quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Quando a Criança relata um horror - Parte II

 

Quando a Criança relata um horror. – Parte II

 

     Por que uma criança que relata um abuso incestuoso, está mentindo, está fantasiando, e isto é afirmado como tendo uma falsa memória implantada? Ela é, totalmente, desacreditada.

     E, por que uma criança que relata um abuso praticado por pessoa sem laço familiar, não está mentindo, não está fantasiando, e ninguém colocou uma falsa memória sobre o episódio relatado? Ela tem todo o crédito.

     E qual seria a diferença? O que confere crédito à voz de uma, e descrédito com toda a desconfiança da outra criança? Por que o fato de ser alguém que a criança ama e obedece, o que é um enorme obstáculo afetivo para ela, torna seu relato falso? Parece ser uma incoerência. Mas, como se sustenta até quando provas materiais são logradas? Provas. Rompimento de hímen, fissuras anais, doença sexualmente transmissível, por que são vistos como “ausência de prova” e determinam a inversão da culpa e do dolo. Sem provas, a mãe que denunciou, passa a ser a suspeita, imediatamente, julgada sem nem espaço para o contraditório, e a criança é tirada de sua convivência. A Privação Materna Judicial é sentenciada, e nada traz o crédito para a voz da criança.

     O relato da criança é coerente, é detalhado, apresenta conhecimentos sobre a sexualidade adulta que ela não tem recursos cognitivos para saber. Esta obviedade é insuficiente para qualquer leve questionamento. A certeza de que ela mente, ela fantasia, ela repete um texto implantado, é dogmática, mesmo que não haja nenhuma possibilidade de comprovação, e que seja uma tremenda impossibilidade teórica. Lembrando, a criança funciona em raciocínio concreto, sua linguagem, sua memória, são movidas à experiência que passa pelos 5 sentidos perceptivos, visão, tato, audição, olfato, e a percepção gustativa. Se uma criança de 4 anos relata que do piupiu do papai sai um leitinho que tem gosto de estragado, é porque a criança sentiu o gosto do sêmen. Porque, aos 4 anos, a criança não tem noção de ereção nem de ejaculação sem que tenha passado pela experiência na boca, do gosto experimental, ao vivo.

     De difícil compreensão, ficamos diante de incongruências ilógicas. É quando surge a pergunta: como é possível, sem sustentação nem mesmo de bom senso, ser mantida esta postura de descrédito na criança? Avançamos em estudos metodológicos científicos, desenvolvemos um excelente protocolo, escrevemos uma Lei, a 13.431/2017, onde construímos um novo paradigma, a Escuta Especial e o Depoimento Especial, vedando as inquirições de crianças, que causam coação, constrangimento, intimidação, torturas que causam revitimização. Mas, como a lei objetivou o relato da criança, retirando a inconsistência da subjetividade interpretativa, esta lei tem sofrido uma enorme resistência nos ambientes psico-jurídicos.

     Aqui cabe outra indagação. Por que profissionais que deveriam proteger a criança, optam por priorizar o adulto suspeito, e buscam a punição da adulta denunciante? Não podemos deixar de pensar que é preciso ter um outro elemento que alimente a cadeia que se formou para garantir a execução da Privação Materna Judicial, mediante o descrédito da voz da criança. Se, por um lado, encontramos despreparo e ignorância sobre a realidade do desenvolvimento infantil, por outro, é inegável que também existe a intencionalidade que usa estratégias bem articuladas.

     E, ainda. É do conhecimento de muitas esferas jurídicas, inclusive as federais, que a voz da criança e o adolescente, vítimas de abuso sexual intrafamiliar, portanto, incestuoso e continuado, é desacreditada. A repetição das revitimizações com sucessivos “estudos psicossociais”, levadas à exaustão do descrédito, descumprem, acintosamente, a Lei da Escuta Especial. Continuam a usar estes métodos de tortura para a criança, obrigando-as a fazerem várias “sessões” de acareação, quando o “olhômetro” é o único instrumento de aferição. Acareação e olhômetro são o bastante para montar um Sofisma, sem nenhuma preocupação com as consequências nefastas que estão causando.

     Há que se pensar que o sentido desta violação estruturada e rotineira tem raízes de difícil visibilidade. Mas que existem e têm muita eficácia. Lembrando que os comportamentos humanos, historicamente, abomináveis sempre foram amparados cada um em sua devida lei. A Exploração de riquezas pelos colonizadores era legalizada. O comércio mundial de escravos era legalizado. O Apartheid era legalizado. O Holocausto era legalizado. O Homem cria uma lei para ser amparado ao se comportar de maneira cruel com o outro.

     Hoje, crianças que são escolhidas como vítimas de abuso sexual intrafamiliar vivem um novo Holocausto. São entregues aos seus abusadores sob os auspícios do Estado. Desistem de relatar. Sofrem o processo de adaptação ao abuso. Vivendo em cárcere privado camuflado, esmagadas pela experiência contínua da dominação de alguém, não saberão reagir. Muitas morrem assassinadas pelos seus algozes. A maioria tem morte psíquica, mutiladas na dignidade e incapacitadas para a vida adulta das relações afetivas interpessoais saudáveis. Perdem a Voz. A combinação do fascínio pelo Poder Absoluto, o que move um abusador de criança, com a nossa omissão patrocina o comportamento perverso da prática da pedofilia e seus crimes. Passaremos a colher esta tragédia social dentro de alguns anos.

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