terça-feira, 27 de outubro de 2020

Abuso Sexual: Ação e Reação. Por Tânia da Silva Pereira.

 

Abuso sexual: Ação e Reação *

O crime de abuso sexual contra a criança é odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.

Esse tipo de crime, tenha ele, em qual dosagem for, o seu ingrediente patológico, tão antigo quanto o próprio homem, com seus desvios inescrutáveis - e nem por isso menos culpáveis e puníveis - deveria ser hoje uma excrescência quase residual no avanço da civilização, sob os aspectos fundamentais da moral e da ética. Ocorre o contrário, contradizendo, aliás, os mais elementares preceitos da cultura moderna, ou como preferem alguns, pós-moderna e ultrapassando até mesmo o que deveria pertencer ao terreno da ficção em suas incursões na sordidez humana: está em plena e febril atividade no mundo atual o que os corações mais cândidos ou singelos devem resistir a acreditar como real - um movimento com nome e digital: o "backlash".

Trata-se da mobilização de recursos humanos e financeiros com o objetivo de desacreditar as vítimas de violência intrafamiliar, seus terapeutas, quem quer que tente proteger as vítimas, e, sobretudo, elas próprias, as crianças abusadas, assimo como seus advogados e peritos. Não estamos diante de um fenômeno localizado, transitório e frágil. Muito ao contrário. E é contra ele que os cidadãos de todos os continentes, não se excluindo obviamente os brasileiros, devem se mobilizar antes que esse trabalho deletério contamine defintivamente o ser humano de amanhã.

O "backlash" surgiu na década de 80 no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Na Argentina obteve um maior impulso a partir do ano 2000, por iniciativa do advogado e ex-juiz Eduardo Cárdenas, ao denunciar em um periódico jurídico - La Ley - "uma verdadeira indústria de denúncias de abuso sexual" em nome de uma suposta "defesa da unidade familiar". Com forte influência nos Tribunais argentinos, o referido advogado fez graves acusações a colegas e especialistas, atacando também a credibilidade do trabalho desenvolvido por instituições públicas. Diante deste movimento, segundo Virginia Berlinerblau "disfarçado de boas intenções", foi encaminhado importante documento à Subsecretaria de Direitos Humanos daquele país assinado por uma centena de profissionais de instituições públicas e privadas, advertindo para uma "escalada que põe obstáculos ao processo de visualização da violência doméstica".

Nesta mesma linha de orientação, também no Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro; eles se utilizam de questionáveis mecanismos para desmontar os serviços criados com o objetivo de apurar e atender situações de abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a vítima. Magistrados e Promotores, acusados de "parcialidade", e profissionais responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido denunciados em seus órgãos de classe visando intimidá-los ou impedi-los de atuar em situações de abuso sexual.

Tais considerações não devem ameaçar as iniciativas de manutenção e consolidação de um "trabalho em rede" que integre os vários equipamentos sociais. Essa integração não pode ser interpretada como um conluio entre profissionais que investem sua atuação na apuração da verdade e na proteção das vítimas.

O papel da polícia é importante na medida em que existam equipes especializadas em entrevistas de revelação, sobretudo com jovens e crianças e as respectivas famílias. O desenvolvimento de programas permanentes especializados multidisciplinares deve abranger a formação jurídica e técnica relacionada com o abuso sexual.

A baixa efetividade dos meios probatórios tem acarretado a impunidade de suspeitos. Em geral, a vítima é a única testemunha e as evidências físicas de abuso sexual existem apenas em uma pequena porcentagem de casos. Esses fatores atropelam as investigações em todos os seus níveis - desde a sua denúncia até o julgamento.

Não é raro e representa uma experiência freqüentemente traumática proceder-se a uma "acareação" entre a criança e o acusado, sobretudo quando este é um membro da família. Nesses casos, a criança pode sentir uma culpa adicional caso ele seja condenado. Sentimentos conflitantes para com o acusado são, em geral, uma causa significante do trauma experimentado pela criança abusada sexualmente.

Diante da freqüente dificuldade de revelação do abuso, sobretudo no Judiciário, destaque-se a iniciativa do Tribunal do Rio Grande do Sul ao implantar um sistema identificado como "Depoimento sem danos" por iniciativa da Desembargadora Maria Berenice Dias. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo.

Dentre os "mitos e realidades" que envolvem esse tipo de violência devemos distinguir situações controversas que devem merecer atenção dos especialistas e do Sistema de Justiça: os crimes são praticados em todos os níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos. A maioria das vezes são pessoas aparentemente normais e queridas pelas crianças ou adolescentes. A maioria dos agressores é heterossexual e mantém relações sexuais com adultos; pessoas estranhas são responsáveis por pequeno percentual dos casos registrados; diante da afirmação comum de que a criança que é abusada mente e inventa, documento oficial de orientação aos professores afirma que "apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de crianças maiores que objetivam alguma vantagem".

Uma atuação interinstitucional é necessária. Devem ser priorizados a promoção, apoio e estímulo a programas de capacitação de recursos humanos, aplicáveis à função de agentes governamentais e não governamentais, que trabalhem especificamente com crianças e adolescentes, sempre com vistas à atuação multidisciplinar.

Tânia da Silva Pereira é presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM.

* Este artigo foi escrito pela Professora Tânia da Silva Pereira, publicado pelo IBDFAM, em 31/07/2006. A posição da Dra. Tânia publicada pelo IBDFAM em 2006, 2006!!! Brilhante e mais atual que muitas posições dogmáticas que se infiltraram, sem nenhuma fundamentação teórica. Nossa imensa GRATIDÃO. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Quando a Criança relata um horror - Parte II

 

Quando a Criança relata um horror. – Parte II

 

     Por que uma criança que relata um abuso incestuoso, está mentindo, está fantasiando, e isto é afirmado como tendo uma falsa memória implantada? Ela é, totalmente, desacreditada.

     E, por que uma criança que relata um abuso praticado por pessoa sem laço familiar, não está mentindo, não está fantasiando, e ninguém colocou uma falsa memória sobre o episódio relatado? Ela tem todo o crédito.

     E qual seria a diferença? O que confere crédito à voz de uma, e descrédito com toda a desconfiança da outra criança? Por que o fato de ser alguém que a criança ama e obedece, o que é um enorme obstáculo afetivo para ela, torna seu relato falso? Parece ser uma incoerência. Mas, como se sustenta até quando provas materiais são logradas? Provas. Rompimento de hímen, fissuras anais, doença sexualmente transmissível, por que são vistos como “ausência de prova” e determinam a inversão da culpa e do dolo. Sem provas, a mãe que denunciou, passa a ser a suspeita, imediatamente, julgada sem nem espaço para o contraditório, e a criança é tirada de sua convivência. A Privação Materna Judicial é sentenciada, e nada traz o crédito para a voz da criança.

     O relato da criança é coerente, é detalhado, apresenta conhecimentos sobre a sexualidade adulta que ela não tem recursos cognitivos para saber. Esta obviedade é insuficiente para qualquer leve questionamento. A certeza de que ela mente, ela fantasia, ela repete um texto implantado, é dogmática, mesmo que não haja nenhuma possibilidade de comprovação, e que seja uma tremenda impossibilidade teórica. Lembrando, a criança funciona em raciocínio concreto, sua linguagem, sua memória, são movidas à experiência que passa pelos 5 sentidos perceptivos, visão, tato, audição, olfato, e a percepção gustativa. Se uma criança de 4 anos relata que do piupiu do papai sai um leitinho que tem gosto de estragado, é porque a criança sentiu o gosto do sêmen. Porque, aos 4 anos, a criança não tem noção de ereção nem de ejaculação sem que tenha passado pela experiência na boca, do gosto experimental, ao vivo.

     De difícil compreensão, ficamos diante de incongruências ilógicas. É quando surge a pergunta: como é possível, sem sustentação nem mesmo de bom senso, ser mantida esta postura de descrédito na criança? Avançamos em estudos metodológicos científicos, desenvolvemos um excelente protocolo, escrevemos uma Lei, a 13.431/2017, onde construímos um novo paradigma, a Escuta Especial e o Depoimento Especial, vedando as inquirições de crianças, que causam coação, constrangimento, intimidação, torturas que causam revitimização. Mas, como a lei objetivou o relato da criança, retirando a inconsistência da subjetividade interpretativa, esta lei tem sofrido uma enorme resistência nos ambientes psico-jurídicos.

     Aqui cabe outra indagação. Por que profissionais que deveriam proteger a criança, optam por priorizar o adulto suspeito, e buscam a punição da adulta denunciante? Não podemos deixar de pensar que é preciso ter um outro elemento que alimente a cadeia que se formou para garantir a execução da Privação Materna Judicial, mediante o descrédito da voz da criança. Se, por um lado, encontramos despreparo e ignorância sobre a realidade do desenvolvimento infantil, por outro, é inegável que também existe a intencionalidade que usa estratégias bem articuladas.

     E, ainda. É do conhecimento de muitas esferas jurídicas, inclusive as federais, que a voz da criança e o adolescente, vítimas de abuso sexual intrafamiliar, portanto, incestuoso e continuado, é desacreditada. A repetição das revitimizações com sucessivos “estudos psicossociais”, levadas à exaustão do descrédito, descumprem, acintosamente, a Lei da Escuta Especial. Continuam a usar estes métodos de tortura para a criança, obrigando-as a fazerem várias “sessões” de acareação, quando o “olhômetro” é o único instrumento de aferição. Acareação e olhômetro são o bastante para montar um Sofisma, sem nenhuma preocupação com as consequências nefastas que estão causando.

     Há que se pensar que o sentido desta violação estruturada e rotineira tem raízes de difícil visibilidade. Mas que existem e têm muita eficácia. Lembrando que os comportamentos humanos, historicamente, abomináveis sempre foram amparados cada um em sua devida lei. A Exploração de riquezas pelos colonizadores era legalizada. O comércio mundial de escravos era legalizado. O Apartheid era legalizado. O Holocausto era legalizado. O Homem cria uma lei para ser amparado ao se comportar de maneira cruel com o outro.

     Hoje, crianças que são escolhidas como vítimas de abuso sexual intrafamiliar vivem um novo Holocausto. São entregues aos seus abusadores sob os auspícios do Estado. Desistem de relatar. Sofrem o processo de adaptação ao abuso. Vivendo em cárcere privado camuflado, esmagadas pela experiência contínua da dominação de alguém, não saberão reagir. Muitas morrem assassinadas pelos seus algozes. A maioria tem morte psíquica, mutiladas na dignidade e incapacitadas para a vida adulta das relações afetivas interpessoais saudáveis. Perdem a Voz. A combinação do fascínio pelo Poder Absoluto, o que move um abusador de criança, com a nossa omissão patrocina o comportamento perverso da prática da pedofilia e seus crimes. Passaremos a colher esta tragédia social dentro de alguns anos.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Quando a Criança relata um horror. - Parte I

 

Quando a criança relata um horror. Parte I

     A voz da criança merece crédito? Criança é Sujeito de Direito. Mas, quando ela desarruma o Mito da Família Feliz? Este é o título dado pela Desembargadora Maria Berenice Dias ao capítulo de seu livro “Incesto e Alienação Parental – Realidades que a Justiça insiste em não ver”, 2ª Edição, 2010. Neste capítulo, escreve a desembargadora afirma que, por despreparo dos operadores de Justiça, o que vigora é uma conivência com o criminoso, o abusador sexual. Em outro capítulo do mesmo livro, Falsas Memórias ou Apuração Inadequada, Maria Helena Ferreira chama a atenção para este tipo de abuso, onde “a violência e a distorção da posição de autoridade paterna invadem a família, provocando um borramento das diferenças generacionais e sexuais. Instala-se uma confusão, que deixa sem opção a vítima”.

     Mais adiante, esta autora diz: “Passa-se, então, a delegar à criança-vítima o fornecimento da prova. Já que seu corpo não ficou concretamente marcado, pede-se para que sua mente, esta certamente marcada, exiba com clareza a certeza de que o abuso aconteceu. E se pede para a criança informação detalhada, não respeitando sua idade, seu nível de pensamento, seu estado traumático, embora para qualquer outro assunto esses cuidados sejam tomados”. Talvez alguns digam que isto era antes de 2010. Que hoje não mais se pratica este absurdo. Ledo engano.

     Primeiro, é preciso ter o conhecimento de como foi aprimorado na perversidade este fornecimento da prova pela criança/vítima. Foi acrescentada e solidificada, com justificativa pífia, a acareação, a criança é obrigada a fazer uma sustentação, com relato que lhe é pedido pormenorizar, diante de um perito que lhe é desconhecido e do autor dos abusos que ela apontou. Tudo, num clima interpretativo da subjetividade do perito. A partir daí, a desqualificação da voz da criança está assegurada. Laudos são emitidos afirmando que não houve abuso. Laudos, cada vez mais, sentenciais.

     Estudiosos com Responsabilidade passaram a se debruçar na questão da sobrecarga da criança que revela abusos sexuais incestuosos. Pesquisaram em 26 países como era tratada esta questão. A Childhood Brasil contribuiu e fundamentou uma mudança de paradigma. Ao invés de inquirição da criança, foi proposta a Escuta da Criança Vítima ou Testemunha de Violência Sexual, ampliando e qualificando a escuta. Escuta. Entenda-se como violência todo ato libidinoso, mesmo que não deixe marca material.

     As perguntas são uma parte muito importante desta Escuta Especial. Observando princípios de respeito às peculiaridades da criança, esta metodologia foi lançado o Protocolo, há pouco tempo, para complementar a Lei da Escuta Especial, datada de 04/04/2017, Lei 13.431/2017. Esta lei, 13.431/2017, determina que nenhuma criança ou adole4scente, vítima ou testemunha seja ouvida em qualquer outro método que não a Escuta Especial, com gravação em vídeo pelo cuidado com a revitimização. Temos a constatação de crianças levadas à exaustão de “estudos psicossociais” com direito à acareação, que induzem a criança ou adolescente ao descrédito das Instituições que deveriam protege-los, como já ouvi de vários, “já falei mais de mil vezes e ninguém me ouve, agora digo que não houve nada, quero me livrar logo daquelas pessoas que só duvidam de mim”. É a Retratação que é produzida, institucionalmente, por esta exaustão.

     No entanto, uma curiosidade chama a atenção. Quando o abuso sexual é extrafamiliar é praticado por alguém fora do grupo com laços familiares, a criança é acreditada de pronto. Não se duvida. Não se faz pergunta “pegadinha”. Por que será que quando o abusador é um funcionário da escola, o amigo do vizinho, ou o tarado do parquinho, a voz da criança e do adolescente tem crédito? Ela só mente ou fantasia quando é o pai, o tio, o avô, o irmão mais velho, que, justamente, trazem um acréscimo de angústia e prejuízo mental muito maior?

     O mais incrível é que, apesar de todas as evidências de revitimização no uso de métodos que incluem a tortura da acareação, a lei 13.431/2017, da Escuta Especial e do Depoimento Especial, no mesmo método, as crianças e adolescentes continuam sendo submetidos ao descumprimento de seu Direito da Dignidade Sexual. Continuam os “estudos psicossociais” pelo método que utiliza o “olhômetro”, como instrumento de aferição de abuso sexual incestuoso. Como se fosse possível “ver” sinais de abusos incestuosos que acontecem há muito e são guardados e camuflados com todo cuidado pelo abusador e abusado. Na ausência absoluta de metodologia científica, aceita-se a subjetividade sem fundamentação de perícias que, partem de um preconceito e não se preocupam nem um pouquinho com a avaliação daquele que é apontado pela criança como o autor.

     Frequentemente, para não dizer sempre, quando uma criança consegue sustentar o relato dos abusos sofridos, o laudo a enquadra como tendo “falsas memórias” implantadas pela mãe que quer tirar dinheiro do ex-marido, ou ficou ressentida e quer prejudicá-lo. Lembrando que a memória da criança é construída com base em seu desenvolvimento cognitivo, ou seja, baseada na experiência. Uma criança de 4 anos não tem o conhecimento da ereção e da ejaculação de um adulto, portanto ela não tem como adquirir a memória de detalhes de cor, consistência e gosto do sêmen do pai. Estes itens são adquiridos por experiência vivida. O erro teórico da afirmação de falsa memória quando o relato traz estas experiências sensoriais é grosseiro.