domingo, 17 de maio de 2020


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos – Parte V
     A ausência de afeto no início da vida traz um dano permanente. O alimento afeto deve ser doado de forma regular, com pequenas variações na frequência e na intensidade, pela pessoa preferencial para o bebê. Esta preferência é facilitada e promovida pelo reconhecimento do cheiro, da voz, do tônus ao segurar o bebê. A repetição destes dados trará para o bebê a segurança e confiança nesta pessoa preferencial. Como a mãe tem o privilégio da conexão visceral, esta condição é facilitadora para a dupla mãe-bebê. Mas, no caso da substituição materna, o bebê tem uma boa tolerância para refazer esta conexão, carregando sua expectativa da sua demanda de satisfação do colo, enquanto cuidados de sobrevivência, nutrição/higiene/sono/afeto, e a mãe substituta terá este espaço, podendo construir um vínculo materno genuíno. A tese da ligação biológica tem sua importância quando ela for continuada, mas não é impossível a realização desta substituição. Isto ocorre com as crianças que são adotadas sem que haja um abrigamento que quebre este provimento de afeto. Ou seja, crianças que têm seu vínculo víscero-afetivo materno rompido e que vão para um abrigo por meses ou anos. Quanto maior for o tempo de uma criança no sistema de abrigo, sem uma relação afetiva materna, maior será o dano do desenvolvimento afetivo. A possibilidade de ser capacitada para confiar no outro, e se comportar como humano, é diretamente proporcional ao afeto regular recebido sem interrupção.
     É preciso entender o que significa a carência afetiva, esta condição que aprisiona o indivíduo na busca incessante de relações de dependência. A carência não corresponde à ausência completa ou parcial de afeto. Por vezes há um descompasso entre o afeto ofertado e como é sentido este afeto pelo bebê. Assim, mesmo sendo alimentado afetivamente, por alguma razão, o bebê não é satisfeito em sua necessidade particular de afeto.
     Dependências. O afeto, ou melhor, o não-afeto, em qualquer grau, é um fator preponderante para os comportamentos de dependências diversas. Dependência afetiva, dependência química, passando pela dependência alimentar, a busca pelo afeto não alcançado leva a se submeter a relações abusivas, leva à busca da ilusão do prazer imediato, leva à sensação do conforto compulsivo no estômago. Estes comportamentos aparecem, socialmente, na juventude. Mas, o início de todos estes distúrbios de expressão por dependências reside na infância. É a ausência ou a precariedade, por intermitência, por instabilidade, ou por frieza e distanciamento, que desvia ou corrompe a possibilidade de um saudável desenvolvimento afetivo.
     Se a desconfiança afetiva pela instabilidade dos cuidados impede a confiança na construção de relações saudáveis, numa tormenta sem fim, o aniquilamento afetivo, resultado de afetos oriundos de violências, pode vir acompanhado de perversidade, de crueldade, mantendo o ciclo da repetição quase compulsória.
     O comportamento da imitação, por exemplo, faz parte dos processos de identificações, que trazem o conforto subjetivo da sensação de pertencimento. A pertinência a um grupo acalma a angústia de desamparo. Esta rede, abandono, desamparo, solidão, versus proteção, força, passa a fornecer uma garantia quando o estresse ameaça a mente. O funcionamento afetivo é muito dinâmico, sempre mistura várias emoções, até mesmo contraditórias, ganhando sentido, muitas vezes durante o percurso de cada experiência afetiva.          
     Entenda-se que, o alimento da geladeira para os obesos é a representação do afeto não recebido. Assim como a cocaína ou o álcool, ou as escolhas sucessivas de relações abusivas, também simbolizam o afeto que faltou ou foi agressivo. É preciso, pois, compreender que o afeto não saudável produzirá uma lacuna que fomentará uma busca incessante pelo nutriente afeto, deslocado, então, para novos objetos simbólicos.
     O conceito de saudável relativo ao afeto refere-se à adequação de necessidade x satisfação de saldo positivo. Ou seja, que a soma de acertos de satisfação seja bem maior que a soma de erros e frustrações, que, claro, existirão sempre. Não há problema em errar ou frustrar um bebê em sua demanda de afeto, caracteristicamente, de pedido imediato. O intervalo de tempo entre o pedido e a satisfação também ensina o esperar, tão importante para seu desenvolvimento. Também o equívoco na resposta materna pode ser um aprendizado de tolerância, essencial para a vida toda.
     No entanto, o problema dos efeitos nefastos das alterações do desenvolvimento afetivo está não só no abandono que é a expressão da ausência afetiva, mas, na presença de afetos agressivos continuados por muito tempo da infância. Afetos mal tratantes, afetos de violência física, sexual e psicológica, que imprimirão uma tatuagem na alma da criança, levando-a à condição de submissão nas relações com o outro. Há ainda a pior das possibilidades: a impossibilidade de se humanizar. Estas crianças, gravemente marcadas por afetos de violência, não serão obstruídas na sua aquisição da capacidade de empatia. Não conseguirão viver a cidadania, a solidariedade e a compaixão, até mesmo por aqueles que ela venha a prejudicar.
 “Se, ninguém sentiu compaixão por mim quando eu era criança e precisava de proteção, ninguém merece minha compaixão”.
     Abordaremos ainda este tema em suas consequências e patologias na próxima semana.


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos.  Parte IV.
     Com a ONG Vozes de Anjos, nosso principal crédito pela importância e extensão da meta de Proteção à Infância e à Maternidade, pensamos cada vez mais na imensa dimensão da construção do afeto, esta viga da existência de todos. Pensar o afeto de cada indivíduo em contexto de coletividade, nas tendências de comportamento de uma sociedade, tem sido um desafio. O hoje pelo coletivo das crianças, o hoje pelo coletivo dos adultos, as crianças de ontem, que hoje são os modelos de afeto destas crianças. O afeto recebido hoje por uma criança/filho será o combustível do afeto que ela dispensará na vida adulta para a criança/filho que cruzará seu caminho amanhã, numa cadeia sequencial.
     Importante lembrar que a criança precisa do afeto e dos cuidados da mãe do nascimento aos 7 anos.  Entenda-se aqui que a importância da mãe, o cuidado dela, o olhar dela, o colo dela, durante a primeira infância, constitui-se o alicerce para o desenvolvimento saudável. Não estou excluindo o pai, sua importância complementar nas primeiras relações, é inconteste. Mas, o alimento afeto vem com primazia da função que a mãe exerce. O pai entra na vida mental como o que traz a lei, o ordenamento. E por isso mesmo, uma criança não deve ser afastada de sua mãe na primeira infância. O abandono materno quando ocorre, causa um dano de difícil recuperação. A substituição da função materna é aceita pela criança porque ela tem noção de sua dependência deste afeto e do cuidado que precisa para sua sobrevivência. A relação paterno-filial que, gradualmente é construída, tecerá uma malha de identificações onde o vínculo será seu eixo. O vínculo não é aparente, não é convivência, não está submetido à obediência, nem mesmo a existência concreta. Explicando: uma criança pode desenvolver um ótimo vínculo com a memória do pai já morto. O Vínculo é da ordem do afeto sentido. E, mesmo que alimentado por expressões reais de afeto, ele pode também ser construído pelo discurso do ambiente materno que passa uma figura de referência para a criança.  
     Dos quatro vetores do desenvolvimento psicológico da criança, que já abordamos aqui nesta Coluna, o afetivo é o único que é, essencialmente, receptivo. O desenvolvimento motor, o linguístico, e o cognitivo, são vetores que mantêm uma dinâmica troca de estímulos-respostas, e que tem a força da natureza como aliada. A força do processo natural é determinante e impulsiona o crescimento para sustentar a cabeça, para segurar um pincel, para articular uma palavra-desejo, para repetir uma ação com a intenção da obtenção de uma satisfação. Todos, comportamentos proativos.
     No entanto, o desenvolvimento afetivo tem característica, essencialmente, passiva. Melhor dizendo, o afeto, que é necessário e perpassa todos os outros modos de crescer, é esperado passivamente. Ele é um vetor de desenvolvimento receptivo, sem muita iniciativa da criança.  
     O egoísmo dirigido pela busca ameaçadora da sobrevivência é a condição comum a todas as crianças nos primeiros meses e anos de vida. O alimento nutriente traz a angústia da fome pela dependência de ser alimentado. O alimento afeto é preciso ser garimpado pelo bebê nos olhares, sorrisos, aconchego, no colo materno, preferencialmente. E seu trabalho para ser amado começa aqui. E não é difícil imaginar o quanto é árdua essa construção, da qual ele fará uso por nutrição todos os dias da sua vida. A incerteza dos afetos que o bebê entrará em contato, tem que se submeter à experiência. É um aprendizado afetivo, que nem sempre é possível, porque há afetos que confundem, que esfriam, que destroem.
     O alimento afeto aparece de várias formas. Logo o bebê conseguirá estabelecer uma espécie de compromisso, mesmo dentro de seu egoísmo, de dar afeto para receber afeto. Mas nesta relação afetiva que vai sendo construída pela díade mãe-bebê, numa via de dois sentidos, num vai e volta contínuo, o afeto recebido pelo bebê pode ser saudável, cuidadoso de qualidade. Pode vir em ausência de afeto. Pode ser um afeto raivoso, agressivo. Pode ser um afeto dissimulado, ambivalente, hoje amor, amanhã ódio.
     Cada tipo de afeto produz, no serzinho em formação, tipos diferentes de afeto que influenciarão o perfil, influenciando a saúde ou a doença mental no futuro. Efeitos e estragos vão sendo sedimentados.
     Continuaremos o tema na próxima semana, abordando a carência afetiva, a condição que aprisiona o indivíduo na busca de relações de dependência, o aniquilamento afetivo, que pode vir acompanhado de perversidade, ou a desconfiança afetiva que impede a construção de relações saudáveis, numa tormenta sem fim.


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos. Parte III
     A difícil tarefa de traduzir afeto em palavras deixa sempre o gostinho de é mais do que isso.  Mas, talvez o colo seja a palavra mais difícil de definir. Para muito além da configuração física, colo é acolhimento, colo é proteção, colo é segurança, colo é acalanto, colo é limite, colo é cura, colo é aconchego. Mas colo também é não, colo também é desespero, colo também é violência.
     Colo talvez seja a figura que mais se aproxima do conceito afeto. O colo e a necessidade dele permanecem. É um equívoco associar afeto com carinho, beijos e abraços. Como também é equivocado pensar que vínculo afetivo familiar é resultado de convivência.  O vínculo afetivo é uma construção que processa vários elementos por vias sensitivas, todas, vivências, construção que sediará o alicerce de todos os vínculos que surgirão durante a vida. A importância da sensação de segurança prazerosa é a primazia do desenvolvimento afetivo.
     O afeto tem roupas e formas variadas. Mas são as suas qualidade e intensidade que vão se aglutinando em construção, e que o tipificam. O afeto, em sua qualidade predominante recebida, é constitutivo de caráter. Afetos de raiva, de inveja, de desprezo, vão aglutinar atitudes correspondentes, que desenharão o perfil de resposta de alguém, agressivo, invejoso, insensível. Ou seja, a criança que sofre carência de colo/afeto, carência de cuidados básicos de qualidade, será um adulto que pouca ou nenhuma capacidade empática terá. Para se defender da dor do abandono sentido, mesmo que haja presença física, ela pode não ter satisfeitas suas necessidades afetivas, e cristalizar esta defesa para se anestesiar da dor. Há um ressecamento afetivo, que funcionará como um terreno defendido do “risco” de afeto. Sentir afeto passa a ser arriscado, não sabe o que fazer e percebe como se passasse a perder o controle da situação, como se o outro passasse a ter o domínio.
     Por vezes, a dureza da realidade afetiva é difícil de ser suportada, então a mente lança mão do imaginário como saída em momentos críticos. Não raro a criança maltratada ou que sofre abandono intrafamiliar, busca consolo em saída imaginária. Fantasia frequente é que ela é filha de rei e rainha, que virão resgatá-la a qualquer momento, porque assim ela diminui a dor, aqueles não são seus pais verdadeiros e por isso não gostam dela. Mas, mesmo usando a imaginação como defesa, ela não se perde da realidade, mesmo que dolorosa.
     O colo/afeto permanece e nos acompanha por toda a vida. Costumamos pedir colo, a alguém da confiança afetiva, quando, na vida adulta, nos deparamos com uma decepção amorosa, por exemplo. Não devemos considerar isto uma atitude de regressão, é saudável deixar que a dor tenha fluidez, possa ser sentida e, daí, elaborada para que uma nova organização afetiva ocorra, nos proporcionando a superação do processo de luto por um amor findo. Este movimento foi aprendido na infância quando uma queda com um machucado, uma frustração difícil de suportar, nos levou ao colo de quem podia nos consolar e fortalecer, nos colocando, após o tempo adequado de sustentação, de volta para a batalha da vida. Se este processo de nutrição afetiva de qualidade foi bem executado, podemos enfrentar as dores da vida.
     No entanto, se este processo foi falho, intermitente por algum motivo, ou foi interrompido, consequências nefastas podem se constituir como defesas contra o sentir. E é este processo edificará nossa memória afetiva. Não esquecemos jamais as experiências de fortes e intensas emoções. Uma criança pode guardar uma imagem, por exemplo, a repetida imagem do avião que levava o corpo de Tancredo Neves, recém eleito, percorrendo algumas capitais brasileiras. Lembram? A criança tinha apenas 5 anos, não sabia quem era Tancredo, não sabia o que era eleição, não sabia ainda muito sobre a morte. Mas, a emoção que ela captou da mãe, do pai, o silêncio paralisante daquele momento, fez com que aquela imagem na televisão tivesse um lugar em sua memória afetiva. Precisamos entender que, ao longo da infância, várias partes de ocorrências são arquivadas, às vezes em forma de imagem, às vezes, com mais complexidade de compreensão, em forma de luminosidade, às vezes em forma de som ou de cheiro, ou gosto. Os sentidos produzem memórias para nosso acervo, muitas vezes de difícil encaixe, mas sempre verdadeiras porque foram as experiências de afeto possíveis naquele ponto do desenvolvimento.
     Assim como a memória guarda estas lembranças afetivas, ou pedações delas, a cognição é muito importante para o bom armazenamento dos afetos, e a elaboração dos efeitos danosos que marcam nossa mente. Poder pensar um episódio afetivo é de grande valia para a saúde mental. Não falo em supremacia de nenhum dos vetores do desenvolvimento, o motor/neurológico, o linguístico, o cognitivo e o afetivo. Refiro-me aqui à sintonia, ou à desconexão de aspectos da mesma vivência, que se sedimentarão favorecendo ou desfavorecendo a saúde mental da criança.
     A memória afetiva, este arquivo de nossas vivências, as mais genuínas, é responsável pela nossa humanicidade. É o que nos torna humanos, capazes de estabelecer relações entre os iguais e os diferentes.


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos.  Parte II.
     Continuando nosso texto sobre a aquisição da capacidade de sentir afetos, transcrevo aqui uma parte de um capítulo escrito por mim, do livro Cuidado e Afetividade, publicado em parceria Brasil-Portugal, por duas Universidades Públicas de Direito, em colaboração com um time de autores das duas nacionalidades. São muitos os autores que se debruçam sobre o afeto. No referido artigo, escrevo:
     Harlow, fisiologista, estudando a relação afetiva mãe-bebê, e suas repercussões, experimentou com bebês chipanzés a importância da necessidade de apego na falta da mãe. Bebês chipanzés, que têm comportamento de cuidado e afeto com filhotes semelhante ao comportamento dos humanos, que haviam perdido suas mães por ocasião do nascimento, após período de privação de alimento, eram expostos a duas “mães” diferentes. Uma mãe era montada de arame e tinha uma mamadeira com leite onde era possível o bebê saciar sua fome. Outra mãe era confeccionada de trapos e lãs, tinha um colo aconchegante, mas não tinha nenhum alimento. As duas “mães” ficavam em um ambiente onde os bebês chipanzés órfãos podiam escolher qual mãe iam buscar. O que foi observado na pesquisa foi que a grande maioria dos bebês procurava a “mãe” de arame que fornecia leite, e saciada a fome, eles iam se alojar no colo da “mãe” de panos. No entanto, o que a pesquisa evidenciou é que havia um número considerável de bebês chipanzés que se aconchegavam no colo da macaca de panos, e, contrariando o instinto de preservação da espécie, chegavam a morrer de inanição por não suportarem o leite no arame, sem aconchego. Esta experiência corrobora a descoberta de Spitz sobre o conceito do hospitalismo.
       Todos os autores da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicanálise escreveram teorias tendo como ponto central o afeto. Freud, Anna Freud, Klein, Winnicott, Mahler, Spitz, Piaget, Bion, Lacan, Kohut, Soulé, Bergès, Bergeret, todos deram ênfase ao afeto como a condição que permeia os vetores do desenvolvimento.
       É o afeto que faz a diferença entre curvas de desenvolvimento díspares. E não só a presença ou ausência, mas, na presença, é a qualidade do afeto que importa para estimular o crescimento e garantir a saúde psíquica da criança. Temos evidências desta importância quando verificamos os quadros psicossomáticos da Psicopatologia da 1ª infância reativos à qualidade ou ausência do afeto recebido pelo bebê e pela criança.
       Pela troca de afeto mãe-bebê o desenvolvimento vai se processando. A maturação neurológica que se da no sentido céfalo-caudal, permite a progressão de competências musculares que se iniciam com a sustentação da cabeça até atingir a marcha e seu controle, incluindo a aquisição da preensão em pinça fina pela oposição do polegar ao indicador, a garantia da escrita alguns anos mais tarde. O nascimento da inteligência ocorre quando surge o movimento com intencionalidade, transformando movimentos de espasmos reflexos em movimento com um objetivo de obter alguma sensação auditiva, visual ou tátil.
     Spitz elencou 3 momentos como Organizadores do desenvolvimento afetivo: o sorriso, a angústia, a contestação do “não”. Sorrir, chorar, e enfrentar. Spitz define o aparecimento do sorriso, por volta dos 2/3 meses, como a primeira resposta social da criança. O rosto da mãe é reconhecido em figura triangular formada pelos olhos e boca, uma captação da forma, como entende a Escola de Psicologia da Gestalt. Estimulado pelo sorriso da mãe, o bebê espelha este sorriso. O jogo de satisfação recíproca que se estabelece na dupla mãe-bebê, transborda para outras pessoas próximas, e torna-se uma resposta social. A primeira.
     Mas o bebê muda sua percepção do mundo entorno quando adquire a competência motora do sentar. Seu olhar passa a captar um mundo de gigantes. Ele tem uma possibilidade de ter um parâmetro mais confiável, o chão como ponto zero, e adquire também a capacidade de girar sobre seu próprio eixo, seu corpo, o que lhe permite dimensionar o espaço muito maior. Isto se torna assustador para ele. E, no reconhecimento já bem mais estruturado do rosto da mãe, ele passa a sentir medo do “estranho”, medo de todos os rostos que não são a mãe. Entenda-se aqui que há a possibilidade de substituição materna, ele aceita. Mas a primazia da segurança que a mãe lhe oferece, é única. E este medo faz com que ele tenha aquele conhecido comportamento do estranhamento aos adultos não-mãe.  A necessidade de incluí-la no seu entorno imediato produz uma dependência de sua presença. Assim, ao se dar conta que a mãe não está perceptível no ambiente em que ele está, o bebê sente medo de tê-la perdido. A existência só acontece enquanto sua visão atesta concretamente. Este é o organizador que Spitz denominou como a angústia do 8º mês. Seu choro é de angústia ao perceber que a mãe não consta no ambiente, e, como não possui ainda os recursos cognitivos para metrizar o tempo e o espaço, ele sofre como se vivesse um abandono.
     Em torno dos 18 meses, Spitz descreve o terceiro organizador: o “não”. O bebê já se põe de pé, e seu desenvolvimento cognitivo estimula, sobremaneira, a sua curiosidade. Quer mexer em tudo ao seu alcance. Corre perigos, e está sempre escutando um sonoro “não”. Trava-se aí um processo de identificação com o adulto, aquele que fica a lhe cercear, por proteção dele. Ele passa a repetir este não para todas as propostas que lhe são ofertadas. E mesmo ao realizar uma ação já repreendida, ele a executa dizendo não e olhando para o adulto, como se contestasse e se tornasse “grande” neste momento que espelha a atitude de limite do adulto. Esta primeira contestação, ou oposição vai se seguir da resistência maior ou menor à educação esfincteriana, o tirar as fraldas, que vem a ser proposta, alguns meses depois. O comportamento de oposição é saudável desde que não o aprisione nas primeiras oportunidades da busca pelo Poder. Aceitar ou negar a regra social de fazer xixi e cocô em lugar específico, o banheiro, é uma possibilidade de experimentar o Poder.
*continuamos na próxima semana.


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos.  Parte I.
     Como já falamos anteriormente, nos textos sobre os outros vetores do desenvolvimento infantil, o bebê humano nasce muito incompleto, e incapacitado para a sobrevivência. Ele necessita de um adulto preferencial para ampará-lo nestas necessidades. Digo preferencial porque, como incapaz para seu próprio sustento alimentar, ele precisa da relação afetiva com esta pessoa que vai dispender os cuidados que lhe garantam a sobrevivência. Esta preferência recai sobre a mãe. Pela simples razão do reconhecimento, da familiaridade do ritmo de seu batimento cardíaco, de sua voz, que é ouvida pelo feto mesmo que com distorção pelo ambiente aquático, pelas suas respostas emocionais. Portanto, o colo materno vai bem além do alojamento físico. O colo materno é expressão de afeto.
     São muitos os autores que construíram teses e teorias sobre o desenvolvimento afetivo. Para os psicanalistas, um apaixonante tema, que continua e continuará inesgotável. Como compreender este processo de aquisição do afeto? Ele é constitutivo da “persona”, a identidade psicológica de cada um, e não é evidente como ele é operacionalizado neste processo de aquisição. Um afeto não se ensina, não se faz treinamento, não se traduz em palavras, apesar de terem nomes como amor, raiva, inveja, admiração, gratidão, por exemplo. Mas é comum que, em momentos de muita emoção, se escute aquela frase “eu não tenho palavras para dizer o que estou sentindo”. Sentimos o afeto. Vivemos por dentro o afeto. E, palavras e emoções, são a tentativa de aproximação do que está sendo sentido.
     Diante da diversidade de teorias, escolhemos um autos, René Spitz, que nos oferece uma compreensão muito fácil de acompanharmos. Ele fala de 3 momentos que ele chama de organizadores, quais sejam: o aparecimento do 1º sorriso, a angústia do 8º mês e o “Não”.
     Faz-se necessário considerar que nós humanos nascemos com fome de dois alimentos: o alimento nutriente e o alimento afeto. O bebê humano precisa de alguns anos para adquirir a autonomia suficiente para se alimentar sozinho, e mesmo assim, desde que lhe seja fornecida. A sua sobrevivência, portanto, depende de alguém que lhe ofereça este alimento, de preferência o leite materno no início. Mas, se olharmos um bebê mamando no seio da mãe, constatamos que, além do alimento-leite, ele é alimentado pelo olhar o rosto da mãe, pelo ser sustentado e aconchegado por ela. Esta cena  a dois, esta troca de olhares, este asseguramento recíproco, faz parte do alicerce afetivo do bebê. As necessidades de leite e afeto são similares. Temos situações que exemplificam esta necessidade deste duplo alimento nas histórias de crianças que foram criadas por animais. A história dos 2 irmãos que foram criados por uma loba, numa alcatéia, nos traz a dimensão da relação afetiva como elemento de sobrevivência. Estas duas crianças tinham sobrevivido a um ataque à aldeia dos pais, onde todos morreram, e os lobos vieram para se alimentar. Mas uma mãe loba entre eles os adotou. Quando estavam com 6 e 10 anos, aproximadamente, foram encontrados por um grupo de expedição, que as levaram para a cidade. Eles andavam como os lobos, engatinhando, uivavam como lobos, não tinham adquirido a linguagem, nem a motricidade, e sua cognição se resumia a solucionar problemas de sobrevivência do grupo dos lobos. As crianças sofreram muito com esta retirada de seu ambiente afetivo. A mais nova se recusava, totalmente, a qualquer contato humano. Uivou por alguns dias e morreu de inanição e exaustão. A mais velha, foi aceitando, gradualmente, o contato, foi adquirindo uma postura mais ereta do corpo, e aos poucos uma linguagem muito rudimentar. Sobreviveu. Mas foi uma adulta reclusa, pouco sociável, e morreu na juventude ainda. Esta experiência que foi registrada por humanos estudados, nos mostra a dimensão da importância da relação afetiva para o ser humano. Havia sido transferido, para a mãe loba adotiva, o afeto que tinham pela mãe que perderam. E, a partir daí, o processo das identificações transcorreu com um conforto afetivo que não imaginamos. O fato da criança mais nova não ter resistido à separação de sua mãe loba, parece-me que é claro à luz do desenvolvimento cognitivo também. Ela tinha maior dependência da mãe por ter menos recursos de percepção pela pouca idade, enquanto a mais velha já pode contar com uma possibilidade maior de compreensão cognitiva. Além disso, temos que considerar que esta foi a segunda separação dos cuidados maternos que sofreram. Já haviam perdido a mãe biológica. Outro autor nos mostra que a separação da mãe, de seus cuidados, tem relação com o aparecimento de doenças mentais na juventude e na idade adulta. (Bowlby). E Spitz definiu com “Hospitalismo” o quadro que o afastamento da mãe, sem substituição do afeto de qualidade, pode levar a criança à morte. 
     O afeto é, portanto, essencial para o desenvolvimento humano. Mas, não vamos confundir afeto com grudação. O Afeto é responsável e consequente. É ele que nos torna humanos, capazes de sentir, e de sentir pelo outro. É por ele que conseguimos viver em grupo, que conseguimos refletir, ter um pensamento humanizado, tomar decisões que consideram muitas variáveis. Ele perpassa todos os vetores do desenvolvimento. É o afeto materno, no início, que nos encoraja e que também nos mostra a cautela, quando queremos arriscar uma nova proeza motora, ou quando tentamos incluir uma nova palavra no vocabulário, ou quando estamos tentando raciocinar com pouca amplitude pela restrição ainda em andamento da cognição. O afeto sustenta a vida da criança.
     No próximo texto, falaremos dos momentos organizadores propostos por Spitz.