sábado, 26 de setembro de 2020

O ECA e a Sociedade partida - Parte I

 

O ECA e a sociedade partida  Parte I

     Em 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, completou 30 anos.  Os Direitos Fundamentais da Criança e os DEVERES da Família, da Sociedade e do Estado, estão todos bem escritos no Estatuto. Mas, ele ficou mais conhecido como se protetor de menor infrator o fosse. Não é. Sua abrangência atrai muitos países que aqui vêm copiá-lo.        

     O ECA é primoroso na proteção e nas responsabilizações da família, da sociedade e do Estado para o exercício da proteção integral da criança e do adolescente. Ele é a pormenorização do nosso artigo 227 da nossa Carta Magna. O ECA olha a criança e o adolescente como Sujeitos de Direito.

     No entanto, pouco se obedece. Muito se critica.  Um estigma que ganhou, “protege menor infrator”, o que já foge de sua nomenclatura, não existe menor no Estatuto, esta é uma nominação antiga do código de menores, arraigada para manter a postura apenas punitiva, este estigma desconsidera a ausência de Estado em grande parte da população vulnerável pela não educação, pela não segurança pública, pelos não direitos básicos, pela ausência do Estado na garantia ao Direito à Vida. Crescendo em condições sub-animais, crianças e adolescentes não se humanizam. Os exemplos e modelos sociais no entorno, apontam para o tráfico de drogas e os crimes contidos nele, com uma banalização que facilita ainda mais o acesso a este mundo paralelo. Quantas vezes, a criança que mora numa favela, não dormiu bem à noite por causa do tiroteio forte, cada vez os fuzis são mais potentes, e pela manhã, ao ir para a escola, teve que pular e desviar de cadáveres dilacerados, expostos pela rua. Nós banalizamos a morte violenta, mas, só nos guetos. As crianças e adolescentes “urbanizados”, não deixamos ir nem nos enterramentos assépticos, porque pode fazer mal a eles.    

     Hoje, a arma .50 é desejo de consumo destes jovens. E o que na educação estamos oferecendo? Que “fuzil .50” consta para que aquela criança possa se sentir estimulada a estudar e buscar modelos que a incluam no grande coletivo? E não, no gueto a que pertence e está condenada. Não estou me referindo ao discurso vitimista de justificar um ato criminoso, muitas vezes com requinte de crueldade, atribuindo a culpa da barbárie à sociedade. Esbarraríamos na evidência dos muitos sobreviventes de qualidade social oriundos das mesmas localizações geopolíticas e das mesmas situações dramáticas de vulnerabilidade. Avançamos na redação do Estatuto, no entanto, não cumprimos, por exemplo, na questão da infração de adolescente, o que está escrito: as medidas socioeducativas. Eles são “apreendidos”, presos, e ali permanecem aprendendo, com os outros, novas técnicas e se associando em novos grupos, para voltar às ruas, mais capacitados em delitos e crimes. E a tal da reeducação? E a profissionalização? É mais do mesmo? Não podemos, tampouco, imaginar que a ausência de condições humanas básicas não teria nenhuma repercussão na formação de crianças. Aliás, este é um item mais objetivado, mais perceptível, quando pensamos, por exemplo, a mobilidade urbana para as crianças de nossas cidades, e a real imobilidade urbana sob os vários aspectos que transcendem a primeira ideia associada à cadeira de rodas. São muitos os obstáculos, as barricadas reais, as visíveis nas entradas de comunidades, e as sociais invisíveis, o que já foi objeto de outro artigo nosso aqui na Coluna, publicado em 04 de julho, já publicado na Revista da ANI, Associação Nacional e Internacional de Imprensa, em janeiro de 2020.

     Se, temos as cidades partidas, temos também lares partidos pelas violências praticadas dentro da família, e isso não aparece num olhar superficial do entorno. A violência doméstica quebra a vida de crianças e adolescentes em dois pedaços. O pedaço de dentro de casa é separado por um verdadeiro fosso que cerca toda a família. No social, ninguém consegue notar uma vítima de violência doméstica. Até mesmo os serviços de atendimento de urgência engolem a “explicação” que o olho roxo foi ocasionado por uma queda da escada. Sempre, a queda da escada. Mas, o entorno não vê e, também, não quer ver, as marcas concretas da violência no corpo da mulher e no corpo da criança. Esta tem suas marcas sempre atribuídas a travessuras infantis, mesmo que sejam equimoses nas duas faces das nádegas ou lanhadas nas costas. Como seriam estas travessuras? Como poderiam ter acontecido?

     Não podemos esquecer que uma violência contra a mãe, na frente ou escutada pela criança, é uma violência contra a criança. Ela é atingida, fatalmente. Mas, não raro, escutamos ou lemos em sentenças, que a criança deve ir para a casa do pai porque ele ainda não bateu na criança. Colocar uma criança em exposição de comportamentos violentos até que eles se concretizem, é uma decisão muito temerária, que fere o compromisso com a sua vulnerabilidade, inscrito em diversos artigos do ECA.  

     O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê garantias de Direitos Fundamentais e Deveres da Família, da Sociedade e do Estado, para que a formação saudável possa acontecer. Ele reza Direitos e Deveres na socialização, na escolarização, nos processos de adoção, na negligência, nos maus tratos, nas situações de portadores de alguma especialidade, na exploração de crianças e adolescentes, enfim, na Proteção Integral e o Crescimento SAUDÁVEL da Criança.

     Ocorre que a falência das instâncias sociais primárias é uma evidência. Temos um tecido social corroído, puído e corrompido por ideias infundadas e cifras de origem duvidosa, arraigadas no alicerce desta sociedade. Grita-se por direitos a plenos pulmões, mas não são considerados, nem em reflexão, os deveres, menos ainda os deveres de coletividade, alimentando esta falência, e comprometendo o futuro das Crianças e Adolescentes.

     O ECA, aos 30 anos, precisa ser implementado de verdade para que possamos construir a Cultura do Cuidado e Responsabilidade da Criança.   

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