terça-feira, 6 de maio de 2014

BERNARDOS, O E.C.A., A CARTA MAGNA, TODOS NÓS.



BERNARDOS, O E.C.A., A CARTA MAGNA, TODOS NÓS.

     Estamos no tempo midiático da perplexidade e da indignação diante dos fatos que serraram a vida deste menino de 11 anos. Ele, mesmo muito criança ainda para dimensionar o horror de mentes perversas, percorreu todos os lugares, todas as promessas de proteção à integridade física, psicológica e moral de uma criança. Todas, portas enganosas e frustrantes que o devolviam para o sofrimento cotidiano. Todos sabiam. Mas, ninguém foi capaz de ter empatia e dar crédito a seu repetido pedido de sobrevivência.
     Para Bernardo, a fila andou, chegou a sua vez, antes já houve a Joana, também abandonada pela inversão de guarda, antes a Isabela jogada pela janela, e antes dela outros que minha memória rejeita guardar, mas que a lembrança do horror causado, nunca me deixou. Crime de lesa criança. Crime de lesa a Pátria do amanhã. 
     Escrevemos, lindamente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 3º, art.4º, art.5º, art.7º, e na Constituição art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela integridade da criança e do adolescente e pela garantia dos direitos fundamentais. Se, de novo retomamos este tema, é porque a Lei continua sendo pouco cumprida, e a sociedade só se horroriza quando uma atrocidade chega à mídia, mas trata como fato isolado, logo esquecendo. Nosso judiaciário falha monotonamente. São as crianças que são punidas, que estão cada vez mais isoladas em seu sofrimento perpetrado por adultos perversos. Não há resiliência psicológica possível para uma criança viver como um saco de pancada ou um escravo sexual de um adulto perverso. É a prática da tortura doméstica mantida pelo medo, que acontece nos porões dos lares, executada sob o manto da imagem de família normal.
     A Via-Crúcis de Bernardo é emblemática para constatarmos o enorme fosso entre a Letra da Lei e a realidade do sofrimento de crianças e adolescentes que necessitam de proteção contra ataques dos adultos de quem dependem. As evidências, no caso de Bernardo, são inegáveis, mas de nada adiantaram. Protegendo quem não lhe protegia, ele, com reserva e guardando uma parte do segredo, buscou uma solução para seu sofrimento no espaço intrafamiliar, no nuclear e no extensivo, no social junto ao casal substituto de figuras parentais, no Conselho Tutelar, até mesmo por conta própria, indo sozinho à Promotoria de Direitos de Crianças e Adolescentes, na Audiência da Vara da Infância e Adolescência. Não foi escutado. Foi neste momento que foi acolhido, ingenuamente, o compromisso do seu pai, – título --, de melhorar as relações afetivas, uma segunda chance, compromisso creditado pelo Juiz, que determinou 90 dias para uma reavaliação desta tão evidente situação inafetiva. Antes de 60 dias, no dia 04 de abril, o caso da tal “negligência afetiva” foi resolvido.
     Não há por que conceituar como “negligência afetiva”, ou vontade de “ter atenção e carinho”, esta grave situação de descuidado e de irresponsabilidade civil a um vulnerável. A violência explícita na atitude proativa continuada de exclusão do núcleo familiar torna-se sinônimo de dolo. Gostaria muito que alguém se interessasse pelo estudo do feminino contido no caso. O caso em pauta traz duas mulheres, uma mãe de meio-irmã desta criança, portanto exercendo o papel de mãe, título, não a função materna, equívoco comum cometido por operadores de justiça, outra assistente social por profissão que vende o serviço de matar uma criança, parece que para proteger um homem, o pai. Mulheres que se unem para matar uma criança? Acredito que é uma evidência cruel da inexistência do instinto materno das mulheres, mito falso. Venho afirmando que esta falsa crença, instinto materno nas mulheres, não é compulsório. A boa qualidade da maternidade é alimentada pelo cuidado e responsabilidade afetiva que foram recebidos enquanto esteve na posição de filha, numa cadeia alimentar de afeto. Há que se entender também que a função de mãe, isto que estamos definindo nesta cadeia, é exercida também em substituição, ou seja, não é obrigatório a consanguinidade. Adotamos, afetivamente, todos os filhos, os de sangue também. Assim, tanto mãe quanto pai, podem ser substituídos saudavelmente.    
     No entanto, em nada surpreenderia se alguma leitura pseudopsicológica dos fatos aparecesse contemplando a pérola da moda jurídica, a alienação parental, atribuída à mãe desta criança, morta há 04 anos. Quem sabe, até se matou como forma de uma alienação parental. Não me refiro aqui à postura teórica séria e consequente da Desembargadora Maria Berenice Dias. Mas, absurdos são ditos e praticados sem fundamentos teóricos ou clínicos, acusando crianças e mães que denunciam. Atualmente, é ela, a alienação, que abriga e perverte a quase totalidade dos desvios de comportamento praticados por pais contra seus filhos invertendo a culpa e jogando-a em quem tenta proteger a criança. 
     Conselhos Tutelares, segundo a Secretaria de Direitos Humanos, faltam 632 para atendimento regular. Os que existem, sofrem de faltas de estrutura física, de estrutura instrumental e de estrutura de formação de pessoal. Prova da ausência de cuidado público. Denúncia anônima, como é mote de campanha, não existe, só com nome completo, endereço e o devido C.P.F. Inexperientes em lidar com a excelente performance verbal dos psicopatas, Psicólogos Judiciais e Assistentes Sociais não ousam afirmações que evidenciem os abusos físicos, sexuais, e psicológicos, que apontem um adulto praticante. O medo dos processos subsequentes, o movimento de Backlash contra técnicos especialistas, traz o silêncio do segredo, presente nestes casos intrafamiliares de desrespeito aos direitos fundamentais de vulneráveis. É melhor desacreditar da criança... E a conivência se faz. Há ausência de Políticas Públicas. Mas, criança não paga impostos e não vota. 
     Recentemente, fomos brindados por texto primoroso de Luiz Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça, sobre o julgamento do abandono afetivo, mostrando as duas posições sobre a transformação do afeto em cobrança pecuniária. Em 2005, e em recurso em 2009, uma Turma entendeu que o abandono e o descumprimento dos deveres de sustento, levam à destituição do poder familiar, o que foi entendido como uma contramão de uma possibilidade de aproximação entre pai e filho, negando a indenização. Mas, em 2012, outra Turma, contrariou esta posição e acolheu a possibilidade de indenização de abandono afetivo, tese baseada em fundamentos psicanalíticos para atribuir compensação financeira ao sofrimento imposto. O autor salienta a questão da intervenção do Estado naquilo que a Constituição garante, a intimidade e a vida privada, em nítida demonstração da liquidificação de privado e público. (“modernidade líquida”, Bauman). O que significou para os Operadores de Justiça no caso de Bernardo o termo continuado “negligência afetiva”? Sabem que ela mata? Mas, parece que a concretude dos vários pedidos de ajuda, (provas?), não convence tanto quanto complexas abstrações pseudo-psicanalíticas.
     Se Francisco pede perdão pelos abusos cometidos por padres ao longo da nossa história, encontramos um Juiz que não reconhece seu erro, dizendo que acredita sempre que pais não maltratam filhos. Como acreditar na bondade humana generalizada quando se está na posição de arbitrar sobre a proteção de vulneráveis? Foto de família feliz? A Justiça opta, cegamente, cada vez mais, pela idealização da convivência entre pais e filhos, custe o que custar, como a lei, recentemente sancionada, de visitação a pais apenados. Já havia a autorização per caso para este tipo de visitação funcionando muito bem, o que embaralha o propósito do aparecimento de mais uma lei. Gostaria que me respondessem sobre o grande bem do convívio com um pai, por exemplo, que matou a mãe a pancadas ou facadas na frente da criança, se a exceção da lei é apenas o dolo contra a criança. Visita em presídio, nos nossos presídios, é saudável para uma criança? Tirar a roupa para a revista é adequado? Mas, parece que todo homem é essencialmente bom. É a crença vigente, quase uma religião. Afinal, dos conceitos psicanalíticos incompletos e superficializados, guardou-se apenas que pai é pai. Serão confeccionadas salinhas com borboletas e passarinhos decorando paredes coloridas, que, silenciosamente, testemunharão os constrangimentos e os medos destes pequenos visitantes de “bons pais” em penitenciárias. Enquanto isso, as Salas de Depoimento Sem Dano que permitem a revelação de abusos cometidos em estado de segurança para a criança, diminuindo os enormes prejuízos causados pela perversão, estas, são raríssimas e de difícil aceite. Cabe ressaltar o trabalho de qualidade no uso da Sala de D. S. D., do Juiz José Antônio Daltoé Cezar, hoje Desembargador, postura impecável ao reconhecer com respeito e crédito a ajuda da criança no processo em que ela é vítima.
    Os perversos, difícil diagnóstico de psicopatia, até mesmo para profissionais da área que não sejam gabaritados, são pessoas acima de qualquer suspeita: afáveis, simpáticos, envolventes, manipuladores. Não tem um olho na testa ou a marca dos três algarismos seis em ninho embaixo do cabelo. A patologia é caracterizada, entre outros fatores, pela incapacidade de sentir culpa pelas maldades que pratica contra o outro. Há uma ausência da capacidade de empatia. Estão entre nós. Todos nós conhecemos, e nos relacionamos com pedófilos, necrófilos, espancadores de crianças, mulheres e idosos, violentos verbais domésticos. Compulsivos em suas específicas perversões, amantes de um pequeno poder secreto, por vezes conseguem alcançar um grande poder, em áreas como a monetária, a política ou a profissional. A fragilidade dos Operadores de Justiça diante destes psicopatas que escolhem a criança e o adolescente como alvo de sua perversão, é quase caricata.  
    A pífia campanha de combate à violência contra a criança, incentivando apenas o denuncismo, é enganosa na garantia do anonimato, aparece uma vez por ano no pré-carnaval. A ausência do cuidado com o acolhimento adequado e qualificado com estas vítimas, e o necessário tratamento psicológico especializado, a precária formação dos Operadores de Justiça e técnicos judiciais, a conivência social pela omissão ou pela impotência, são os indicadores sombrios para uma sociedade futura, repleta de pessoas sequeladas na infância, que foram tatuadas na alma. As crianças quando não são as vítimas, são testemunhas desta prática e da sua impunidade. Não conseguirão apreender a contento o código de civilidade. Não alcançarão o exercício da cidadania. A inexistência de Políticas Públicas, real exercício da proteção, permanentes, consistentes e consequentes é a negligência pública que contraria, frontalmente, o melhor interesse da criança. A omissão patrocina a conivência com a violência contra a criança.
     Como anunciado no artigo “Imagina na Copa”, por ocasião da Copa das Confederações, a ineficácia e a ausência de programa de educação, conscientização, acolhimento, fiscalização e acolhimento pelos órgãos competentes. Enfim, a responsabilidade da proteção que cabe à família, à sociedade e ao Estado, o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, permanece em seu estado de inércia. A reportagem coordenada por Carolina Benevides e colaboradores, O Globo, mostra pelo trabalho de campo no entorno dos estádios e nos principais pontos turísticos das cidades que terão jogos da Copa do Mundo de Futebol, que aliciadores são vistos trabalhando a olho nu. Promessas de ganhos entre R$10.000,00 e R$15.000,00 por trabalhos sexuais prestados aos estrangeiros, por meninos e meninas de 10 a 17 anos. Atestado da nossa miséria sócio-econômica e psicológica. Por que só repórteres enxergam o que está tão visível? Contra essa organização criminosa, excepcionalmente, será lançada uma segunda vez este ano aquela campanha, cartazes em aeroportos, hotéis, e publicidade em emissoras de televisão, que objetiva o denuncismo. A única coisa que sairá do papel e das reuniões. Após a denúncia, nada. Fora a possibilidade de processo contra quem denuncia. Impotência. Há um abismo intransponível entre a Lei escrita e o sofrimento da criança pelo abandono, negligência, abuso e exploração sexual, na família, no social e no judicial. Somos uma sociedade cenográfica. Os abusos contra crianças e adolescentes são uma sombra social.   
     São muitos os culpados. A responsabilidade com nossos pequenos é de todos. Muitos são culpados com uma dose de dolo por omissão egoísta. No caso de Bernardo, os seus executores detém o dolo, mesmo que sob os auspícios de todos os que tiveram a possibilidade de salvá-lo, numa autêntica e irrefutável omissão de socorro.
     Finalmente ele chegou à solução de suas dores, por todos conhecidas. Na falta do cuidado e da responsabilidade, a Proteção e a Paz foram a ele impostas. Como aconteceu, anteriormente, com outras crianças, e, por este estado de coisas, acontecerá com outras, foi a Morte que trouxe a proteção para Bernardo. Foi a Morte que falou a verdade de Bernardo. A Morte foi sua única chance. Sua mãe foi poupada desta tragédia, diferente de tantas outras mães condenadas ao choro perpétuo. Com ele, morremos todos em dignidade e cidadania.   Ana Maria Iencarelli.

Psicanalista de Crianças e Adolescentes.    <anaiencarelli@gmail.com>