrescidas mais de 30 Normas Correlatas, que são leis com vários outros artigos, e mais de uma dezena de Atos Internacionais, Protocolos e Convenções, junto aos quais, o Brasil é signatário, o que têm peso legal no nosso corolário jurídico. Este aparato nos dá a dimensão da extensão da busca pela Proteção Integral da criança e do adolescente. Busca, apenas.

     São Dispositivos Preliminares, são Artigos sobre a Proteção, que inauguram uma atitude maior que pretende assumir a postura de garantir Direitos e Deveres, para uma sociedade saudável. Mas, preferimos bradar pelo estigma de um ECA que só protege adolescente delinquente sem conhecer a abrangência do conteúdo, e, muito menos, aceitar o convite para pensar sobre o responsabilizar e ser responsabilizado por ação ou omissão num comportamento em relação a uma criança ou adolescente. Enquanto criticamos, desfazemos, desvalorizamos, e abandonamos a criança e o adolescente.

     Poderíamos olhar esta lista de leis e Artigos, Protocolos e Convenções, pelo prisma do aprimoramento. Se na Letra da Lei tudo vai bem, então, a Proteção deveria estar cada vez mais protegida. O que não acontece. A Criança e o adolescente, talvez, vivam os maiores momentos de desamparo na família, na sociedade e no Estado. Em meio a estes aditamentos, encontramos leis conflitantes com o Estatuto, como no caso da lei de alienação parental, que, como remarca a Nota Técnica do Conselho Federal de Psicologia, pune com o mesmo objeto que é visto como prejudicial, ou seja, “aliena a alienadora”, uma equivalência da Lei de Talião, de roupa nova. Mas, o mesmo olho por olho, dente por dente. Usando o neologismo que se tornou um dogma, a justiça se preocupa porque faz mal “alienar” o pai, mas, no entendimento atual, não faz mal “alienar” a mãe. E os Artigos que rezam a convivência saudável com toda a família extensa escorrem pelo ralo promovido pelo estabelecimento da Privação Materna, equivalente ao abandono afetivo. Mas, aqui, compulsório.

     Quando adentramos nos guetos da sociedade partida, temos um mundo paralelo. A barbárie mora ao lado. A proximidade com o crime, para uma enorme quantidade de crianças e adolescentes, com as armas, com os mortos que expõem as torturas, com o sistema de justiça paralela que começa pelas mutilações e inclui a pena de morte, deforma completamente da criança. E é facilitador da identificação que perpetua a criminalidade. Esta proximidade vai banalizando as imagens antes repugnantes e vai naturalizando registros na memória de corpos torturados e mutilados que são expostos para uma espécie de “leitura” da lei vigente naquela comunidade. A criança que está tentando aprender o respeito às regras sociais, o código mais simples, o que pode e o que não pode ser feito, na escola, ampliação da casa, é obrigada a aprender com a experiência concreta o código cruel da justiça paralela.

     A criança e o adolescente não sabem quase nada sobre as leis que as protegem. Ou, que deveriam protegê-los. E, nesta ambiguidade de propósitos e de realidade, como pode uma criança pequena aprender um código social que a coloque como passível de Direito à Vida plena e como todos? Como seria possível todas as crianças se sentirem incluídas numa sociedade justa e responsável, oportunidades iguais, equidade para as peculiaridades de cada uma?

     Proteção Integral? Gozar de todos os Direitos Fundamentais? Condições de liberdade e dignidade? ... a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação? É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária? Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais?

O ECA e a Sociedade partida - Parte I

 

O ECA e a sociedade partida  Parte I

     Em 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, completou 30 anos.  Os Direitos Fundamentais da Criança e os DEVERES da Família, da Sociedade e do Estado, estão todos bem escritos no Estatuto. Mas, ele ficou mais conhecido como se protetor de menor infrator o fosse. Não é. Sua abrangência atrai muitos países que aqui vêm copiá-lo.        

     O ECA é primoroso na proteção e nas responsabilizações da família, da sociedade e do Estado para o exercício da proteção integral da criança e do adolescente. Ele é a pormenorização do nosso artigo 227 da nossa Carta Magna. O ECA olha a criança e o adolescente como Sujeitos de Direito.

     No entanto, pouco se obedece. Muito se critica.  Um estigma que ganhou, “protege menor infrator”, o que já foge de sua nomenclatura, não existe menor no Estatuto, esta é uma nominação antiga do código de menores, arraigada para manter a postura apenas punitiva, este estigma desconsidera a ausência de Estado em grande parte da população vulnerável pela não educação, pela não segurança pública, pelos não direitos básicos, pela ausência do Estado na garantia ao Direito à Vida. Crescendo em condições sub-animais, crianças e adolescentes não se humanizam. Os exemplos e modelos sociais no entorno, apontam para o tráfico de drogas e os crimes contidos nele, com uma banalização que facilita ainda mais o acesso a este mundo paralelo. Quantas vezes, a criança que mora numa favela, não dormiu bem à noite por causa do tiroteio forte, cada vez os fuzis são mais potentes, e pela manhã, ao ir para a escola, teve que pular e desviar de cadáveres dilacerados, expostos pela rua. Nós banalizamos a morte violenta, mas, só nos guetos. As crianças e adolescentes “urbanizados”, não deixamos ir nem nos enterramentos assépticos, porque pode fazer mal a eles.    

     Hoje, a arma .50 é desejo de consumo destes jovens. E o que na educação estamos oferecendo? Que “fuzil .50” consta para que aquela criança possa se sentir estimulada a estudar e buscar modelos que a incluam no grande coletivo? E não, no gueto a que pertence e está condenada. Não estou me referindo ao discurso vitimista de justificar um ato criminoso, muitas vezes com requinte de crueldade, atribuindo a culpa da barbárie à sociedade. Esbarraríamos na evidência dos muitos sobreviventes de qualidade social oriundos das mesmas localizações geopolíticas e das mesmas situações dramáticas de vulnerabilidade. Avançamos na redação do Estatuto, no entanto, não cumprimos, por exemplo, na questão da infração de adolescente, o que está escrito: as medidas socioeducativas. Eles são “apreendidos”, presos, e ali permanecem aprendendo, com os outros, novas técnicas e se associando em novos grupos, para voltar às ruas, mais capacitados em delitos e crimes. E a tal da reeducação? E a profissionalização? É mais do mesmo? Não podemos, tampouco, imaginar que a ausência de condições humanas básicas não teria nenhuma repercussão na formação de crianças. Aliás, este é um item mais objetivado, mais perceptível, quando pensamos, por exemplo, a mobilidade urbana para as crianças de nossas cidades, e a real imobilidade urbana sob os vários aspectos que transcendem a primeira ideia associada à cadeira de rodas. São muitos os obstáculos, as barricadas reais, as visíveis nas entradas de comunidades, e as sociais invisíveis, o que já foi objeto de outro artigo nosso aqui na Coluna, publicado em 04 de julho, já publicado na Revista da ANI, Associação Nacional e Internacional de Imprensa, em janeiro de 2020.

     Se, temos as cidades partidas, temos também lares partidos pelas violências praticadas dentro da família, e isso não aparece num olhar superficial do entorno. A violência doméstica quebra a vida de crianças e adolescentes em dois pedaços. O pedaço de dentro de casa é separado por um verdadeiro fosso que cerca toda a família. No social, ninguém consegue notar uma vítima de violência doméstica. Até mesmo os serviços de atendimento de urgência engolem a “explicação” que o olho roxo foi ocasionado por uma queda da escada. Sempre, a queda da escada. Mas, o entorno não vê e, também, não quer ver, as marcas concretas da violência no corpo da mulher e no corpo da criança. Esta tem suas marcas sempre atribuídas a travessuras infantis, mesmo que sejam equimoses nas duas faces das nádegas ou lanhadas nas costas. Como seriam estas travessuras? Como poderiam ter acontecido?

     Não podemos esquecer que uma violência contra a mãe, na frente ou escutada pela criança, é uma violência contra a criança. Ela é atingida, fatalmente. Mas, não raro, escutamos ou lemos em sentenças, que a criança deve ir para a casa do pai porque ele ainda não bateu na criança. Colocar uma criança em exposição de comportamentos violentos até que eles se concretizem, é uma decisão muito temerária, que fere o compromisso com a sua vulnerabilidade, inscrito em diversos artigos do ECA.  

     O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê garantias de Direitos Fundamentais e Deveres da Família, da Sociedade e do Estado, para que a formação saudável possa acontecer. Ele reza Direitos e Deveres na socialização, na escolarização, nos processos de adoção, na negligência, nos maus tratos, nas situações de portadores de alguma especialidade, na exploração de crianças e adolescentes, enfim, na Proteção Integral e o Crescimento SAUDÁVEL da Criança.

     Ocorre que a falência das instâncias sociais primárias é uma evidência. Temos um tecido social corroído, puído e corrompido por ideias infundadas e cifras de origem duvidosa, arraigadas no alicerce desta sociedade. Grita-se por direitos a plenos pulmões, mas não são considerados, nem em reflexão, os deveres, menos ainda os deveres de coletividade, alimentando esta falência, e comprometendo o futuro das Crianças e Adolescentes.

     O ECA, aos 30 anos, precisa ser implementado de verdade para que possamos construir a Cultura do Cuidado e Responsabilidade da Criança.   

Respeitar o brincar da Criança - Final

 

Respeitar o brincar da Criança – Final

     O brincar vai ocupando o espaço e o tempo à medida que a criança cresce. Para ela, é cada vez mais possível seguir uma sequência de comportamentos, com intervalos de tempo e lógica nesta sequência, mostrando sua aquisição da capacidade de seriação. Neste item, os álbuns de figurinhas exercem um amplo papel no desenvolvimento desta capacidade: é a numeração certa, a espera pelo incontrolável que vem no envelope de figurinhas, o ato de colar com cada vez mais exatidão no quadrado referido, a possibilidade de troca das repetidas. Tudo isto, que parece irrelevante, está patrocinando a importante o desenvolvimento da capacidade de sequenciar, o que depois estará presente no que virá a ser até um artigo científico que relate uma pesquisa.

     Na segunda infância o brincar se aprimorará em movimentos motores e competências de movimentos de pinça fina, a correta sustentação de um lápis, por exemplo, pela oposição do polegar ao indicador, com pequeno auxílio do dedo médio, permitindo a escrita mais rápida e precisa, o que dará lugar depois à sustentação do pincel para a Arte ou do bisturi para a Medicina. Nas brincadeiras de movimentos de grande porte, as instruções são mais simples, reduzidas, mas nos jogos de tabuleiro, é a concentração e a contenção que são mais treinados. Assim, as regras são mais complexas, chegando ao jogo de xadrez, o mais complexo deles. Cada peça tem uma regra própria, são 6 tipos de regras, a movimentação espelhada, a antecipação da intenção do outro jogador, toda esta coordenação em silêncio durante toda a partida sem duração prevista, o que é muito apreciado. Por outro lado, os jogos virtuais trazem simulacros de situações humanas, sendo reducionistas nas estratégias, frequentemente, matar os inimigos, bons contra maus, e a competência também é reduzida à rapidez do apertar a tecla para matar/destruir o outro. Este tipo de resposta não contribui, substancialmente, para o desenvolvimento cognitivo nem afetivo. O automatismo da repetição monótona de um movimento digital de reduzida amplitude, embebido em pensamento mágico. Várias vidas em mundo paralelo, por exemplo, sem, no entanto, espaço para a imaginação e a criação.

     O brincar com jogos proporciona a construção de códigos de comportamento, que implicam em obediência às leis, em administração de emoções e afetos. A competitividade, elemento central dos jogos, faz experimentar as emoções do ganhar e do perder. Aprender a ganhar e a perder é difícil, e vai acompanhar o indivíduo por toda a vida, em aprendizagens com situações as mais variadas.

     Independente de competição, saber ganhar e saber perder, que acontece diariamente, necessita de experiência cumulativa. A maturidade emocional possibilita que haja uma diminuição do desgaste em cada situação de ganhar e de perder. O sofrimento pela frustração ou pela arrogância pode dificultar ou obstruir o fluxo natural das trocas interpessoais.

     Difícil abrir espaço para o brincar como uma coisa séria. Aparentemente, o valor fica por conta de atividades escolares extra-curriculares. Claro que a escolaridade exerce papel fundamental na aquisição dos diversos raciocínios, no desenvolvimento cognitivo e na socialização. A ideia de que é preciso munir a criança da aprendizagem de outra língua, dos esportes competitivos, das lutas. Não nos damos conta, mas a impressão passada para a criança é a de que é preciso ganhar, ganhar e ganhar. Todos podem ser adversários. No entanto, vale ressaltar que esta atividade é muito importante para o desenvolvimento da criança, e, na vida adulta, cumpre também uma função de restituição de equilíbrio de emoções e da boa sensação de alegria. O humor é reconstituinte. O fazer humor fino, não me refiro ao deboche, com as situações da vida é a demonstração de maturidade e capacidade criativa.

     A grande complexidade de nossa mente nos brinda com uma riqueza de elementos formadores de sua formação numa composição dinâmica ininterrupta. Mesmo que os processos mentais, em toda a amplitude implicada, não sejam evidentes, eles acontecem, inexoravelmente.    

     Expansão, contenção, movimento motor, movimento afetivo, este processo, através do brincar, é fundamental para o exercício da vida adulta, o mais saudável possível. É muito comum se ter a impressão equivocada de que as brincadeiras podem ser sempre “sacrificadas” para que o tempo seja dedicado à atividade intelectual. Ou seja, se a criança está brincando, isto é visto como dispensável. Não lhe é dada a importância que é devida. É brincando que a criança ensaia e aprende a vida.

      

 

sábado, 19 de setembro de 2020

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada – Parte II

 

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada – Parte II

 

     Sob o intenso impacto do fato deplorável da gravidez resultante do estupro de uma menina de 10 anos, a revolta, por diferentes vértices, se exaltou. Vimos rachar a sociedade. A questão, rapidamente se mudou de lugar. Não mais era a dor daquela menina, abusada por mais de 4 anos, quando ainda tinha só 10 anos. Tornou-se briga, e briga religiosa, em nome de alguém que em nenhum momento se pronunciou. Alguém, aliás, que por vezes surpreendeu com respostas inesperadas.

     Embebidos desta revolta brotaram inúmeras idéias de campanhas. Mas não vi nenhuma que se referisse aos abusadores/estupradores. Faz-se necessário esclarecer aqui neste ponto que estupro de vulnerável é o nome do crime que abrange atos libidinosos contra criança e adolescente. Quais sejam: carícias, vouyerismo, exibicionismo, exposição a filme pornográfico, fotos e vídeos de cunho sexualizado, masturbação, sexo oral, penetração digital anal e vaginal, penetração peniana, etc., etc., etc,. Esses comportamentos têm como característica, comum a todos, a ausência de vestígio. Portanto, o Estupro de Vulnerável é também tipificado sem que o corpo da criança ou adolescente seja tocado. Ou que o seja, sem deixar marcas físicas. Nosso equívoco, em atribuir a nomenclatura de estupro apenas para os casos onde há violência, só beneficia o abusador que tem uma tolerância a mais. Outro equívoco diz respeito a obscurecer a incidência de estupro, em suas várias formas, em meninos. Eles são quase igualmente molestados que as meninas, mas são muito mais sub-notificados que elas.

     Estes números ocultos só favorecem os abusadores/estupradores. As Políticas Públicas, já muito escassas, tornam-se pífias para enfrentar o problema. Há uma campanha anual perto do carnaval sobre a pedofilia. Parece até que pedófilo só aparece no carnaval ou que gosta de carnaval. Na verdade, para o pedófilo, todo dia é dia de abusar da criança. Todo dia.

     Pensando sobre as várias intenções de campanha de prevenção da pedofilia, que circulam neste momento, uma coisa chama nossa atenção. Imagina-se que há abusos e estupros porque a criança não sabe dizer não. Este é um outro equívoco muito grave. A criança sabe dizer não ao seu abusador. Ele é que não sabe respeitar a criança, nem aceitar este não.

     Evidentemente, que ajuda dar conhecimento a uma criança sobre a restrição a suas partes íntimas. Mas isso não obstrui a sagacidade de um abusador. Com sua mistura de intimidação e sedução, ele irá fazer um novo arranjo para acessar estas suas partes íntimas. O resultado deste conhecimento pela criança será sentido na maior facilidade que ela terá em relatar para um adulto de sua confiança. O fato dela saber que os adultos têm este conhecimento, que estão a falar para ela, faz com que o pacto do segredo, estabelecido pelo abusador, sofra uma redução em seu resultado.

     Por outro lado, não posso deixar de remarcar que esta é uma atitude que sobrecarrega a criança. Uma vez que ela é instruída a “dizer não”, ela será cobrada sobre não ter dito não ou não ter parado o abusador com seu não. Sabemos que investir no auto-conhecimento, na auto-decisão de uma criança, lhe é benéfico. Mas imaginar que só pelas campanhas irá dirá não e teremos menos um problema, é muito ilusório. Há muito, todas as crianças, as que já adquiriram a linguagem, dizem não para seus abusadores.

     Fica sempre à mostra que queremos uma solução mágica para um problema que é sustentado estruturalmente. E mais, que temos uma tendência disfarçada e silenciosa de desresponsabilizar o pedófilo, hoje quase uma vítima, como dizia o Gardner. Ele, que goza de proteção da lei de alienação parental, seu grande e seguro esconderijo, está sempre saindo do foco da sociedade nos atos criminosos que pratica. Preferimos pensar que o abusador/estuprador é alguém que tem um olho só, é um monstro, é um estranho que vem seduzir a criança que está negligenciada pelos pais. Preferimos esquecer que, aproximadamente, 90% dos casos acontecem dentro de casa, que 85% dos casos são perpetrados pelos pais, padrastos que criam, avôs, tios, irmãos, (99% são homens), que os abusos são cotidianos, negando que ele está entre nós, é alguém acima de qualquer suspeita. Como escrevem nas sentenças juízes que os absolvem: “o pai é uma pessoa ilibada”.

     Precisamos ter mais cuidado, mais responsabilidade e responsabilizar mais quem comete crime contra a criança.          

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada - Final.

 

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada - Final

     Como havíamos comentado, a comoção em torno da menina grávida aos 10 anos, resultado de abusos sexuais intrafamiliares desde os 6 anos, já se dissipou. Isto é bom quando dá lugar à atitude responsável. Mas o que apareceu foi uma Portaria do Ministério da Saúde, que, prontamente, incrementou a pressão sobre as meninas grávidas, inclusive “oferecendo” a imagem ultrassonográfica para plantar a culpa da mãe/menina. Qual seria a razão de mostrar a imagem do embrião/feto para uma menina? Não podemos deixar de pensar que a intenção é assombrar a criança, vivendo a dor do estupro continuado e perpetrado, na grande maioria das vezes, por alguém que ela ama e obedece, que quebrou a interdição ao incesto. A interdição ao incesto, não podemos esquecer, é o marco civilizatório da humanidade.   

     O tempo midiático passou. Até mesmo a querela religiosa perdeu as cores aberrantes e berrantes. Mas não foi e estupro continuado que mexeu com a sociedade. Não foi a desproteção de uma criança emblemática, pelo Estado, pelas Instituições Públicas e Civis, pela sociedade toda. O que estará acontecendo agora com aquela menina? Sem poder voltar para sua casa bem precária, mas onde estavam seus poucos objetos pessoais. Sem cheiros, os ruídos, o claro e o escuro, ambiente que estava acostumada. Não era bom, doía, mas era conhecido. Mas nossa transgressão arraigada, não permitiu nem mesmo a existência social desta menina. A ganância pela sensação ilusória de vencer uma guerra, tirou desta menina a identidade dela porque ela não queria continuar arriscando a própria vida por uma violência que não iria nunca descolar do resultado de estupros continuados por anos. Perdeu o nome. Talvez o seu único bem durável, já que o corpo já lhe tinha sido roubado e deformado pela violência.

     Sobrevivente de uma tatuagem impressa em sua alma, esta criança, representante de milhares de outras crianças, vive uma solidão de grande dimensão. Tem 10 anos, mas envelheceu. Sua memória transborda de lembranças que quer esquecer. Perdeu o processo de confiar no outro. Perdeu o processo de se sensibilizar e se colocar no lugar do outro. Perdeu a conexão com seu corpo que terá que carregar para sempre como sujo, vergonhoso, testemunha permanente do horror que viveu no lugar da infância.

     Mas, já a esquecemos. E, nada fizemos, efetivamente. A fila andou. Uma nova menina 11anos, está com 8 semanas de gravidez. Foram 84 meninas entre 10 a 14 anos que deram à luz em um trimestre. Este número se refere apenas às crianças que chegaram ao hospital. Quantas teriam sido de verdade? A Portaria do Ministério da Saúde, tão desfalcado, traz mais pressão, denúncia policial, para o cumprimento da lei de interrupção de gravidez na infância e na adolescência. Já há um artigo no ECA que fala da obrigatoriedade de denunciar à autoridade competente o abuso sexual. Pais, responsáveis, professores, médicos. Por que, novamente, fazer sobreposição neste momento, apontando para as meninas estupradas que engravidaram? Os médicos preferem não enxergar os vestígios dos abusos intrafamiliares. As ameaças, o Backlash, é certo. E muitos fogem do problema que terão que encarar. Meninos e meninas são abandonados por profissionais que tomam conhecimento, mas preferem calar. Omissão ativa.

     Para completar o requinte de crueldade, o médico deve oferecer a imagem da ultrassonografia para a criança ver. Nesta mesma linha, surgiram inúmeras ideias de campanhas para ensinar a criança a dizer “não” para o abusador. Qual será a criança que não disse “não” ao abusador? Todas disseram e dizem. E, qual foi o abusador que atendeu à criança? Lançaram uma chantagem ou uma ameaça e foram em frente. Mais uma vez, a sobrecarga em cima do vulnerável.

     Não encontrei nenhuma ideia sobre o abusador. Nem o da menina em foco, nem sobre nenhuma responsabilização de quem comete este criem. Alguns xingamentos, mas nenhuma reflexão que possa promover proteção para a criança. Faz-se necessário responsabilizar autores incestuosos de abusos sexuais intrafamiliares, garantindo os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente. Urge o combate à Cultura do Estupro de Criança. São meninas que engravidam ainda na infância, são meninos que estão sendo criados pelos seus abusadores por conta de um vício jurídico de nome alienação parental. São bebês que têm seus corpos violados para a produção de vídeos pornográficos na indústria milionária deste novo formato da Exploração Sexual de Crianças, submetidas ao trabalho escravo dentro de suas próprias casas. Bebês que sofrerão de uma angústia corporal flutuante, porque ainda nem possuem a noção de esquema corporal. Menos ainda a aquisição da linguagem para localizar e descrever esta angústia. Antes de adquirir a capacidade de representação, foram coisificados.

     Os Crimes de Pedofilia Intrafamiliar, mal investigados, muitas vezes não investigados, impunes, estão exterminando toda uma geração que está sendo mutilada civilmente. Todos, somos responsáveis pelas nossas crianças. Por que não responsabilizar culpados? Onde estão as Políticas Públicas de efetiva eficácia? Proteção pertinente, persistente, e consequente? A ausência das Políticas Públicas de Responsabilidade nos aponta a conivência silenciosa, por vezes ruidosa agora, com a Cultura do Estupro de Criança e Adolescente. Quando vamos fundar a Cultura do Respeito? Respeito às Leis, Respeito às Crianças, Respeito às Mulheres, Respeito aos Idosos, Respeito às Minorias, Respeito aos Portadores das Diversas Diferenças. As ditas “exceções” também são cidadãos.