terça-feira, 20 de janeiro de 2015

GUARDA COMPARTILHADA: o que não está sendo considerado

     Que os filhos não devem sofrer nenhum processo de afastamento quando da separação dos pais, todos concordamos é claro. Afinal, não há divórcio para filhos. Mas, há uma ilusão que perpassa a tese da Guarda Compartilhada Obrigatória, lei sancionada recentemente.
     Faz-se necessário considerar que uma Lei não muda um comportamento. Poucos, aliás, pouquíssimos são os homens que participam das operações diárias das crianças. Estas raras ações são, em geral, negociadas pelas mães, sendo seguidas nos casos de sucesso da negociação, por autoelogios, comparações com os maridos das amigas, assim como seguidos por uma busca de infindáveis recompensas junto à mãe da criança, configurando, claramente, o caráter de favor prestado.
     Os pais homens não dão uma passadinha no supermercado depois do trabalho, espontaneamente, porque lembraram que o leite ou a fruta da criança está acabando. Até quando lembrado, expressamente, pela mãe, eles podem esquecer. Não é por maldade, é por cultura.
     Os pais homens não internalizaram que o filho é responsabilidade da mãe e do pai, igualmente. Só que este “igualmente” não quer dizer que maternagem e paternagem sejam funções iguais. Ou que o tempo físico deve ser dividido no meio, como se a criança pudesse ser dividida no meio.
     É lamentável que os Operadores de Justiça estejam desconsiderando o comportamento masculino. Curioso é que estes mesmos Operadores que estão exultando com a sanção da Lei da Guarda Compartilhada, eles mesmos tenham o ranço do machismo e da misoginia. As mulheres estão pagando o pão que o diabo amassou por terem ousado a autonomia, o profissionalismo, os direitos legítimos como sujeito que são. São acusadas de vingativas porque não suportam serem trocadas por uma outra, são acusadas de uso de seus filhos crianças como moeda de troca, são acusadas de se fazerem de vítimas dos ex-maridos. Estes, uns fofos. Se assim fosse, a Lei Maria da Pena não estaria sendo tão desobedecida. É cotidiano, entre nós, o comportamento violento de homens contra suas mulheres, e não diminuiu o número de homicídios de mulheres por torpes motivos machistas e misóginos.
     Gostaria de saber por que só as mulheres ficam frustradas quando de um rompimento matrimonial? Os homens são muito resolvidos emocionalmente, e entendem muito bem quando são trocados por um outro homem? Neste momento da troca de amor da mãe, eles se referem à mãe só com adjetivos elogiosos para a criança?
     Gostaria de saber também se a nova Lei vai tirar o pai do sofá da televisão, do jogo de futebol, da cervejinha no boteco com os parceiros de copo, para ficar com o filhinho ou a filhinha brincando de carrinho ou de boneca, ou para dar a refeição ou fazer adormecer.
     Gostaria de saber se obrigando o pai a ter mais tempo físico, cronológico, sem considerar a mentalidade masculina e machista em vigor, aumentará o afeto entre pais e filhos?
     Sociedade cenográfica inspirada em publicidade de margarina no café da manhã garantindo pelo produto a família feliz, é arremessar as próximas gerações em direção ao aumento exorbitante de falso self, formação de personalidade “como se”. A imitação e a identificação são alicerces iniciais da formação da personalidade. Os adultos estão sendo obrigados a fazer de conta que está tudo bem, estão sendo proibidos de sentir o que sentem por dentro, dissimulando por decreto a saudável coerência entre dentro e fora deles. As crianças farão o mesmo, dissimularão.
     Lamentável também que a semântica de uma linha de um psicanalista, venha reger a nomenclatura que deve ter o rigor da Lei. Trocar o termo “Guarda Familiar” por “Convivência Familiar”, é pegar um significante, como é do uso da linguagem jurídica atual e minimizar, mitigar, fragmentar, a responsabilidade contida no conceito. Convivência se tem com vizinhos também e eles não tem responsabilidade com nossas crianças. “Guarda” tem o significante de objeto sim, mas de objeto de responsabilidade.  
     Lamentável que instituímos, mais uma vez, o faz de conta na nova Lei. Faz de conta que, por causa da Lei da Guarda Compartilhada, os pais homens vão se tornar extremamente devotados, que eles vão abrir mão de seus hábitos, não vão entregar suas crianças para suas novas namoradas ou para parentes e vizinhos para ir se divertir com suas novas namoradas, que estes ex-maridos não vão proferir que adjetivos elogiosos quando se referirem à mãe da criança, inclusos os divórcios litigiosos. Só entendimentos e afagos.
     Lamentável que não tenhamos a compreensão de que não há “gozo” e sim luto, um processo como toda perda afetiva, como bem define a autora jurista Maria Clara Sottomayor. Criminalizando, complicamos o que é delicado. Não é obrigando por uma Lei que iremos proporcionar o bem estar afetivo de sustentação para a criança. Não tem sido considerado, por exemplo, que as tais “duas casas” são, predominantemente, nocivas ao desenvolvimento psicológico e à saúde mental das crianças. Estamos patrocinando uma verdadeira obesidade de agravamentos de litígios entre adultos ex-casais e de adoecimento de crianças que sofrem com esta obesidade. Há muita fragilidade na formação teórico-técnica e nas especializações dos profissionais de psicologia, que deveriam prestar uma assessoria e um acompanhamento de qualidade, vide mídia, torna a situação ainda mais grave. Pensar que um casal em processo de divórcio litigioso, brigando com ou sem razão por qualquer coisa da partilha, por exemplo, “obedecerá” a lei de ótima convivência quando, no momento seguinte, for resolver sobre o rendimento escolar, se aula particular ou disciplina mais exigente de uma criança, é pura ilusão, puro faz de conta.
     Como já afirmamos uma lei não muda um comportamento. Ainda mais no reino da injustiça e da impunidade. Os países que tem a Guarda Compartilhada como procedimento comum tema prática do respeito às leis, do respeito aos direitos do outro, tem a prática de executar as devidas punições quando este respeito é violado. Querer pular etapas de desenvolvimento humano não traz o resultado sonhado porque não vamos ficar iguais a eles só porque temos uma lei igual no papel.
     A ditadura da lei imposta em sociedade despreparada pode ser desastrosa. Em meio ao clamor de pais homens, sedentos por igualdade de tempos de convivência com filho, abrigam-se, sob o manto da justiça, perversos que, com seus discursos vitimizados e de auto-alienação parental, não querem perder o tamanho do acesso que tinham ao corpo daquele filho ou filha, para usá-lo. A Justiça não tem o direito de ser ingênua. Já o foi no emblemático caso do Bernardo, que acabou sendo ouvido pela morte. Culpa ou dolo?
     Há que se entender que afeto não aparece por obrigação de estar junto. Os pais que estão tomando a cervejinha no botequim ou vendo o futebol na televisão amam seu filho ou filha sim! A obrigação de convivência não irá mudar estes hábitos, mas, certamente, deixará na criança o sentimento de desimportância, criando um problema para ela onde não havia. É o papel de pai que está sendo aumentado quantitativamente. Seria a função de pai que deveria estar sendo melhorada qualitativamente.
     Ditar por repressão que os sentimentos genuínos que advêm de uma separação, abortar o saudável processo de luto, que percorre do alívio inicial à tristeza das perdas subjetivas por um a dois anos, devem ser substituídos pela dissimulação desses sentimentos em prática de um falso self, fazer papel de, é construir no ar, comprometendo fatalmente a possibilidade de efetivação do compartilhamento das responsabilidades dos filhos. Se, a realidade mostra, com todas as letras, que não temos responsabilidade empática com as crianças, como vamos exercer a “Guarda Compartilhada”? O aumento da interferência da justiça dentro de nossos lares é uma evidência da imaturidade para gerir nossas famílias.

     Repressão autoritária, que nunca funcionou bem como método de evolução humana, tem em seus desdobramentos a indução à transgressão e à tortura, em suas diversas formas. Denuncia a precariedade de vivência de cidadania. Guarda Compartilhada é o melhor dos mundos para a criança. Mas, não há mágica, há processos de educação e amadurecimento, cultura, respeito ao outro e principalmente deveria haver à criança, e, o já monótono faz de conta pode nos custar muito caro.