Artigos – <p>O menino Bernardo e o juiz Fernando – Por Ana Maria Iencarelli
Há um ano e quase três meses morria Bernardo Boldrini, aos 11 anos, assassinado por familiares próximos. Foi veiculado pela mídia que uma rua de sua cidade, Três Passos, no Rio Grande do Sul, iria receber seu nome. Homenagem justa, justíssima, apesar de inócua em todos os sentidos, principalmente em relação a sua vida, precocemente, ceifada.
Bernardo sobreviveu à tortura diária que era submetido pelas suas figuras de autoridade familiar e judicial, com a anuência do entorno social, resistindo o quanto pode. Continuaria sobrevivendo se não tivesse sido assassinado, seria mais um sobrevivente de violência e maus tratos intrafamiliares. São milhões de crianças que crescem no “seio da família”, sob este regime de tortura física, psicológica e sexual por causa da surdez das instituições que tem por objetivo escutá-las e protegê-las.
Aos 11 anos Bernardo foi, por iniciativa própria, sozinho ao Fórum de sua cidade buscar socorro. Não foi atendido, o Juiz Fernando Vieira dos Santos, da Vara da Infância e Juventude de Três Passos, chamou o seu pai e, em audiência por acareação, e, usando o instrumento mágico chamado “olhômetro” para ver “tudo” que se passava naquela família. Atendeu ao pai, dando-lhe uma “segunda chance”, e deu um prazo de 03 meses para que as relações em casa melhorassem. Esqueceu ou desconsiderou a investigação do Ministério Público, sobre o pai, aberta desde 2013, sobre negligência afetiva e abandono familiar, e que tinha ouvido o menino em janeiro de 2014. Bernardo, mesmo no inverno rigoroso de Três Passos, ficava sem agasalho na rua porque a porta de sua casa lhe era trancada, obrigando-o, por conta própria, a pedir abrigo na casa de amiguinhos. Dormia várias noites de favor, até que a porta lhe fosse destrancada pelos seus pais, pai e madrasta. Dentro deste prazo dado pelo MM Juiz Fernando, que confiou mais no calo social do que nas evidências já em investigação pelo Ministério Público, Bernardo foi assassinado pela família em menos de 01 mês.
Bernardo Boldrini foi visto vivo pela última vez em 04 de abril de 2014. Em 14 de abril, seu corpo foi encontrado enterrado em terreno a 80km de sua cidade. Uma injeção letal. A perícia diz que a receita do medicamento injetado era do pai, médico, a aplicação da injeção foi da madrasta, enfermeira, o sumiço do corpo em cova artesanal, teve ajuda da amiga e do irmão desta amiga do casal.
O Juiz Fernando Vieira dos Santos sentenciou Bernardo ao desqualificar seu pedido desesperado de ajuda, ao desacreditar no que falava, no seu limite, ao violar seus direitos fundamentais escritos no E.C.A. e na Constituição Federal. Seguindo o calo jurídico e social do estereótipo de que “pai é pai”, acrescido dos outros calos míticos de que “pai só quer o bem do filho”, ou “todo pai ama o filho”, ou “filho implica com madrasta por ciúme”, o Juiz Fernando não cumpriu sua função na Vara da Infância e Juventude, e condenou Bernardo a uma pena que não está escrita no nosso Código Penal. E que é rechaçada pela sociedade.
Calos sociais, crenças, ditados, lendas, são transportados em bruto para a esfera da Justiça, ignorâncias e incompetências travestidas de verdades, e tem patrocinado injustiças e violências perpetradas em mentes vulneráveis, porquanto em desenvolvimento ainda. A corrupção não se dá apenas na área financeira. Um calo social advindo de um ditado equivocado proferido por uma voz institucional é uma corrupção intelectual de grande irresponsabilidade. Denota a intencionalidade de se alojar em zona de conforto egoísta. Os calos sociais, em posse de Operadores de Justiça e de Operadoras de Perícias Psicológicas, tornam-se “verdades absolutas”, ou calos profissionais, e promovem aberrações que encobrem a preguiça profissional, o descompromisso, a inconsequência e a má-fé.
Acreditar que seu “olhômetro” lhe fornece a verdade em uma audiência ou em um laudo psicológico, é um ato de onipotência que desconsidera a enorme capacidade manipuladora dos psicopatas, perversos que se regozijam com o prazer do poder e da tortura sobre uma indefesa criança, física, psicológica ou sexualmente.
Sugiro, para que estes calos jurídicos e sociais míticos não matem, psíquica ou biologicamente, outras crianças, que o nome do Juiz Fernando Vieira dos Santos seja dado ao Fórum de Três Passos, cidade de Bernardo Boldrini. Não como homenagem, longe disso, mas como alerta para todos os Operadores de Justiça que ali trabalham. Como foram transformados em museus e pontos de visitação os campos de concentração do holocausto e cemitérios do massacre ocorrido para que não seja esquecida também esta sentença. O Fórum da cidade de Bernardo deve lembrar o erro fatal e letal.
Não se pode esquecer. A punição silenciosa da Corregedoria não contempla a ação preventiva contra este tipo de erro. Ao perguntarmos quem foi o Juiz Fernando Vieira dos Santos, nome escrito no Portal de entrada do Fórum de Três Passos, o que ele fez de importante, estaremos cumprindo uma homenagem à memória de Bernardo. Faz-se necessário que esta lembrança seja presentificada para evitar outras mortes de criança. Nem sempre “pai é pai” e acabou. O infanticídio foi tolerado até o século XVII, e ainda hoje vigoram “máximas” infundadas. A posse das crianças é referendada por todos. Confunde-se responsabilidade com posse, agravado pelo mito de que toda mãe, todo pai, ama o filho. A violência institucional contra crianças e adolescentes tem sido tão endêmica quanto a violência das ruas.
Ana Maria Iencarelli é psicanalista de criança e adolescente. (63)