Artigos <p>Guarda compartilhada? Guarda com partida! – Por Ana Maria Brayner Iencarelli
Hoje temos uma profusão de novos “parentes”. Uma criança tem um meio-irmão, um meio-pai, ou, uma meia-mãe, uma meia-família. A Justiça de Família, mãos de tesoura, parece que quis fazer parte do mundo das cisões, e instituiu a meia-criança pela dita Guarda Compartilhada, que efetivou a Guarda Com Partida. Criança partida ao meio, uma semana na casa da mãe, uma semana na casa do pai, por exemplo, e seus cadernos e afetos perdidos pelo meio do caminho. Criança caramujo, que carrega seus pertences nas costas.
A lei da Guarda Compartilhada é um equívoco para o desenvolvimento saudável da criança. Esta Lei não contempla todas as crianças. Os Operadores de Justiça não tem escuta nem olhar para os sujeitos de direito que foram eleitos pelos legisladores. Espera-se que nós adultos, já não acreditemos mais em coelhinho da páscoa trazendo ovinhos de chocolate, ou seja, não podemos sacrificar uma criança obrigando a mãe e o pai a dividir suas vidas para atender a operacionalidade da dependência infantil, considerando que nosso modelo predominante de responsabilidade com os filhos não é este nem na vigência dos bons casamentos. Só no cotidiano, são os compromissos escolares e extraescolares, horários, responsabilidades, que tem que ser cumpridos. O caderno de história, onde ficou? Diriam alguns que dividir a vida da criança em duas do mesmo tamanho, seria ideal. Engano. Casais que se separam precisam fazer um processo de luto pelo término da relação, mesmo quando esta foi consensual. O luto é mais sofrido quando há litígio, é claro. Pensar que é possível deixar fora desta dor de muitas dores, a convivência e administração das atividades do filho comum, é pura ingenuidade. As pessoas sentem raiva, amor inacabado, frustração, tristeza, alívio, uma infinidade de sentimentos. É normal e saudável, e não pode ser trocado por um decreto lei de falsificação do estado emocional natural à ocasião. Decretar que os desentendimentos vão ficar fora dos momentos relativos ao filho é autenticar mais uma falsificação da nossa sociedade cenográfica. É mais um faz de conta. É mais um convite compulsório ao fingimento, com tolerância zero pelas dores e sentimentos.
Difícil entender o ponto de vista que passo a expor. Como Psicanalista Clínica de Criança, completando, daqui a três meses, 42 anos de formada, ouso dizer que para os filhos, principalmente para os mais novos, os pais não poderiam nunca se separar. Marido e mulher podem, sempre que assim o decidirem. As crianças não querem que seus pais se separem, mesmo quando, racionalmente, acham que eles brigam muito ou que seria melhor para ambos, enfim, quando já conseguem pensar e considerar o outro. Pai e mãe foram “feitos” para ficar juntos na mente infantil. Portanto, em quase nada satisfaz ter igualdade de tempo cronológico de mãe e pai pós-separados. O tempo importante para a criança é o tempo afetivo, o tempo da presença psicológica até na distância física, o tempo da responsabilidade empática que garante a proteção para a vulnerabilidade da criança. Seria maravilhoso se o tempo cronológico dividido em dois funcionasse para a mente da criança. Esta conta não fecha com a realidade.
A necessidade humana de pertinência a um grupo familiar que funcione como tal, mesmo que os papéis não sejam formalizados pelos seus títulos, é explicitada desde as primeiras aquisições do desenvolvimento psicológico, as primeiras palavras pronunciadas, as primeiras demonstrações de afeto quando ainda bebê. Observamos isto nos primatas, a organização do grupo segue uma modelo de pertencimento. É emblemático o simulacro de família em grupos de crianças de rua, com a formação familiar estabelecida nas funções pai, mãe, irmãos, até quando não houve experiência de família. Os laços consanguíneos não estão presentes, o que vigora são laços que contemplam esta necessidade de pertencimento a um grupo familiar com funções protetivas determinadas.
Estas mesmas crianças que vivem nas ruas, além desta demonstração da necessidade de um “território afetivo protetor”, nos oferecem ainda a necessidade de “território físico”. Mesmo vivendo sem paredes e portas, tendo a calçada como endereço, estas crianças costumam frequentar um mesmo espaço da polis. Isto significa que também é importante para o desenvolvimento de uma criança, mesmo em condições adversas, que haja uma referência, pessoa referência, espaço referência. É indispensável que seja respeitado este fundamento, referência, o princípio de pessoa referência, para amparar a demanda do processo de organização psíquica da criança. Como exercício, proponho que cada um se imagine nesta condição de ter a vida em duas casas. A mente da criança é muito espalhada, desorganizada, dispersa, de muita multiplicidade. Precisa de organização, no sentido amplo do conceito. É a contenção que estrutura a liberdade.
É, absolutamente, contrário à saúde mental da criança este regime de duplicidade: são dois sistemas de valores, de disciplina, de tolerância, de hábitos alimentares, etc. A criança não possui ainda recursos para enfrentar este duplo e administrá-lo sem prejuízos consequentes. Não há como ele viver como um aparelho de rádio, mudando de faixa, de AM para FM, impunemente, a economia psíquica não o permite. Portanto, afirmo, por estudo e constatação técnica, que ao contrário da visão rasa do achismo do ter duas casas, de ter dois tempos iguais com o pai e a mãe, este sistema que está sendo obrigatório nas visitações, é enlouquecedor para a criança. É a promoção avassaladora do falso self, conceito psicanalítico que define a personalidade “como se”com a vivência interna de imenso vazio, a personalidade “como se”, a personalidade que não se pretende ser, o que importa é, apenas, parecer. Além da produção desenfreada de falso self, a Guarda Com Partida pode ter uma atuação ainda mais grave se pensarmos no caráter divisório da mente que ela impõe. O duplo que se constitui na cisão é semelhante à cisão da mente nas psicoses. Não há produção da doença, mas há o estímulo para o desencadeamento da doença nas crianças que são portadoras. E também, neste sistema de duplicidade de vida, há um treinamento de comportamento psicótico. Falsos selfs e psicóticos serão numerosos. A possibilidade de cidadania, sombria.
A Guarda Compartilhada estabelecida em outros países tem sido reformulada. Canadá e Estados Unidos, e outros, já estão restringindo seu campo, antes ilimitado como foi promulgada no Brasil. A Austrália revogou em 2011 a lei da Guarda Compartilhada, que tinha entrado em vigor em 2006. Baseado em estudo científico, os danos consequentes foram apontados em sua nocividade, e em 05 anos ela morreu no seu nascedouro de ilusão de bondade de adultos feridos pela separação. Estudo científico, há que se produzir, para não cairmos nos achismos de técnicos que ditam afirmações rasas, porque, mal formados, neste enganoso mar de crenças em que afundamos cada vez mais. Sem ciência, não crescemos, rodamos em círculo ou regredimos.
Por acaso, alguém realizou um estudo para saber da operacionalidade desta Lei no Brasil? Ou, como em tempos que não gostamos de lembrar, a lei vem ditada de cima para baixo? Sem considerar nossa especificidade como nação mestiça de muitos, cultura de composição de várias tradições, de muitas importações, que entrou precocemente no consumo de máximas alheias, um pequeno grupo, por achismo, fez o lobby da fábula das pessoas maduras e frias que nada sentem quando se separam, e tem uma “enorme” preocupação com as crianças. Falta-nos conhecimento técnico, falta-nos sabedoria que vem com a experiência, falta-nos paciência, falta-nos bom senso. Não existe mágica quando se trata do humano. Não há família instantânea, nem separação twitada.
O princípio do melhor interesse da criança fica para depois. Afinal, até o século XVII o infanticídio foi tolerado legalmente. Até hoje temos Bernardos que, iludido pela esperança de ser escutado, buscou os órgãos da justiça para pedir proteção. Foi assassinado pelas pessoas que, timidamente, ele denunciava. A palavra da criança está sendo completamente desqualificada por grande parte dos Operadores da Instituição que lhe nomeou Sujeito de Direito. Continuaremos fingindo que está tudo bem com a fábula da família coração.
* Ana Maria Brayner Iencarelli é psicanalista de criança. (34)