sexta-feira, 30 de agosto de 2013

          A vulnerabilidade da criança tem sido negligenciada. A omissão, não é problema meu, ou a conivência, se o agressor é ameaçador junte-se a ele, atitudes que tem patrocinado o abandono intra-familiar de nossas crianças.
           Este blog destina-se à exposição e discussão dos temas que compõem este campo minado. Violência sexual, violência física, violência psicológica, e os seus desdobramentos. Mitos e mentiras. Uso abusivo do poder. Os vícios da nossa cultura da transgressão. Perversão contra a criança. Despreparo de profissionais que deveriam proteger. Intencionalidade. A ausência de políticas públicas de proteção e acompanhamento. O grande jogo do faz-de-conta.
                   Em outubro próximo será lançado o livro "Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas", pela Zagodoni Editora. O texto que se segue inicia a questão. Foi publicado em novembro de 2012, no site "a voz do cidadão". Depois disso vieram as ruas. Acordamos, aprendemos a gritar. Mas, é transgredindo, de pouquinho em pouquinho, é negligenciando, é compactuando, que chegamos ao crime hediondo. Só no horror sentimos indignação por algumas horas midiáticas. Temos que continuar.


            CULTURA DA TRANSGRESSÃO

         Gostaria de pensar, psicanaliticamente, alguma coisa sobre a nossa cultura da transgressão, que é alimentada pela nossa incapacidade de adquirir a noção básica de lei, e, que, aliás, tem vários apelidos como “jeitinho”, “desenrolar”, “cervejinha”, “criatividade”, “onça”, “verdinhas”, “projeto”, “edital direcionado”, “comissão para estudo de”, “manipulação de dados”, “aprovação escolar progressiva”, “empurra-terapia da saúde”, etc., etc., etc. Infelizmente, as tragédias vêm se sucedendo numa tal velocidade que há uma sensação apocalíptica, por vezes assustadora. Como sofremos de distúrbio da memória e de distúrbio da visão, uma espécie de demência precoce e espécie de catarata social, esquecemos o que muitas vezes foi-nos mostrado, porque, mesmo exaustivamente, nossa visão tem uma opacidade. 
          Vivemos, há algum tempo, aqui entre nós “maravilhosos”, a segunda tragédia em intervalo de tempo muito curto, o desmoronamento da Região Serrana do Rio. Digo estamos vivendo porque a tragédia continua, agora é a do comportamento humano. O uso político, ou melhor, o mal-uso político não reconstruiu, não enterrou devidamente, nem mesmo contou os mortos honestamente. Afinal, era preciso não passar daquele número de intervenção, como loja, hoje, de R$9,99, tinha que ficar em até 999. Olhando aqueles bairros, parece que a chuva foi anteontem, e já se passaram 08 meses. Os moradores locais falam de valas perdidas. E, pior, de lugares onde não se mexeu para que o tempo se encarregue de decompor os corpos de crianças soterradas no fundo de um lago. Pequenos, somem em menos tempo. Seria preciso averiguar se seria uma terrível verdade ou uma sofrida fantasia daqueles que viram sumir quantidade de parentes e amigos de uma só vez, numa madrugada.
          As tragédias pipocam também por todo lado, as catástrofes, as naturais e as de comportamento. Por exercício profissional, e pessoal, acompanho de perto a instalação cada vez mais ampla e consistente do nosso comportamento transgressor, que, me parece, se tornou um orgulho entre nós. Desde sempre na história do nosso país ela, a transgressão, ocupou lugar valorizado, espaço amplo, banalizado em suas conseqüências, e até relativizado por uma espécie de critério de pesos e medidas, que acabou por isolar apenas o crime hediondo como o que nos horroriza. A tendência ao faz-de-conta é fácil de ser observada, quando decidimos olhar com atenção. Montamos uma sociedade cenográfica, onde há tudo que deveria funcionar, mas o desvio é quem manda na nossa encenação. O padrão ideal de comportamento é o da vantagem pessoal acima de tudo. Facilmente consertamos a evidência de um erro, empurrando a poeira para baixo do tapete. Por exemplo, o fracasso no processo de escolaridade, atestado pela repetência da 2ª série, e o abandono escolar, são resolvidos com a aprovação obrigatória e uma bolsa, ou seja, manipulamos resultados insuficientes e compramos crianças. E falamos bem baixinho que temos crianças de terceiro ano analfabetas nas quatro básicas operações de matemática, segundo o recente exame “ABC”, ou as mais de 2.1 milhões de crianças e adolescentes analfabetas, que são estudantes de 1ª a 8ª série, agora 9º ano, (como?), segundo dados do IBGE. Uma parte das nossas crianças de 7 a 14 anos, matriculadas nas escolas públicas, não sabe ler nem escrever. Engrossarão a coluna dos 2.4 milhões de adultos analfabetos. Mas e o índice de Desenvolvimento da Educação, numa massiva campanha publicitária dos êxitos governamentais que nos mostra uma enorme melhora nas nossas escolas? Este analfabetismo não entra nesta estatística?    Até, tentamos nos convencer que se colocarmos um computador na escola, está tudo resolvido, a inclusão se dará, milagrosamente. Afinal, o que importa é a cenografia. 
           Paralelamente, nas escolas particulares nós não permitimos a repetência, alegando razões da tão vulgarizada e mal-usada auto-estima, mas permitimos o bullying, quando fazemos a mais freqüente recomendação: não se envolva com o problema dos outros. Quando tentamos algum comentário sobre este fenômeno do comportamento das crianças e adolescentes na escola, só falamos do aluno-vítima, menos um pouco do aluno-autor, mas nunca nos lembramos de pensar nos inúmeros alunos-testemunhas, que referendam agressão de um que precisa se sentir forte esmagando um que é eleito como fraco. A Síndrome do Pequeno Poder,  em suas mais variadas formas,  é endêmica entre nós. 
            Vimos há pouco, o ferro das esteiras de tanques de guerra, em velocidade lenta e implacável, desmanchar trincheiras que beneficiavam os “donos” do Alemão. Vimos a água e a lama, moles, em alta velocidade, desmancharem a vida de milhares de pessoas nas vizinhas cidades do nosso descanso. Meninas foram estupradas lá em meio à destruição, meninas ficaram grávidas de traficantes aqui. As vísceras sociais, cronicamente adoecidas, ficaram expostas. Como chegamos a criar aquele câncer? Como? Mas não vimos nenhuma autoridade ou cidadão reconhecer nenhum erro. Afinal, a ausência de vergonha vem de par com a ausência de culpa ou dolo.   Talvez tenhamos extirpado o tumor, mas as células das metástases continuam lá. Tanto num terreno quanto no outro, as entranhas sociais expostas comprovam a história do nosso país: nossa omissão, nossa negligência, nossa corrupção, enfim, toda a nossa transgressão.
              A falsificação e a pirataria não são mais exclusividade de certos artigos. Legitimamos a pirataria do game quando, na saída do metrô depois da tarde de trabalho honesto e/ou institucional, compramos alguns jogos no camelô pelo preço de um na loja. A justificativa é que o Governo encarece muito com os impostos, e, além disso, o da loja ninguém garante que também não é pirateado, ou contrabandeado. Sem esquecer, é claro, que para nosso filho, criança, tanto faz e ele pode quebrar ou largar para lá e não vai nos causar tanta raiva porque foi baratinho. Estamos assim cometendo várias falhas educacionais, que são, freqüentemente, desconsideradas, tamanha é a tolerância e a banalização dos ditos pequenos desvios. No entanto, estes pequenos desvios estão sendo assimilados pelas nossas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um critério claro de certo e errado, de limite, de lei, de punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que, por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Não nos reconhecemos neste mecanismo de defesa?
                Falta-nos, a todos, vontade política consistente, conseqüente e persistente. Culpamo-nos uns aos outros, no entanto, todos, temos responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica. Quando relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os grandes, quando negamos nossa participação, quando nos identificamos com o agressor, quando negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o conteúdo, nós não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização social. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência, do desânimo que se converte numa certa excitação pela barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Não paramos para pensar o conteúdo destas notícias, ficamos na superfície. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade.   
                     A humanidade ainda não é competente diante de seu impulso destrutivo. Violência doméstica, consumo e o tráfico de drogas, corrupção, milícias de vários tipos, com leis próprias que incluem a pena de morte, pela ausência ou abuso dos serviços públicos, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer íntimo do exercício da opressão. O projeto de lei 2.654/03, que já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em 19 de janeiro de 2006, prevê a interdição do castigo físico. Este Projeto de Lei foi engavetado, abandonado ou esquecido, pelas nossas parlamentares que o “carregavam como um bebê”, por ocasião de campanha em que iriam se candidatar em seus respectivos estados. Recentemente, reapareceu, fracamente, como o início de uma campanha de cuidados com crianças. Será um novo Projeto de Lei? É aquele que será ressuscitado? Foi mais um Projeto cenográfico? Ou é mais um projeto cenográfico? No artigo “Violência e afeto” publicado pelo jornal O Globo, de 20/02/2006, escrevemos: “Por trás do tema está o prazer profundo pelo poder da posse do corpo de nossos filhos, crianças e adolescentes, em lugar da responsabilidade.” A garantia da fragilidade do outro é o que afasta a própria sensação insuportável de medo e de impotência, para então ceder lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência. Pais batem em seus filhos, que se tornam alunos-autores de bullying na escola, e continuam como pitboys a praticar a violência em festas, nas ruas, movidos a preconceitos, depois, como maridos, batem e humilham suas mulheres, e, repetindo a cadeia adoecedora, anos depois, aqueles filhos que foram espancados, passam a espancar seus filhos. E assistimos a fila andando. Passou a morte da Paloma, da Isabela, da Joana, do Bernardo, a internação do João Carlos, da “vaquinha” como a chamava sua mãe adotiva que marcava seu rosto com enormes hematomas, e de todos os que ainda aparecerão, paulatinamente, na mídia. O homem tem avançado muito em conhecimento, mas sabemos que este conhecimento não tem conseguido fazê-lo melhorar como pessoa. A doença mental, na ausência de medicamento e internação, pode ser tenebrosa e matar crianças. Uma terceira tragédia envolvendo crianças. O fracasso da Saúde está nos escândalos repetidos. Hospitais Públicos de Pronto-Socorro que não possuem neurocirurgião, etc. Criança de 12 anos morre de dengue na zona sudoeste da cidade do Rio de Janeiro. Foi só uma? E a Saúde Mental? A violência psicológica, incluindo aqui o abuso sexual, praticada contra crianças e adolescentes, não deixa marcas visíveis, mas marca a mente para sempre.
             Mas, quando se fala de criminalidade armada, ainda ouvimos que foi nosso o erro, a nossa resposta ao plebiscito sobre desarmamento que foi a culpada. Vamos logo fazer uma “despesinha” para proibir a comercialização de armas e munição. E tudo estará resolvido na nossa política cenográfica de segurança. Será que poderíamos desarmar a rede de importadores de armas e munição? Certamente, caminhamos para mais uma cenografia. Nos hospitais públicos, alguns quase de papelão, na estrutura e no pessoal, o mesmo médico que vira maqueiro por solidariedade, pratica também a empurra-terapia para se defender da fúria da população ou para se defender da frustração com a precariedade das condições de seu trabalho. Assim manda o paciente adiante, para outro especialista, para outro hospital, qualquer coisa, sem sequer atender, minimamente, o paciente. O caso daquela criança que caiu da laje, e está com sinais visíveis a olho nu de estado de coma, e que é encaminhada, ou melhor, é empurrada para o oftalmologista porque está com um roxo no olho, olho que está sem nenhum reflexo. Ou daquela menina que entrou e saiu do hospital em coma, para morrer alguns dias depois com inúmeros sinais de maus-tratos.
              A miséria psicológica, esta forma de miséria que acomete os indivíduos de qualquer classe sócio-econômica, se instala quando o processo de humanização fracassa. E, diante de alguns comportamentos que somos obrigados pela mídia a tomar conhecimento, a impressão que nos fica é a de que estamos nos tornamos sub-animais. 
               O comportamento empático-responsável intra-familiar é a possibilidade de estruturação e desenvolvimento saudáveis, e, conseqüentemente, a possibilidade da boa convivência humana. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e nos comprometermos com aquilo que vamos dar como resposta, pensando, o mais próximo possível, em como o outro vive aquele momento ou situação. O outro e não eu. Esta é uma capacitação, processual e não pontual, que deveria fazer parte do desenvolvimento saudável das nossas crianças. Nós a perdemos, completamente, para o egocentrismo com frieza afetiva, nos últimos tempos. A nossa solidariedade da tragédia é muito bonita, fundamental para o começo, mas, sabemos, ela se apaga com o apagar das câmeras. Trocamos de foco e esquecemos sem ajudar a resolver o problema do outro que também é nosso. Vivemos um tempo regido por dois cultos. O primeiro, o culto ao egoísmo narcisista. Não é preciso ser, é indispensável ter, a qualquer custo. A passarela, o futebol, a mídia de imagem tem ido buscar na infância da cidade e do interior os seus trabalhadores, pequenos sonhadores explorados financeiramente pelas famílias e pelos agenciadores. O segundo, o culto à impunidade que, de uma maneira ou de outra, todos nós nutrimos, e que retira um dos dois elementos da base da internalização da lei, a sansão e seu sentido. A sanção é registrada na mente como a conseqüência daquela falha na responsabilidade. Assim, nossa sensação térmica de impunidade é cada mais intensa e, portanto, muito difícil de suportar.
                   Assistimos e torcemos por um certo “Nascimento”, (bem significativo), de um filme, quase documentário, onde as coincidências são apenas semelhanças. Ainda bem, que temos um Nascimento por aqui que tem trabalhado, verdadeiramente. Quando deixam. A tecnologia, menina dos olhos de nossos projetos políticos atuais, tem sua importância no mundo de hoje, mas precisamos muito mais e, urgentemente, de humanização, pelo exercício do comprometimento com o outro. Mas isso nos dá trabalho e, demora muito. Por outro lado, se o assistencialismo diminuiu a nossa linha da miséria sócio-econômica em 5.9 milhões de brasileiros, é no mínimo preocupante, que os tire da miséria tendo como critério sua inclusão na linha de consumo, para passar a assistir televisão ou ter um computador. Twittando a formação de nossas crianças na nossa sociedade cenográfica, estamos apenas adoecendo o amanhã de nossas crianças. Faz-se necessário sentir, se envolver, se responsabilizar, olhar no olho, ter trabalho, ter muito trabalho.
              Quanto mais transgressora uma sociedade, mais violenta ela é com suas crianças, seus idosos, seus doentes. Não precisa de nenhum esforço para constatar isto. A corrupção, sempre intocável, endêmica entre nós, é responsável pela degradação e destruição das instituições, dos conceitos e dos valores sociais. Os donos do poder, como bem nomeou o antropólogo, Roberto DaMatta, tem infalível e infinita competência para mantê-la e ampliá-la. A recente Campanha “Corrupção, o que eu tenho a ver”, sob a coordenação do Promotor Sávio Bittencourt, que visa os adolescentes, é exata no seu objetivo, o adolescente. Precisamos despertá-los para a responsabilidade, que é de todos nós, do combate deste violento câncer social. Quebrando a prática do cenográfico e desacreditado por razões óbvias, combate à corrupção com o processo de capacitação do pensar, do debater, do se posicionar dos adolescentes, os homens e mulheres do depois de amanhã. Neste mesmo sentido, continuamos nossa disposição de estender este seu importante trabalho para os menores, aquela nossa proposta de “voz do cidadão de amanhã”, dar voz e consciência à criança.
              Acabei me estendendo demais, mas ainda há muito para pensar. A vontade de continuar é enorme. Comecei a escrever este artigo há alguns meses, e hoje são 07 de setembro, dia de protestos contra a corrupção. Hoje, somos muitos. Temos que continuar, mesmo tendo pão, circo completo, futebol, carnaval, praia, etc., tudo, intencionalmente, estruturado pelos donos do poder. Sabemos que é difícil “perder tempo” com a sustentabilidade do processo de desenvolvimento da criança, a resiliência de sua mente, a falência destes processos, e a possível punibilidade em meio a tanta cenografia. A esperança, em alguns momentos, é a primeira que morre. Neste caso, deve morrer mesmo, porque esperar não vai adiantar. Urge trabalhar para acontecer, e não sucumbir aos tão sedutores, familiares e, socialmente, facilitados jeitinhos. A indignação há que continuar.  Ana Maria Iencarelli. anaiencarelli@gmail.com