sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

MORADA NO INFERNO DE UM POVO SITIADO

MORADA NO INFERNO DE UM POVO SITIADO

          J.R. Guzzo, é jornalista, escreveu o artigo “Descida ao inferno”, publicado na Revista Veja edição 2341, de 02 de outubro de 2013. Rodrigo Constantino é economista, escreveu “Delírios de um povo sitiado”, publicado no Jornal O Globo de 01/10/2013. Em tempos próximos, por caminhos diversos, ambos tocam no inferno interno da tortura do abuso sexual em crianças e adolescentes, praticada diariamente nos lares brasileiros. Constantino, na expectativa de sua participação no evento Oriente Médio: Crise e Esperança, traz a tese de Kenneth Levin, que buscou em Anna Freud parte da explicação das questões do fracasso da Primavera Árabe. O comportamento das crianças abusadas ilustra claramente o mecanismo de defesa a criança se sente culpada, e, diante de um inimigo imbatível, junte-se a ele. A identificação com o agressor, mecanismo de defesa do ego, tem sido amplamente usado em várias situações humanas. Opressores e oprimidos, o jogo do pequeno poder seduz as mentes perversas. A pedofilia, a pior das perversões, evidencia as operações realizadas pelo abusador para ficar no lugar da vítima da criança sedutora. Culpada e na esperança de ser amada por aquele que abusa dela, ela se compromete em guardar segredo. Além desta proteção adquirida pelo abusador, a identificação com o agressor é responsável pelo ciclo de compulsão à repetição, abusado hoje, um tipo de abusador amanhã.
          Em “descida ao inferno”, Guzzo nos refresca a memória tão adoecida pela repetição de episódios deste tipo. Mas este é um caso emblemático da nossa realidade. “Trata-se de um episódio chocante por sua crueldade em estado puro, e o resultado inevitável de uma conspiração não declarada dos agentes do poder público para permitir a prática aberta dos delitos mais selvagens – por serem eles mesmos os autores dos crimes, ou pelo uso que fazem da letra da lei para livrar os envolvidos de qualquer risco de punição”. L.A.B., uma menina de 15 anos, tentou furtar um celular e uma correntinha de prata de um sobrinho de um investigador de polícia da delegacia de sua cidadezinha. A menina de 15 anos “foi presa dentro da prisão: arrastada para o fundo da cela, de onde não podia ser vista, tinha a sua miserável comida confiscada pelos outros presos, que só lhe permitiam comer se não desse trabalho durante os estupros”. Até que a mídia descobriu. Mas a mídia tem seu tempo midiático, e são tantos os descalabros... Foram 26 dias presa aos 15 anos numa cela, exclusivamente, masculina, habitada por mais de 20 homens, sendo estuprada 5 ou 6 vezes por dia/noite. Isto leva a pensar que cobre, com intervalos pequenos, o seu período fértil. Sabemos que o ciclo menstrual é de 28/30 dias, não seremos ingênuos em pensar que o período fértil desta menina se deu a partir do 27º dia de sua detenção. É possível que hoje ela tenha um filho do “Cão” ou do “vice-Cão”, os dois detentos punidos. Os únicos punidos neste episódio. Quantas crianças nascem por dia no Brasil, geradas em estupros e em incestos?
          O Estatuto da Criança e do Adolescente, E.C.A., só é referido quando nos indignamos com os benefícios que favorecem adolescentes de 17 anos cometendo delitos, assaltos, crimes, alguns hediondos. Nestas ocasiões ele é execrado. Avolumam-se os clamores para a diminuição da idade penal. O E.C.A. é belíssimo na letra da lei! Copiado por muitos países, elogiado como avançado. Confuso fica constatar que vivemos, para alguns é claro, o tempo da masmorra. Por que a menina L.A.B, de 15 anos não foi  que “beneficiada” pelo E.C.A.? Por que a delegada que efetuou a prisão não cumprindo o E.C.A., que reza a apreensão de menores de 18 anos, e não o encarceramento, não foi responsabilizada legalmente pelo crime que cometeu? Por que a M.M. Juíza que “regulamentou” a prisão da menina de 15 anos, não foi punida pela irresponsabilidade e pelo descumprimento da E.C.A. em seus inúmeros artigos que rezam a proteção da criança e do adolescente até 18 anos? É dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela integridade física, psicológica e social da criança e do adolescente. Está escrito lá, e também na Constituição, deveria ser obedecido pelos Operadores de Justiça. O artigo parece-me, é o 244-A do E.C.A., artigo acrescentado pela Lei nº 9.975, de 23.06.2000. Como não sou jurista, posso estar equivocada. No entanto, uma indagação não me sai do pensamento. Por que Delegada e Juíza, duas mulheres, fazem isto por 26 dias com uma menina? Difícil de responder. Talvez impossível, senão à luz da justiça com as próprias mãos, ou à luz da psicopatologia das perversões pela ausência absoluta de capacidade de empatia.  
          O que acontece que um jornalista e um economista, pessoas brilhantes em seus saberes, mas que não tiveram, necessariamente, uma formação acadêmica voltada para o psicológico, são capazes de compreender tão claramente a perversão do abuso sexual, e, Operadores de Justiça que deveriam exercer, institucionalmente, a proteção escrita no Estatuto, não o fazem. Apesar de termos excelentes Operadores de Justiça, também, no caso de L.A.B., que não é a única, não ouve apenas omissão, o que já é grave. Houve conivência com a transgressão.  Aproveito a oportunidade para perguntar: quantos pedófilos estão presos, condenados segundo o agravamento das penas? Será que não existem? Como bem disse Guzzo, este Brasil não muda. Certamente isto se deve ao resíduo do entendimento da importância, nenhuma, da criança e do adolescente. Não adianta a letra da lei, é o comportamento transgressor que perdura. Afinal, o Infanticídio foi tolerado até o século XVII. Continuamos matando crianças e adolescentes de bala perdida, de crack, de barganhas lucrativas nas mais diferentes moedas, enfim, de miséria psicológica. Meninos e meninas abusados e explorados sexualmente. Adolescentes violentados. Este é um povo de crianças e mães sitiado pelas instituições. Abandonados e desamparados, sempre desacreditados, ricos e, principalmente, pobres. O abuso sexual percorre todas as camadas sócio-econômicas, todas as graduações profissionais, intelectuais e religiosas. Porque não é preciso tirar a vida para causar uma morte. A tortura sexual em suas diversas formas de abuso, mata a vida psíquica, mata o processo de humanização, mata a possibilidade de cidadania.

Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Crianças e Adolescentes. Outubro de 2013.