terça-feira, 19 de novembro de 2013

PERFIL DO ABUSADOR -I

          Quem é o abusador sexual de crianças e de adolescentes? A resposta é: uma pessoa comum, que você nunca suspeitaria, e, mesmo depois de tomar conhecimento deste seu desvio de caráter, você se pega duvidando. A sua perversão, a pedofilia, este indivíduo, aparentemente comum, guarda embaixo de sete capas. Esta característica, a dissimulação, é ponto essencial de seu perfil. O abusador tem uma divisão em sua mente: o lado sociável e o lado da compulsão da perversão. O lado sociável fica a serviço da camuflagem da perversão. Esta segunda parte, nunca admitida por ele, é vivida apenas pela criança/adolescente com quem ele pratica o abuso.
          Como é compulsivo, o abusador repetirá sempre seu comportamento de abuso. Nada o deterá. Restrições, por exemplo, impostas pela família ou pela Justiça, não conseguem detê-lo porque o caráter compulsivo é sempre imperioso. Faz-se necessário que se entenda esta compulsão como um vício oculto, semelhante ao vício do álcool ou de uma droga. O alcoólatra, na falta da bebida convencional de sua eleição, apela para qualquer outra bebida, e na falta delas, para o álcool etílico, para os perfumes, os desodorantes, os produtos de limpeza, guardados em seus respectivos armários, de maneira que não levantam nenhuma suspeita sobre a ingestão do álcool. Assim também funciona o vício do abuso. Determinante. Quando na presença de outro adulto, por exemplo, nas visitas monitoradas determinadas, equivocadamente, pela Justiça, o abusador reduz esta restrição a um desafio para ele. Desafiar a lei é sua maior excitação e seu maior prazer. Pois, não é o prazer sexual que ele busca. Este, ele não tem nas sessões de abuso. É o prazer da sensação de onipotência, do controle do proibido – a excitação compulsiva por condutas sexualizadas se utilizando de um corpo que não possui atributos de sensualidade - enfim, é o prazer infantil de enganar a todos a cada dia, e ninguém conseguir descobrir.
          Por este motivo muitos abusadores ousam, com sucesso, abusar em público. Os gestos são discretos e rápidos, o olhar altivo, e, misturados a abraço, beijo e aparente carinho, a mão desliza por entre roupas pelo caminho determinado pela compulsão perversa até alcançar algum ponto excitante da genitália da criança. Pronto. Não precisa muito tempo ou muita coisa. O desafio foi vencido. O vício cumprido. A ousadia é tamanha que cega às pessoas presentes em torno da cena. E o triunfo, instantaneamente como uma droga, lhe preenche o buraco interno de sua perversão. Olha a todos com desprezo. Como não foram capazes de ver o que ele acabou de fazer? É superior a todos naquele momento. Solta a criança com esta sensação secreta de onipotência, e volta para o mundo dos pobres mortais, até o próximo impulso, quando repetirá o ritual abusador.
          Esta é uma marca do comportamento do abusador presente em todas as formas de pedofilia. Se o ritual é restrito ao aconchego do lar, se a compulsão desafia os olhares em volta em situações familiares/sociais, ou lugares públicos, ou se a tecnologia é o veículo, o prazer do abusador está neste desvio, na sensação de poder sobre o vulnerável e sobre a vulnerabilidade das instituições, completamente, fracas no combate e na punição desta patologia que deixa danos permanentes.
          A sensação de impotência experimentada, precoce e intensamente, pela criança, irá permanecer como um traço de seu comportamento diante de qualquer situação em que se depare com um poder do outro. Sua reação será sempre a de encolhimento diante do outro, não importando a sua situação real de possibilidade de enfrentamento. Este prejuízo, por vezes, a leva à invalidez social quando da natural competitividade da vida adulta. A pedofilia é equivalente à necrofilia: ambas as perversões buscam tirar sensações e prazeres sexuais de corpos inertes. O objetivo sexual é, essencialmente, de posse absoluta de um corpo.
          Por outro lado, a criança abusada terá um descrédito nas leis, e poderá, por identificação com o abusador, trilhar os caminhos da transgressão com o desrespeito aos limites da vida afetiva e social. Tanto uma linha de desenvolvimento quanto a outra, compromete o processo de cidadania. Aprisionada na sedução do abusador, entre promessas e ameaças, o amadurecimento de sua competência relacional fica obstruído por esta manipulação que se estende por toda sua infância. Iludida pela fantasia de que “super-amada” pelo abusador, a criança vai sendo arrastada na restrita tarefa de guardiã do segredo. Esta competência do abusador é central em sua personalidade porque lhe dá mais uma sensação onipotente. O abusador não ama a sua vítima, ela serve apenas para lhe fornecer estas sensações narcísicas de onipotência transgressora.
          Sendo um crime de difícil comprovação, as marcas se inscrevem na mente da criança abusada, o abusador, conta ainda com a impunidade, a marca de nossa sociedade. E, fazendo jus à sua psicopatia, quando ele é denunciado, lança mão de sua exímia capacidade manipuladora e inverte o sentido da acusação. É quem revela seu segredo perverso que é o culpado, é a criança que está inventando, é a mãe da criança que está levantando calúnia contra ele, ficando de vítima, e alojando-se até em figuras jurídicas, como falsas acusações de alienação parental, para gozar da proteção da Justiça.
          Como psicopata, o abusador não adquire o sistema de capacidade empática, tendo também defeituosa sua afetividade, de padrão narcísico e bastante anômalo. Ele não tem compaixão porque é incapaz de se colocar no lugar do outro e, assim, dimensionar o que o outro está sentindo em um sofrimento. A capacidade de empatia é responsável também pela aquisição da capacidade de sentir culpa por falhas e erros cometidos. Um abusador nunca sentirá culpa pela sua perversão, pelo que imprime à sua vítima. Portanto, ele não poupa a criança, intimidando-a, chantageando-a, ameaçando-a, de todas as maneiras que forem necessárias para garantir a sua própria proteção. Assim, o pai/abusador, (cerca de 85% dos casos são pais e padrastos), sem sentir culpa pelo que faz com filho/filha, não exerce mais sua função de pai, ou seja, incapaz de assumir a responsabilidade do cuidado, ele é maléfico ao desenvolvimento saudável daquela criança que ele molesta, rasgando o marco civilizatório da interdição ao incesto. Em tempo de reformulação de conceito de pai e mãe, é espantoso que se apele para a consanguinidade, item já relativizado pela ciência e atualizado pela Justiça, em seu Direito de Família. Quantas crianças já possuem seu registro com filiação a dois pais ou a duas mães. Pai é o cuidador, mãe, é a cuidadora. O cuidado de boa qualidade é que conceitua a função de mãe e de pai.
           O abusador é um torturador que substitui a dor para obtenção da informação, a política, pelo prazer da manipulação sexual para a não obtenção da informação. Nesta tortura o prazer é usado para guardar o segredo, o abuso. Os elementos são os mesmos invertendo-se os sinais. A tortura de prazer por excitação sexual é praticada por ele, aprisionando a criança a ele. Torturador e torturado passam a formar uma amálgama indissolúvel, com uma cristalizada dependência recíproca. Mas, apenas o torturado, a criança abusada, conhece o sofrimento.

Ana Maria Iencarelli. Novembro de 2013.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Fenômeno “Lewandowski”, cultura da transgressão e pedófilos



          Vivemos um tempo de experiência coletiva da cultura da transgressão. Nem nos damos conta do infeliz exercício cotidiano de negociar a lei a cada esquina, mergulhados na cultura da transgressão, o que tem nos levado à sensação de vivermos numa sociedade cenográfica, onde instituições, comportamentos e relações psicossociais são de faz-de-conta, de papelão pintado com as tintas do narcisismo. A lei não é internalizada, só é convocada quando de um interesse pessoal, e nem se aplica a todos. Assim, o pouco conceito de lei resta pessoal, não sabemos o que é coletivo ou público. Negligenciar, desanimar, se omitir, relativizar ilícitos, da regra de trânsito ao crime hediondo contra a criança, distorcer e interpretar negando o óbvio contando com a onipotência de se acreditar capaz de convencer a todos, culpar a vítima, negociar e customizar o limite e a lei, etc., etc., etc., é o que acontece em todas as situações das nossas relações sociais. Este estado de desnecessidade de compromisso e responsabilidade com o outro favorece, generosamente, aqueles que, patologicamente, precisam do prazer da sensação de poder. É nítido este comportamento na maioria dos políticos, dos empresários, dos governantes. É o que fazem também os pedófilos, os “ao vivo” e os virtuais. Acreditam estes que ninguém irá descobrir o que praticam e, quando denunciados, negam o óbvio, acusam quem lhes denuncia, porque conhecem bem seu potencial de impunidade. Afinal é apenas uma criança falando, ou, no similar deste momento, os brasileiros, portanto, não merecem crédito. São os crimes quase perfeitos porque, silenciosos e perversamente frios. Abusadores e corruptores não deixam rastros, muito menos provas, é claro. Juízes são feitos para fazer Justiça. E supomos que, quanto mais Supremo, mais capacitado ele está para avaliar, relacionar e julgar indícios, juntando peças destes sofisticados quebra-cabeças, intencional e ardilosamente, embaralhadas para o acobertamento destes criminosos. Provas concretas são equivalências de operações mentais primitivas, implicam em ingenuidade, estão no nível de pensamento concreto no desenvolvimento cognitivo da criança. Já enjoados de pizza, fomos convidados para a primeira festa da cidadania de uma Instituição de Verdade. Mas, assistir às distorções das constatações nos autos, sendo travestidas em acusação de desnecessidade de indicação de "ato de ofício", é  traumático. Muito se parece com a minha vivência de batalha e frustração dos caminhos da proteção de crianças e adolescentes. Quando escuto o argumento “mas não houve penetração”, então não é tão grave uma menina, ou um menino serem abusados todas as noites pelo pai. Esquecem as pessoas, e nem querem ouvir, que, como na corrupção é a presença de barganha, no abuso é a proposta tirada do corpo de uma criança com 02, 12 anos de idade, deste corpo sem sensualidade dar prazer a um adulto, é este estupro psíquico, até à distância. Tocando com carícias ou através da tela de um computador, os danos psicológicos são irreversíveis em sua maior parte.
          Por toda a implicação das representações, o fenômeno “Lewandowski” nos assustou. Fomos jogados de volta à impotência, tornamo-nos vulneráveis, sentimo-nos como uma criança quando é abusada por um adulto. Os crimes de poder, o pequeno ou grande poder, tem a mesma essência: o prazer do criminoso advém da sensação de onipotência pela transgressão realizada e impune. De bônus, ele parte para o mecanismo de defesa primitivo da projeção: a inversão para transformar a vítima em algoz, e, conseqüentemente, o “pobre agressor” se tornar vítima. Hoje, estes criminosos estendem seus tentáculos atacando os técnicos que confirmam seu comportamento agressor sexual, movendo processos contra os profissionais que se pronunciam. Desde a década de 60, estudos demonstram que este movimento denominado BACKLASH acontece e diversos países, e há alguns anos já chegou entre nós. Engessados pelos processos, ameaçados da perda de seu registro profissional, os técnicos são silenciados, e servem de “exemplo” que outros técnicos se amedrontem e nada afirmem em laudos vazios de tudo o que ocorre de fato entre aquele abusador e a criança.

          É, portanto terrorífico vermos um operador de Justiça argumentar a favor de um crime de poder público, sacramentando pela absolvição a impunidade, ou pelo menos contribuindo para baixar a média das condenações. Não conseguimos dimensionar a extensão dos estragos a médio e longo prazo, ou o número de crianças atingidas. A indignação é muito pouco diante da força das nefastas conseqüências deste fenômeno. O uso destes argumentos será transformado em Jurisprudência, que será bem aproveitada pelos pedófilos, a desnecessidade de contestar indícios beneficiados pela necessidade de provas. A queda da cultura da transgressão é um longo e penoso processo de cidadania a ser batalhado por todos nós, todos os dias.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ABUSO SEXUAL: A TORTURA QUE CONTINUA SE REPETINDO


                                                                                                                                    Setembro de 2013.
      
ABUSO SEXUAL: A TORTURA QUE CONTINUA SE REPETINDO


         É inacreditável ouvir uma psicóloga de inteligente respeitabilidade, em grande rede de rádio, afirmar para uma mãe que ficasse calma, que não se preocupasse porque seu filho já sabe se defender do pai, e que isto, abuso sexual, é uma coisa da vida, normal. Ela estava respondendo uma mãe cuidadosa que perguntava sobre sua preocupação com o filho de 08 anos que havia revelado o abuso sexual praticado pelo pai, desde que ele, o menino, era pequeno. A mãe buscava uma orientação porque as visitas com o pai iam acontecer, como deveria fazer, a quem buscar, como proceder.
          Ouvir que uma criança, que foi abusada desde pequena, já sabe se defender de seu pai abusador é estarrecedor, mesmo quando este absurdo é dito por um leigo. Empurrar para a própria vítima a culpa e a solução do que sofreu é desampará-la no momento em que mais precisa, e, infelizmente, muito mais comum do que se imagina. Uma mulher adulta, eu mesma, por exemplo, a mãe desta criança ou a psicóloga que está afirmando isto, me sentiria tranqüila ao conviver com um parente que tivesse me estuprado, recentemente?  Então, por que exigir isto de uma criança? Como ela já sabe se defender de um psicopata que o usa como objeto sexual?
          Senão vejamos. Por que um elefante ou um leão obedece ao seu domador, sendo ele tão menor que o animal? Vale só lembrar que como os animais, o menino também foi oprimido desde pequenino. Continua em vigor em sua mente a sua impotência diante de um adulto forte a quem ama e deve obediência. Crianças abusadas. Como animais domados para demonstração de poder do serzinho humano que tem o chicote na mão, o concreto ou o verbal da ameaça terrorífica, não tem nenhuma condição de se defender das ordens do “poderoso dono”. Se fosse tão simples se defender aos 08 anos, aquela autora, abusada desde os 07 anos, que escreveu sua história não teria tido um filho do próprio pai aos 15 anos e outro filho do meio-irmão aos 17 anos.  
          Ao longo da minha experiência como psicanalista, tenho visto homens e mulheres de 30, 40, 50 anos, trazerem seus prantos viscerais, seus tremores incontroláveis, suas tonturas imperiosas, enfim, as várias respostas vago-simpáticas ao contato com seus abusadores da infância. O medo permanece igual, como que congelado pelo poder aniquilador anunciado pelo abusador para manter o abusado como seu segredo protetor. Quem tem responsabilidade empática consegue dimensionar este desastre interno.  
          Tratar o abuso sexual, crime hediondo escrito na lei como estupro a vulnerável, como coisa normal, da vida, é minimizar, é banalizar o crime e ficar conivente com o abusador. É ignorar o conceito contido na lei, achando que só é estupro quando há rompimento de vagina e ânus. É dar as costas ao vulnerável. Nossos deputados também nos deram as costas para transgredir institucionalmente, escondidos pelo voto secreto, ou pela saída estratégica do plenário, mantendo os direitos de um deles, hoje hóspede de uma penitenciária. 
          Tomo a liberdade, como especialista que me tornei em tratamento de crianças e adultos abusados na infância, de responder às mães que vivem esta angústia. Seu filho de 02, 04, 06, 08, 12 anos, ou por vezes pelo resto da vida, não consegue se defender do pai abusador. Exigi-lo é crueldade. A Justiça demorará anos e anos para concluir um processo, quase sempre como inconclusivo. O abusador goza de todos os direitos, nunca é condenado por este crime. Facilmente, confirma-se, institucionalmente, a inversão de papéis da cena do abuso, e a criança, que revela, é acusada de mentir. Hoje, arrumaram mais um artifício técnico, a construção cognitiva, para desviar o olhar da palavra da criança, já considerada juridicamente sujeito de direito. Nenhuma criança pequena formula uma construção cognitiva de conteúdo sexual se não tiver tido contato concreto com a sexualidade de um adulto. Este conceito teórico está sendo usado, ou melhor, mal usado em laudos para embasar a precariedade de competência na revelação do abuso sexual junto a crianças. Impressionando leigos no assunto, induz a decisões jurídicas equivocadas.
          Continua a ser pedida a prova de um crime que não deixa vestígio, crime quase perfeito, praticado por alguém que está sempre acima de qualquer suspeita. É palavra da criança abusada, aterrorizada pelas ameaças feitas, frente à palavra do abusador, psicopata manipulador portador de perversão. Operadores de Justiça continuam a se equivocar praticando a revitimização sob a alegação de que é bom para a criança ter convívio com o pai, neste caso exatamente aquele que rompeu o marco civilizatório da interdição ao incesto. Ingênuo pensar que um pai/abusador deterá sua compulsão sexual perversa porque está no regime de visita supervisionada, ele conseguirá um segundo, um subterfúgio, um momento de descuido por ele provocado, e fará parte do abuso, ali mesmo. Psicopata não teme a lei, se temesse não seria psicopata, isto está na essência desta patologia, seu esporte favorito é desafiá-la cada vez mais, para ter cada vez maior a sensação secreta da onipotência. Mas as pessoas que devem proteger não conseguem imaginar tamanha ousadia. Colocar esta criança que sofreu várias vezes a tortura sexual do prazer exposta a quem o fez, aquele que tem o título civil de pai, é destruir oficialmente qualquer possibilidade de reconstrução afetiva da figura masculina, figura representante da lei no desenvolvimento psicológico saudável e, consequente, saúde social. No entanto, o que se vê é que na dúvida, sacrifica-se a criança, acreditando-se que ela já sabe se defender, ela vai dizer não para o pai. É tão simples... Será mesmo? Ser abusado é para sempre, uma tatuagem na alma, ser revitimizado institucionalmente é matar de imediato a cidadania.    
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Criança e Adolescente. 
artigo publicado pelo site www.avozdocidadao.com.br 

ABUSO SEXUAL: A TORTURA QUE SE REPETE

                                                                                                                   Agosto de 2013.
ABUSO SEXUAL: A TORTURA QUE SE REPETE

          Venho me dedicando a este tema, por força de várias circunstâncias. Quanto mais avanço, mais me horrorizo. Mas, não tem mais volta. Macaquinho não vê, macaquinho não ouve, macaquinho não fala, o desvio do olhar, são atitudes de negligência por omissão. No entanto, são as posturas de conivência e as de promoção oficial de abuso sexual que me chocam!
          Recentemente, fui ao Congresso Internacional de Psicanálise, em Praga, promovido pela International Psychoanalytical Association. Abuso sexual contra crianças, violência sexual contra mulheres, nenhuma conferência, nenhuma apresentação clínica, nenhuma referência. Voltava no final de tarde muito quente com a pergunta: por que esta lacuna científica se o tema do Congresso era a dor psíquica? Será que só existem estas coisas na minha cabeça? Apenas no meu consultório e na minha experiência na O.N.G. de proteção à criança e adolescente que trabalhei por muitos anos, há este tipo de sofrimento? E logo me vieram os últimos casos, agora já são os penúltimos ou antepenúltimos casos de estupros múltiplos de mulheres, seguido de morte, em via pública, publicados pela mídia, seguidos de grandes manifestações de revolta e indignação da população não só feminina. Tive dúvida, tinha acabado de ouvir uma psicanalista indiana em grande exposição com um renomado mestre, discussão que cabia claramente, pelo menos a dúvida sobre um abuso sexual incestuoso. Nada havia sido dito.
          No hotel, a televisão ligada à procura de noticiário em língua que pudesse compreender e me tirasse daquele mal estar difuso, me deparo com uma campanha sobre abuso sexual. Havia um homem, seu rosto maduro, o tempo mostrando suas marcas. O olhar era de uma pessoa boa, serena, agradável, “normal”. Alguma coisa ia sendo dita, em tcheco, e algo diferente aparecia neste olhar. Um tom desejoso, sedutor, compulsivo talvez, mas tudo era muito sutil. As palavras iam sendo ditas e o perfil do tronco de uma garotinha, vestindo azul claro, cintura que subia para alojar uma barriga de uns oito meses de gravidez, o braço que caía ao longo do corpinho ainda infantil, terminava no ursinho de pelúcia pendurado na mão. Voltava então à imagem do homem com a mesma cara boa do início, e algo era falado. Terminava. A barriga e o ursinho. Imagem inesquecível.
          O contraste entre a negação de existência e a obviedade da existência desta perversão humana invadiu a minha mente. O que ficou foram perguntas. Por que a Psicanálise e seus seguidores não olham para esta perversão, não estudam esta perversão, não tratam clinicamente esta perversão. Responderiam logo, perversão não tem jeito. Mas, os prejuízos dela numa criança, tem sim. Há que ser re-organizado seu sistema de afeto, de confiança no outro, trabalhado seu legítimo ressentimento da vida em longo tratamento psicológico. Por que não existem políticas públicas que atendam à legião de marcados pelo abuso sexual? Responderiam também logo, não temos assistência eficaz nem para emergências, cirurgias, enfartes, doenças mentais, adicção, doenças infecto-contagiosas, etc., etc., etc..
          Em novembro passado fui chamada para uma audiência individual com uma Ministra que me pediu para elaborar um projeto de atendimento psicológico a crianças abusadas que pudesse ser aplicado em todo o nosso território. Uma alegria que mal conseguia conter, diminuir a dor psíquica destes 25, 30, ou 40% de crianças que sofrem abuso sexual. Não se sabe, o segredo obtido junto à criança, pelo medo das ameaças feitas, não permite uma melhor apreensão do tamanho do grupo atingido. Voltei em fevereiro em outra audiência, e lá deixei o projeto piloto, que, se iniciando em três capitais, se multiplicaria na capilaridade do sistema já implantado. Março, abril, maio, junho, julho, agosto.
          Em outubro próximo estou lançando um livro, “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”, e tanto mais já tenho a dizer. A todo momento, me deparo com o que mais me assusta: a incompetência de profissionais que detém o poder de decisão sobre a vida das crianças abusadas. Já se conseguiu uma maior consciência de que abuso sexual é errado, de que a criança não esquece, de que guardar segredo não apaga o mal. Já foi conquistado o conceito jurídico de que a criança é sujeito de direito, com voz. Já há um estado que possui sala de D.S.D., Depoimento Sem Dano, em todas as Comarcas, respeitando a necessidade de proteção e cuidado da criança abusada. O curioso é que foi um Juiz, M.M. Dr. Daltoé, e uma Desembargadora, M.M. Dra. Maria Berenice, que patrocinaram e garantiram a instalação destas salas. Nosso maior agradecimento. Eles entenderam o deplorável estado traumático da criança. A ausência dos profissionais que se ocupam do cuidado psicológico nesta luta é compatível com a fragilidade de profissionais da Psicologia Judicial que nutrem equívocos danosos. Há excelentes Conselheiros Tutelares, excelentes profissionais na área da revelação, avaliação, e perícia psicológica. Há excelentes Promotores e Juízes. Mas há uma deficiência de formação de competência, de gabarito para que haja uma compreensão de questão tão delicada. Entre estes fracos profissionais, o medo de errar justifica que a criança pode ser sacrificada no caso de dúvida. O conceito psicológico de pai tem sido entendido apenas em único sentido, é importante o pai para o desenvolvimento da criança. Sim, claro. Mas o pai que abusa sexualmente de um filho ou uma filha, está rasgando seu título e sua função que nunca tinha sido exercida. O fator biológico isolado como determinante, caducou. Em tempo em que o pai é mais do que nunca uma suposição que pode estar num laboratório, ou, em que há registro de criança onde constam dois pais, casal homoafetivo, ouve-se o argumento machista e ultrapassado de que pai é pai e tem garantido seus direitos.
          Para as mães que, exercendo seu dever de proteção, denunciam um abuso praticado, há o terror da punição por alienação parental, e conseqüente perda da guarda da criança. Os laudos psicológicos são confeccionados por peritas de confiança de Juízes, que desprezam os laudos de profissionais de notório saber, alegando que estes laudos são pagos pela parte. Mas as Peritas Judiciais não recebem pagamento pelo trabalho realizado? Os Juízes também recebem seus salários, então, por que a insinuação de que os profissionais assistentes técnicos estão vendendo pareceres corrompidos? A dignidade e a respeitabilidade profissionais são conquistadas pela seriedade de cada trabalho realizado. Cada um.
          A impunidade reina porque não são usados os métodos corretos e reveladores quando se pesquisa uma suspeita. O ranço da prova do crime, que neste campo não se aplica, é substituído por certezas preconceituosas e infundadas, ditas em ambigüidades inconclusivas. Difícil de entender, sei. O abuso sexual é um crime quase perfeito. O abusador como psicopata não deixa rastro, como excelente manipulador, é só a palavra da criança contra a dele, que em geral é alguém acima de qualquer suspeita e, detalhe, devotado pai daquele que ele abusa. Claro, é seu objeto sexual. Os abusadores gozam de privilégios, enquanto as mães cuidadoras que denunciam gozam de ameaças e engessamentos. Tudo se torna prova de alienação parental. Lamentável, pois este artigo da lei é de imensa importância para a proteção de outras crianças. Blindados pela própria justiça, os abusadores seguem protegidos, se divertindo com a mumificação daquelas que tentam proteger a criança abusada. Neste caldeirão, é muito freqüente que ainda pratique o Backlash, movimento internacional já estudado há mais de 15 anos, processo junto aos Conselhos Profissionais contra os técnicos especializados que ousaram relatar a revelação de abuso feita pela criança. Cada vez mais este número é maior, em relação direta com o decréscimo dos técnicos, psicólogos, psicanalistas e pediatras, que aceitam trabalhar com a Assistência Técnica, por medo dos processos, abandonando a criança. São muitos profissionais que estão respondendo processos por terem escrito o que lhe foi comunicado pela criança vitimada.
          É estarrecedor ver um abusador de um filho pequeno ser inocentado, apesar de seu relato repetido dos abusos cotidianos sofridos, porque quem sentencia justifica sua convicção por ouvir seu coração e olhar bem nos olhos e nos gestos, e, assim, ter a certeza que a criança estava mentindo. Desconsiderando os conhecimentos do especialista, escolhe a psicologia do senso comum, aquela que não está escrita em lugar nenhum, cheia de certezas. Ingênuo pensar que um psicopata escreveria na testa ou deixaria algum indício à mostra de que é psicopata. Este é um diagnóstico muitas vezes difícil até para os especialistas. As perversões são mantidas a sete chaves. Alguém conhece um necrófilo? Certamente conhece, mas não sabe que ele o é. Existem muitos. Assim também com os pedófilos.
          O que acontece é que no lugar de uma sala de D.S.D. encontra-se uma psicóloga judicial que obriga uma criança pequena a uma acareação com o pai abusador. Desconsiderar a tradicional ameaça verbal feita pelo abusador a sua vítima, se você falar para alguém eu mato a sua mãe, presente em 10 de cada 10 casos de abuso, é se atribuir um poder divino de que a criança se sentirá completamente segura para repetir a denúncia ali diante do pai e de uma pessoa desconhecida, a perita, realizando o milagre da garantia de que o pai não vai matar a mãe, terminando instantaneamente com o terror já implantado na mente do pequeno sexualmente torturado. Basta um olhar, apenas um lance de olhar, e o abusador reinstala o medo na mente da criança e restabelece a dominação sobre ela, porque é reativada a onipotência que ele implantou pelas ameaças feitas e pela opressão sofrida. Obrigar uma criança a falar o que aquele pai ali na sala fazia em seu corpo, e não satisfeita com a resposta, pressionar para que a criança mostre ao vivo como era o abuso, é uma verdadeira aberração técnica e uma crueldade humana. Desconhecer os instrumentos específicos e o procedimento adequado para a revelação do abuso sexual, substituindo esta especificidade pelo padrão adultiforme do inquérito no imperativo verbal, prática da indução intencional, na frente de seu agressor, fere os direitos básicos da criança. A tortura tem várias faces. Exigir a encenação do abuso é cometer crime de abuso, acrescido de exibicionismo e voyeurismo, tudo sob os auspícios da Justiça. A pornografia infantil na internet, por exemplo, é voyeurismo, e é crime. A violação da mente da criança por um profissional que deveria avaliar é a revitimização chancelada por procedimentos ditos técnicos, mas tão perversos quanto o próprio abuso. E, o laudo que decorre desta perversão, irá decidir o processo. O que define um Perito designado é o cargo de confiança, e não a competência. Mas, quais seriam os critérios desta confiança?
          As histórias de abuso sexual são muito bizarras. A perversão é o país que dá nacionalidade às bizarrices e aberrações humanas. Muitas vezes quando uma criança revela um abuso ela nos apresenta um adulto que, até aquele momento, gozava de respeitabilidade, e que, com a revelação, de repente surgem os comportamentos ocultos de “non sense”, absurdos, as manias estranhas. O primeiro movimento é de buscar um mecanismo de defesa pelo horror que invade a mente, abandonando a criança e jogando-a de volta à tortura do prazer daquele adulto pervertido. Assim, não raro, alguém que é escolhido para ouvir uma revelação deste tipo de perversão contra a criança, joga de imediato a autoria para a imaginação infantil. É a saída mais rápida para se livrar da angústia insuportável da dor psíquica de uma criança. Mas é o psicanalista especializado, gabaritado neste tema, que pode investigar a veracidade e a repercussão do que está sendo revelado. O preconceito da mentira da criança só evidencia a ignorância do conhecimento dos estudos que apontam para um índice de 6% de mentira após os 10 anos, com o claro objetivo de ganho secundário. Até os 7 anos uma criança não inventa uma mentira com conteúdo sexual por não ter ainda desenvolvimento cognitivo suficiente para tal. Só fala de erotismo quando teve contato direto, vendo, ouvindo e quando teve o seus genitais tocados por alguém com 5 anos ou mais que sua idade, ou quando tocou partes erógenas do corpo de um adulto que a dirige, como um cineasta. A criança não tem capacidade de fantasiar sem estes estímulos. É só ler nos livros que tratam disto.  
          A cultura da transgressão é endêmica. E, quanto mais transgressora uma sociedade, mais abusados são os seus vulneráveis. Mas é devastador conviver com a prática da transgressão institucionalizada. Esta é perversa. Pais/abusadores rasgam seu título formal, para buscar através de nova perversão, a falsa alegação de alienação parental, e como exímios psicopatas que são, arrastam Operadores de Justiça que, por sua vez, rasgam o E.C.A., garantindo proteção ao abusador. As políticas públicas inexistem, não ultrapassam uma única propaganda na televisão por alguns dias que surge a cada seis ou oito meses, talvez mais, o que está muito longe de atingir um objetivo de cultura de cuidado com a saúde de nossos pequenos. A cidadania só será alcançada quando todos tiverem o compromisso vivo de cuidado e responsabilidade com a criança. Quando tivermos todos e cada um, responsabilidade empática. Este compromisso internalizado fará com que a criança possa repeti-lo sucessivamente, construindo uma cadeia saudável psiquicamente. Esta é a sustentabilidade psicológica. O que temos hoje é a repetição da perversão internalizada. Abusado hoje, abusador de algum tipo, amanhã.    
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Criança e Adolescente.

Artigo publicado pelo site A Voz do Cidadão. Agosto de 2013. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

CUIDADO, RESPONSABILIDADE E ALIENAÇÃO PARENTAL: BENEFÍCIOS E PREJUÍZOS

CUIDADO, RESPONSABILIDADE E ALIENAÇÃO PARENTAL: BENEFÍCIOS E PREJUÍZOS.

 INTERFACES COM O DESENVOLVIMENTO SAUDÁVEL E COM A PATOLOGIA.

                                                                                                          Ana Maria Iencarelli*

          A Alienação Parental, Lei 12.318/10, nos oferece uma possibilidade de, legislando, proteger a relação afetiva, o subjetivo e o intersubjetivo entre pais e filhos. Este é um avanço muito importante, posto que, até o momento só tínhamos as possibilidades pecuniárias para garantir aos filhos, juridicamente, os laços diversos que os unem. No entanto, por ser este terreno bastante escorregadio e pouco passível de provas, até então, a base das justificativas judiciais, temos observado que muito ainda há que se compreender e expandir conceitualmente.
          É muito freqüente que, com a dissolução do casamento, apareçam os ressentimentos, as disputas, as inseguranças afetivas em relação aos filhos. Afinal, é o momento em que duas pessoas adultas se dão conta que, lamentavelmente, não conseguiram continuar a construção de um projeto que, juntas, haviam feito. Evidentemente que, mesmo quando há consenso em relação a este término, o que não é tão freqüente quanto parece, o momento é de perda. As queixas recíprocas abrem espaço para uma espécie de “caça ao culpado”. Os filhos, ameaçados, consciente ou inconscientemente, vivem o fantasma do desamparo, do desamor. Apesar de ocupados com as muitas questões deste momento, os pais também vivem, mais secretamente, este mesmo fantasma de abandono e desamparo. Nesta dinâmica, todos dentro da família procuram fazer alianças aos pares, como que tentando refazer “um par”, com as várias possibilidades combinatórias, como que para reabilitar o par de pais que está se desfazendo. Por vezes, é possível, facilmente, observar toda esta desorganização e todas as tentativas de reorganização que se sucedem neste período. Por vezes, esta observação é muito difícil de ser feita porque as relações, por razões inconscientes, se modificam, adquirem disfarces, dissimulações e distorções.  Pais e filhos, isolando-se uns dos outros, mergulham num emaranhado que conduz a várias separações.
          Este estado de emoções e afetos em ebulição, frequentemente, facilita o aparecimento de manifestações verbais, atitudes, e, até expressões faciais silenciosas, ou, menos ainda, apenas um olhar crítico, que desaprovam, desqualificam, ou denigrem o outro. Mas, não é somente a separação do casal provoca este estado de retaliação afetiva.
          Também no momento do aparecimento do primeiro filho, é freqüente que, aquela avó que ainda não atualizou seu papel familiar com o surgimento da nova família do filho/a, e, portanto, às voltas com a questão da maternidade da filha ou nora, também se comportará desaprovando, desqualificando, atacando sutil ou explicitamente as escolhas dos cuidados do novo bebê. Esta modalidade de Alienação Parental não será nunca contemplada pela lei. Intra-familiar, a desqualificação que toma o lugar do esperado apoio, sutil ou explícita, praticada pela avó materna ou paterna, no início do complexo processo de maternagem, expressão da rivalidade feminina, atinge em cheio a auto-estima da recém-mãe, provocando insegurança e interferindo na relação mãe-bebê. Nociva, quase sempre ela é duradoura, por vezes permanente, posto que ela tem razões inconscientes dentro da constelação e dos papéis familiares, e se refere à busca narcísica de pequeno poder. Assim sendo, seus danos na mente da criança, e na dinâmica familiar também são duradouros.
          Como em toda área do comportamento humano, os desvios psicopatológicos patrocinam atuações perversas que atingem, fatalmente, os filhos. E, quanto menor a criança, maior o dano. Isto porque a mente em desenvolvimento não consegue avaliar corretamente a complexa situação emocional. Assim, vejamos, sucintamente, como acontece o desenvolvimento da mente de uma criança.
          0s quatro vetores do desenvolvimento, a psicomotricidade, a cognição, a linguagem e a afetividade, vetor, aliás, que participa de todos estes aspectos, promovendo ou obstruindo as aquisições das áreas específicas, eles, acontecem simultaneamente. O ser humano nasce muito inacabado, imaturo neurologicamente, incapaz na motricidade, muito pobre na comunicação, com tamanha insuficiência de autonomia que coloca sua sobrevivência na dependência de um adulto especial que cuide dele. Entre os mamíferos superiores herbívoros, um recém-nascido deve se por de pé e procurar seu alimento nos primeiros 20 minutos de vida. Entre nós humanos, este tempo se estende para 12 meses, em média, para se por de pé, e alguns anos para ter auto-suficiência quanto a sua própria alimentação. Sem este cuidado afetivo e responsável, que excede as operações de proporcionar alimento, sono e higiene, um bebê tem comprometido seu desenvolvimento, e até sua sobrevivência. Entenda-se aqui sua sobrevivência também psíquica, pois a necessidade não é apenas do nutriente, mas também do afeto. Experiência com bebê chipanzé, realizada por Harlow, demonstrou que o aconchego de um colo macio tornou-se, para alguns, mais importante que o alimento obtido numa armação de arame, contrariando, assim, o instinto de preservação, e levando-os à morte por inanição, quando alguns desses bebês órfãos preferiam permanecer no colo macio e aconchegante de uma “mãe” e preteriam o leite que estava instalado numa armação de arame. Bowlby trouxe esta experiência com bebês chjpanzés para ilustrar sua teoria sobre a necessidade humana de apego. Também o estudo de Spitz, nos trouxe esta mesma importância ao constatar que crianças que eram abandonadas por suas mães, mesmo bem alimentadas e higienizadas numa enfermaria do hospital em que era pediatra, apresentavam o quadro que conceituou como Hospitalismo, com perda inexplicável do ponto de vista da organicidade, das aquisições motoras e de linguagem já conquistadas, alheamento, caquexia, chegando, algumas delas também à morte. O autor interferiu neste quadro patológico quando, evitando o rodízio de pessoal, estabeleceu uma enfermeira específica para exercer esta função materna, ou seja, para se tornar a pessoa especial para a criança acometida de hospitalismo, que assim voltavam à vida relacional, e passaram a sobreviver ao abandono materno. A linguagem vai depender tanto do aparelho fonador quanto do ambiente linguístico, sua estimulação afetiva, e sua riqueza. Por outro lado, a inteligência, por um acaso determinista, nasce nos movimentos motores espasmódicos, ainda involuntários, que esbarram num chocalho, por exemplo, provocando ruído, sensação cutânea, sensação de descarga motora. Por tentativa de ensaio e erro, o bebê terminará por acertar novamente o chocalho. Quando aparece a intencionalidade, o provocar no mundo um estímulo para si mesmo, dizemos que nasce a inteligência. Da busca de interação com a mãe, inicialmente, do aparecimento do sorriso, a primeira resposta social, dos jogos simbólicos simples e das imagens mentais à aquisição da função semiótica, a representação, do pensamento concreto ao pensamento abstrato, a direção é o pensamento lógico através do método hipotético-dedutivo. O processo de desenvolvimento de uma criança segue etapas sucessivas e simultâneas, onde, com um certo equilíbrio, tudo, e todos os aspectos tem sua importância.
          A organização da mente se dará, portanto, por processo contínuo, cabendo, no entanto à mãe e ao pai a função de filtro do mundo. É indispensável que a criança não seja exposta a excessivos estímulos, tanto do ponto de vista quantitativo quanto do ponto de vista qualitativo. Filtrar os estímulos externos, compatibilizando-os com as capacidades da criança, permite que ela se ocupe com seus estímulos internos, e se desenvolva de maneira harmônica. Esta é uma responsabilidade dos pais. A mente de uma criança pode ser entendida com o conceito de “eco-sistema” com sua cadeia alimentar e a indispensável sustentabilidade deste sistema. Como na natureza, os excessos e as perdas, as extinções mesmo as referentes a coisas, aparentemente, pequenas, podem ter grandes e nefastas conseqüências, por vezes, irrecuperáveis a contento. A formação da personalidade, conjunto que compõe o perfil psicológico, é um longo processo que se inicia ainda na fase de dependência absoluta dos primeiros meses. Buscamos todo tempo uma adaptação com a pertinência a um grupo, sendo o mais igual possível, e uma customização desta adaptação, querendo alcançar a certeza do único, do diferente dos outros. Este conflito nos acompanha desde sempre. O comportamento da imitação que se inicia com o aparecimento do primeiro sorriso aos 02/03 meses, caminha pelo jogo de esconder o rosto, do copiar os gestos, caminhar pela casa com os sapatos grandes do pai (menino), ou da mãe (menina), as palavras, as atitudes, para na adolescência negar, contestar e rasgar estes modelos, pai e mãe, para, finalmente, forjar um conjunto próprio, que, claro, tem vários destes elementos, e continuará evoluindo, mudando quando se torna pai ou mãe, e prossegue evoluindo pelas diversas fases da vida. Mas sempre entre o ser igual e o ser diferente.
          Se este desenvolvimento é mais evidente nos primeiros quatro anos de vida, não quer dizer que ele perca importância nos anos seguintes. Durante toda a infância estes quatro vetores continuam a evoluir para promover a organização e o bom funcionamento do pensamento, que completa seu vetor cognitivo na adolescência por volta dos 15/16 anos, quando o desenvolvimento é saudável. Na precariedade ou ausência de condições básicas de estimulação, de filtragem, e de segurança afetiva, este desenvolvimento não se completa, deixando lacunas, deficiências ou até obstruções e deformações.
         Considerando, pois, este desenvolvimento, faz-se necessário pensar o dano causado à mente de uma criança pela prática da Alienação Parental. Pequena, ainda com poucos recursos mentais em serviço de uma boa compreensão dos ressentimentos daquele adulto queixoso, na idade edipiana com sua respectiva distorção emocional pelo desejo de conquista, na idade pós-edipiana em que abre mão desta conquista impossível para investir na identificação com o genitor de mesmo gênero, na adolescência juntando-se à crise de rebeldia e identidade, a Alienação Parental é a evidência do egoísmo do descuido e da irresponsabilidade daquele que a pratica. Nos vários momentos do desenvolvimento, a Alienação Parental, em suas diversas formas, causa danos à mente da criança e do adolescente.
          Gostaríamos de chamar a atenção para outra modalidade, muito preocupante, que tem sido o uso da falsa alegação de prática de Alienação Parental, acusação feita contra mães de crianças pequenas, por parte de pais abusadores físicos e sexuais. Ao longo de nossa prática profissional de quase quatro décadas, temos constatado que pais que, efetivamente, sofrem estas agressões de alienação através dos filhos, entendem, amorosamente, que já é muito difícil para uma criança, ou mesmo um adolescente, ouvir “ditas verdades” proferidas pelo outro genitor, pressões e manipulações, e preferem, não por fraqueza, mas por cuidado, não sobrecarregar ainda mais aquela criança, lidando com calma com a situação. Forma-se com o tempo, uma espécie de cumplicidade silenciosa, mas consistente, entre pai alienado e filho. Apenas quando o limite de tolerância e a compreensão das dificuldades psicológicas do ex-cônjuge, ou até de sintomas psicopatológicos, são vencidos, visto que o/a genitor/a que pratica a tática da alienação não tem cuidado com o filho/a, e segue praticando, aquele que é alienado recorre à possibilidade de argumentar com a lei. É, relativamente, fácil ver a correlação entre alguém cuidadoso com o filho e sua maior tolerância a acusações advindas de frustração, imaturidade, ou de alguma patologia psicológica. Mas, o que se observa agora é que a sistemática alegação falsificada de alienação é peça primeira em processos de separação que inclui suspeita ou confirmação de abusos físicos e sexuais. Uma vez alegada a alienação, este genitor, ora no lugar de vítima, consegue mobilizar a Justiça a seu favor, e engessar, completamente, a mãe. De difícil comprovação, esta alegação traz em seu bojo a subjetividade, e a ausência de possibilidade de comprovação. Os perversos são exímios conhecedores das manipulações, das falsificações, das seduções, das auto-vitimizações, enfim do uso abusivo do mecanismo de defesa da identificação projetiva, - acusa o outro do que ele faz -, tudo para, confundindo o outro, buscar a proteção que acaba por ser retirada da criança. Garantem assim seu esconderijo de perversão, sob a proteção da justiça. Para manter a negação do fato, exigem as visitas supervisionadas, apelam para “direitos” conceituais distantes do que praticam, intimidam técnicos judiciários e assistentes, e se mantêm, em verdadeiro gozo, abusando do filho/a sob os auspícios do judiciário. Já incorporamos o conceito de pai, que saiu do segundo e terceiro plano, para estar presente com sua importância no desenvolvimento e na formação de uma criança e adolescente. No entanto, o pai que abusou física ou sexualmente de um/a filho/a, destruiu sua função, não seu papel. A restauração desta função dependerá do tempo da criança ou adolescente, nunca do adulto. Portanto, apenas a vítima deve nos orientar sobre a possível convivência a partir daí. As visitas supervisionadas são contra-indicadas nestes casos. A criança que foi abusada não confia mais nos adultos, ela foi abusada dentro de casa onde, em princípio existem adultos que cuidam dela. Como pensar que ela se sentiria bem no mesmo espaço físico que seu abusador, só porque há também no mesmo espaço uma pessoa conhecida sua ou não. Esta foi a situação vivida durante todos os episódios de abuso, quando havia sempre adultos na mesma casa, que não a protegeram, que nada viram. Isto promove uma quebra na cadeia do desenvolvimento porque isto não é sustentável psiquicamente. Como exercício, é só pensar na reação de um adulto que, obrigado, se viu na mesma sala judicial com seu cruel seqüestrador.
          Sob esta garantia, da falsa alegação de Alienação Parental, e da sua manipulação, crianças já foram espancadas até a morte, crianças continuam a ser abusadas até a morte psíquica.  Há que se entender que um pai ou uma mãe que pratica atos de violência física ou sexual contra seu filho criança, como já dissemos, está rasgando seu papel de pai ou de mãe, que deve ter este espaço preservado para que um bom substituto possa exercê-lo, restaurando os prejuízos causados à mente daquela criança. E, ser colocado no mesmo ambiente que aquele pai ou aquela mãe, mesmo que na presença de outra pessoa, é obrigar aquela criança à re-vitimização. É preciso que haja um tempo para ela se restaurar dos estragos sofridos, inclusive do estrago da perda da confiança nos adultos. A Agência Nacional de Direitos da Infância, ANDI, formatou um protocolo básico a ser seguido pela imprensa para abordar crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, que vai além da proteção da identidade. Por que achamos que a presença de um registro de Psicologia seria o suficiente para colocar uma criança diante do seu agressor?
          Há laudos de todos os tipos, onde tudo é inconclusivo e evasivo, ou onde encontramos afirmações baseadas em mitos infundados ou vícios patriarcais, em defesa do adulto abusador, repletas de parcialidade. A inexistência de um protocolo a seguir, o despreparo de peritos, a superficialidade e inconsistência dos laudos, deixam os Operadores de Justiça a descoberto. Enquanto isto, os técnicos que transmitem os indícios de abuso, são sistematicamente, processados, deixando claro este movimento de intimidação. Na vizinha Argentina, esta campanha que visa o engessamento também dos técnicos, já notificada em vários países, está denunciada pela psicanalista Bettina Calvi. Aqui entre nós, isto já é uma evidência para quem quer ver.
          Mães engessadas pela falsa acusação de Alienação Parental, impedidas de exercer sua função protetora de filtro do mundo que chega à criança, terapeutas e assistentes técnicos processados, obrigatoriedade de cumprir visitas supervisionadas, assistimos  crianças, que se sentem subjugadas à perversão de todos estes adultos, desprotegidas e abandonadas por aqueles que ela  ama. E, descrentes e impotentes, perdem a esperança de alívio da angústia permanente pela violência sofrida. Falar, gritar chorar e até vomitar, é sempre interpretado como a confirmação da Alienação praticada pela mãe, como é a alegação paralizante. Nunca é visto como os efeitos do sofrimento pelo abuso perpetuado em visitas obrigadas. Nada adianta, a criança desiste, morre para os outros, e entra no risco maior de se identificar com o agressor e imitar seu comportamento, repetindo assim o abuso.
          Na nossa era de modernidade líquida, como conceituou Bauman, as relações escorrem sem consistência e o compromisso é o narcísico, a recomendação diária aos filhos é não se envolver com o problema do outro, - o incentivo ao bullying. Submersos na cultura da transgressão e da impunidade, são os perversos que se beneficiam, deixando obstruídos e destruídos o cuidado e a responsabilidade com a criança. Acrescentando à coletânea tão bem organizada por Maria Berenice Dias, diríamos que a falsa acusação de Alienação Parental é hoje uma desastrosa realidade que a Justiça não quer ver. Que, apesar de difícil detecção, não é impossível de ser constatada.
          Um filhote nos desperta o enternecimento, o desejo de acarinhar e aconchegar no colo. Mas, para algumas mentes menos saudáveis, para mentes perversas, um filhote ou um bebê, pela sua vulnerabilidade, desperta o desejo do prazer do poder absoluto, secreto e, absolutamente narcísico, excitante por esta sua essência, e pode colocar em marcha esta possibilidade. E, por incrível que pareça, é exatamente, a fragilidade, a fraqueza do outro, que provocam os piores impulsos de violência e crueldade. Como nos ilustrou Débora Duarte em sua poesia, o fraco desperta o poder de matar.  

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 BIBLIOGRAFIA

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  • Resumo do Curriculum Vitae:
·         ANA MARIA BRAYNER IENCARELLI, graduada em Psicologia pela Faculdade de Filosofia do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, julho de 1973, pós-graduada pelo Institut de Psychologie de Paris V, Sorbonne, Diplôme d’Études Superieures Spécialisées, D.E.S.S., setembro de 1978.
·         Psicanalista pela Internatinal Psychoanalytical Association, I.P.A. 1990, especializada em crianças e adolescentes.

·         Presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Proteção à Infância e à Adolescência, ABRAPIA, gestões 2001/2004 e 2004/2007.

IMAGINA NA COPA

IMAGINA NA COPA

          Jargão, quase piada, tem lista longa. Usado por alguns, vistos como pessimistas. Outros o utilizam como abertura para crítica ou queixa atual de um serviço público, finalizado pelo “imagina na copa”. Segundo o Fórum Nacional de Prevenção o Trabalho Infantil, temos 3.7 milhões de crianças e adolescentes em situação de exploração de sua força de trabalho. Índice considerado como uma melhora. Deste montante, nada desprezível, mais de 90% é de meninas. E quantas, dentre este número, são exploradas por trabalho sexual? Alguém poderia responder isto? Acredito que, ninguém conseguiria. Está embaixo do tapete, também, como tantos índices referentes à criança. Senão, vejamos.
          Temos 04 grandes eventos a serem realizados em tempo próximo, somando, por coincidência, um número previsto de 3.6 milhões de turistas. São 03 megaeventos esportivos, dos quais dois de futebol, e um megaevento religioso. Também incluído aqui nesta questão. Para além do problema das vagas de hotel e acomodação, língua, placas, pergunto: prestou-se atenção no perfil da população de turistas que amam o futebol? E o perfil de parte dos religiosos?
          Os investimentos, bilionários. Os públicos e os privados recheados de incentivos. Estádios, hotéis, centrais de controle de segurança, helicópteros de guerra urbana, embelezamentos muitos. A mídia noticia os treinamentos especializados. As aulas de inglês estão por todo lado. De boas maneiras. Da segurança de grandes concentrações com a preocupação em ações terroristas à discrição dos funcionários dos hotéis para não incomodar as celebridades. O lixo tornou-se objeto de planejamento, com direito à multa para quem não obedecer e jogá-lo no chão.
          Mas, imagina na Copa, sim. E a primeira já chegou. Imagina se os pedófilos exploradores e os pedófilos consumidores vão ficar só vendo a bola rolar. Imagina se este comércio também milionário patrocinado pela miséria psicológica da vulnerabilidade de uma menina ou um menino, irá deixar passar uma oportunidade dessas. De um lado, homens sem suas famílias, bebendo e se divertindo. Do outro, uma legião, ninguém sabe quantos por falta de estudo e trabalho, de vulneráveis submersos em várias misérias, vivendo as frustrações de uma sociedade consumista.
          Terrorismo é oferecer a negligência, diria mesmo a conivência com a prostituição infantil já anunciada para quem quer ver. Podemos também desviar o olhar. Lixo é como estas meninas vão se sentir pelo resto da vida, lixo social. Com precária condição sócio-econômica a menina e o menino que já vivem de bolsa, vão viver de bolsinha. Para as meninas, um investimento suplementar será necessário nove meses depois de cada evento destes, para cada uma que passar a ser mãe adolescente de um filho sem pai. Mas ela fará parte do tão falado legado deixado. Um pós-guerra pós-moderno.
           Nenhuma campanha de prevenção e proteção de crianças e adolescentes contra a exploração sexual infanto-juvenil, como tinha sido prometido. Uma conferência para turistólogos ficou em fevereiro. Falava de um compromisso oficial. Confirma-se isto quando uma doutoranda de Administração Pública, com foco na eficiência de “Instrumentos Públicos”, brasileira estudando no Canadá, que vem buscar estas informações para sua tese, percorre pessoalmente SETUR, RIOTUR, SEBRAE, BITO, e C&V Bureau, este por telefone, e nada, nada encontrou sobre alguma campanha de “Turismo Sustentável e Infância”, nenhuma atitude política ou social. Ela nos contatou, trazendo na bagagem de sua pesquisa de campo este vazio da ação pública. Em branco. Há alguns anos, uns oito ou dez, houve uma campanha especial da EMBRATUR voltada para o combate do turismo sexual infantil. À época, em agências de viagem em países da Europa, havia cartazes que ofereciam pacote turístico para o Brasil com o bônus de uma virgem menina. Participamos deste trabalho.
          Perdemos mais uma vez uma oportunidade de exercer nossa cidadania. Perdemos mais alguns milhares de crianças e adolescentes para a pedofilia. Perdemos mais algumas décadas para a conivência com a transgressão e a perversão. Porque ela não termina quando acaba o último megaevento, ela é do legado. Será que seria muito difícil incluir nas aulas de inglês uma frase que mostrasse o nosso cuidado e a nossa responsabilidade com nossas crianças? Seria um começo. Imagina um pouco de verba para treinar a atenção do turistólogo receptivo sustentável. É insustentável oferecer os filhos menores para o prazer sexual de visitantes perversos. O tempo dos 90 milhões em ação já acabou. Ou deveria. Quando vemos que, novamente estamos nos enganando e desviando o olhar para cumprir o pão e futebol de cada dia, ficamos com a impressão de que não crescemos, só inchamos e dobramos de número. As crianças e adolescentes brasileiras precisam apenas de alguns, mas com compromisso, com envolvimento, com responsabilidade, com legítima vontade política.  
“don’t touch our children!”
“ne toucher pas nos enfants!”
“não toque nas nossas crianças!”
    
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Crianças e Adolescentes.

Os 18 anos do DECA no ECA: a violência doméstica sob a ótica interdisciplinar

“Os 18 anos do DECA no ECA: a violência doméstica
sob a ótica interdisciplinar”.



          O Projeto de Lei nº 2654/03, aprovado em 19 de janeiro de 2006 pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, lançou a interdição do castigo físico, e as questões relativas a sua prática estão em alta. Discussões, entrevistas, mesas redondas estão sendo promovidas pela mídia, dando amplo espaço a “achismos superficiais” que se contentam com adultos a dizer “levei palmada e estou aqui”! Ninguém ouviu uma só criança, um só adolescente sobre como se sentem quando são punidos fisicamente ou são agredidos pelos pais nos mais diferentes contextos. Talvez os adultos que estão lendo agora este texto, pensem que eles foram crianças e adolescentes e que se lembram como se sentiam. Considerando que nossa memória não é totalmente objetiva, ou seja, que nosso funcionamento mental é regido pelos princípios do prazer e da realidade, sob a administração do princípio econômico que busca o maior prazer com o menor custo psíquico adequado à realidade, veremos logo que não podemos confiar inteiramente nas nossas lembranças. Quando se faz necessário entra em ação o que chamamos de mecanismos de defesa que tem a função de proteger a mente. Submetidos aos mecanismos de defesa os fatos se distorcem, minimizamos nossas sensações e sentimentos, negamos o que aconteceu, projetamos, no outro, o que não nos agrada em nós mesmos, nos identificamos com o inimigo quando ele é muito assustador, etc., etc., etc., em busca de um arranjo suportável para determinado fato. Portanto, dando fé a nossas lembranças, não precisa nem perguntar às crianças e aos adolescentes porque eles não teriam capacidade de avaliação desta questão. Aqui reside o nascedouro do que está por trás do tema: o prazer profundo pelo poder da posse do corpo dos nossos filhos, crianças e adolescentes, no lugar da responsabilidade pelo corpo do outro, negligenciada ou mesmo inexistente. Esta distorção, posse ao invés de responsabilidade, patrocina a ação desgovernada de mentes patológicas, quando da prática de espancamentos que levam ao óbito de crianças e adolescentes, noticiário que tanto nos horroriza pelo desencaixe do mito do “amor de mãe”.  Encontramos as mães com maior fatia da estatística: 52% dos casos de violência física são praticados pela mãe, contra 24% praticados pelo pai, 8% por padrasto e madrasta e 13% por outros parentes, restando 3% por não parentes, segundo estudos estatísticos da Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência – ABRAPIA, 1999. Vale ressaltar que estes índices foram obtidos com base em denúncias acolhidas pelo Programa S.O.S.criança, portanto, se acrescentássemos as “palmadas moderadas educativas”, certamente, teríamos indicadores chegando aos 70 ou 80% de mães batendo em seus filhos. Este é um fator que evidencia esta distorção da maternidade: saiu do meu corpo, é meu.
          A violência é um componente da mente humana que a civilização e a cultura vem tentando reprimir. Muito já foi conseguido se olharmos através da nossa história.   Na Roma antiga, “o pai detem, durante toda a vida de seus filhos, o poder de jogá-los nas prisões, flagelá-los, mantê-los acorrentados para fazer trabalhos rústicos e pesados, e até de vendê-los”, Lallemand, em seu livro de 1885, “História das crianças abandonadas e largadas”, editado na França.  Encontramos no livro de J. Dehaussy,  “A Assistência Pública à Infância, as crianças abandonadas”, 1951, também editado na França, a referência a comportamentos de uso e abuso do corpo da criança: “mulheres sifilíticas que davam de mamar a bebês na crença de que assim se livravam da doença, os amantes da necrofilia que buscavam em crianças pequenas a prática de seus rituais de magia e maldades, assim como velhos que se banhavam com o sangue de crianças para rejuvenescer”. Entre nós, em 02 de março de 2006, em São Paulo, encontramos no noticiário a prisão da mãe e padrasto de um menino de 8 anos  encontrado nu com diversos hematomas e amarrado a um tronco, ao lado de uma espécie de altar de magia negra. Quantos bebês recém-nascidos afundaram em nossos rios antes de serem resgatados vivos ou mortos, pois esta é uma prática muito mais freqüente do que o que chega aos jornais. Segundo o Dr. Cid Pinheiro, coordenador do Serviço de Pediatria do Hospital e Maternidade São Luiz Unidade Morumbi e Itaim e professor assistente do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, os abusos contra crianças representam 1% dos atendimentos nos serviços de emergência médica, provocando milhares de óbitos anualmente, além de muitas seqüelas físicas e psicológicas graves. Ele acrescenta: “apanham mais as crianças que “dão trabalho”, as temperamentais, as choronas, as portadoras de doenças crônicas, as gêmeas e as nascidas prematuramente.” Estudos realizados pela ABRAPIA, publicados na Cartilha “Maus-tratos contra Crianças e Adolescentes – Proteção e Prevenção”, apontam as lesões mais freqüentes: em primeiro lugar vem a pele com escoriações, hematomas, queimaduras, em segundo lugar, o esqueleto, fratura de ossos longos, em terceiro lugar, o sistema nervoso central, com os lactentes somando 90% das lesões identificadas até 2 anos, em quarto lugar os órgãos intra-abdominais, com hematoma intramural de duodeno e ruptura de fígado e baço.  O infanticídio foi tolerado até o fim do século XVII. Poderíamos listar vários comportamentos que, ao longo da história, denunciam a posição de dominação e posse sobre os pequenos. Mas a linha predominante é a da evolução humana: já não aceitamos mais, por exemplo, nenhuma destas condutas, e nem mesmo a palmatória como instrumento da mesa da professora dos primeiros anos escolares. Mas, com toda a civilidade de 21 séculos, a humanidade ainda não adquiriu a competência suficiente para conter seu impulso destrutivo: guerra, terrorismo, corrupção, tortura, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer do exercício da opressão.
          Estarrecida, ouvi um educador falar em defesa da palmada dita “educativa” que esta lei seria uma interferência na vida familiar, “o Estado entrando em casa onde a supremacia tem que ser dos pais”. Se concordarmos com ele, estaremos legitimando o desrespeito ao corpo do outro visto como posse daquele que detém a razão: o pai/mãe que bate no filho/filha, o pai/mãe que abusa sexualmente do filho/filha, o marido que bate na mulher, ou seja, o mais forte exercendo o poder segundo sua arbitragem.  Aliás, é importante lembrar que os pais param de aplicar os castigos físicos em seus filhos quando estes crescem e deixa de ser assimétrica a relação das dimensões corporais entre eles. É preciso ter a garantia da impotência do outro para banir o insuportável medo de sua própria impotência que então cede lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência. É assim que fazem os pais com seus filhos, é assim que fazem estes filhos como autores de bullying na escola, é assim que continuam a fazer como pitboys nas festas e discotecas, e, prosseguindo na cadeia de transmissão transgeracional, é assim que passam a fazer de novo com seus filhos, numa compulsão à repetição monótona e adoecedora. No artigo “Bullying – comportamento agressivo entre estudantes”, publicado pelo Jornal de Pediatria Rio de Janeiro, 2005-81, o Dr. Aramis Lopes Neto, Coordenador do Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes – Projeto da ABRAPIA, descreve a cena composta de três elementos: o autor do bullying, designação do agressor, o alvo, a vítima da agressão, e as testemunhas, os alunos que observam ativa ou passivamente a agressão. Ele afirma que “algumas condições familiares adversas parecem favorecer o desenvolvimento da agressividade nas crianças. Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento afetivo pobre, o excesso de tolerância ou a permissividade, e, a prática de maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder dos pais.” E acrescenta: “ Alvos, autores e testemunhas enfrentam conseqüências físicas e emocionais de curto e longo prazo, as quais podem causar dificuldades acadêmicas, sociais, emocionais e legais.” Entre elas o abandono escolar e o suicídio na adolescência.
          Nestas últimas semanas assistimos a sucessão de notícias de crianças vítimas de maus-tratos físicos: Lucas tinha 2 anos,tinha queimaduras e hemorragia nasal; o bebê de Nova Iguaçu tinha o cordão umbilical  e, jogado no asfalto, foi atropelado;  a outra levou um chute e rolou uma escada; outra foi espancada pela mãe e padrasto até a morte; etc.etc.etc. Mas este foco vai passar e nos esqueceremos destas monstruosidades, como esquecemos de uma Paloma, 9 meses, que morreu de um traumatismo craniano quando deu entrada pela oitava vez em um hospital, há 4 anos atrás. Será que nós, pais instruídos e esclarecidos, que até usamos na linguagem o conceito de trauma psicológico, não fazemos parte disto aí, a nossa palmada é educativa?!
          Enquanto especialista em Saúde Mental de Criança e Adolescente, posso afirmar que bater, gritar e humilhar, causam dano permanente à mente em desenvolvimento. Sabemos todos que a violência é endêmica, portanto é preciso escutar melhor e, sobretudo, se responsabilizar, porque a violência nasce quando morre a palavra e o afeto.


          Este foi o artigo que escrevi em fevereiro de 2006, publicado com o título “Violência e Afeto” no Jornal “O Globo” de 20/02/2006.  Este Projeto de Lei, 2654/03, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, em 19/01/2006, foi engavetado, abandonado ou esquecido, pelas nossas parlamentares que o “carregavam como um bebê”, por ocasião de campanha em que iriam se candidatar em seus respectivos estados. Surge a campanha “Não bata, Eduque”, muito bem-vinda, com a mesma proposta, e logo depois, em julho de 2010, surge a alteração da Lei 8069/90, acrescida do art. 17-A, Parágrafo Único, incisos I, e II, e art. 17-B, e art. 70-A incisos I, II, III, IV, e V. Projeto de Lei assinado por Paulo de Tarso Vannuchi, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto e Márcia Helena Carvalho Lopes.
           Confesso aqui minha dificuldade em entender: festejado como inédito, é um novo trabalho, é o mesmo projeto de lei 2654/03 com algumas melhorias, é o velho vestido de novo, re-serviço?
          Depois das crianças citadas, assistimos a fila andando. Passou a morte da Isabela, da Joana, do Bernardo, a recém-nascida jogada na Lagoa da Pampulha, a outra jogada no coletor de entulhos, a internação do João Carlos, da “vaquinha” como a chamava sua mãe adotiva que marcava seu rosto com enormes hematomas resultado de socos, o espancamento letal e esquartejamento dos dois irmãos de 11 e 12 anos pelo pai e a madrasta, o espancamento brutal de dois meninos, executado pelo pai, e registrado no celular pelo irmão mais velho, o assassinato do Renan, 2 anos, pelo pai, o espancamento até a morte de Nicolas, 2 anos, pela mãe e o padrasto, e de todos os que ainda aparecerão, paulatinamente, na mídia, a fila vai andando. Vale ressaltar que alguns destes casos já tinham sido denunciados ao Conselho Tutelar, que os acompanhava. Além destas crianças sacrificadas, as crianças que ficam anônimas nas suas dores vão continuar sofrendo agressões e violência dentro de casa. Reside aqui uma questão complexa: a atualização dos conceitos de público e privado. Seria como argumentou aquele educador em 2006, e, continuo a ouvir este argumento, esta lei de interdição do castigo físico uma interferência, uma invasão aos lares e a suas leis próprias?
          Estas crianças emblemáticas nos evidenciam a característica humana: o prazer de exercer a opressão em vulnerável. E, quanto mais vulnerável, maior é a fonte de prazer para o agressor. Pais batem em seus filhos, que se tornam alunos-autores de bullying na escola, e continuam como pitboys a praticar a violência em festas, nas ruas, movidos a preconceitos, depois, como maridos, batem e humilham suas mulheres, e, repetindo a cadeia adoecedora, anos depois, aqueles filhos que foram espancados, passam a espancar seus filhos. A violência psicológica, incluindo aqui o abuso sexual, praticada contra crianças e adolescentes, não deixa marcas visíveis, mas marca a mente para sempre. Este é um ciclo que se repete, monotonamente. Espancado hoje, espancador amanhã. Abusado hoje, abusador amanhã. Humilhado hoje, promotor de humilhação amanhã.
          A Cultura da Transgressão e sua complementar Cultura da Perversão formam hoje a base do nosso comportamento, o privado e o público. Na nossa sociedade cenográfica é preciso apenas fazer de conta, ter uma fachada de funcionamento necessário, sem que seja necessário sê-lo. Os números, os programas, as falas, são bonitos. Mas não existem. Existem cerca de 02 milhões e meio de estudantes analfabetos cursando os anos escolares, até o 9º ano. Analfabeto para ler, escrever e fazer as 04 operações de aritmética, analfabetos sociais. Se uma criança não precisa aprender para ser aprovada, ela perde a noção de regra, de lei básica, e perde também a possibilidade de desenvolver sua capacidade de pensar. O nosso desenvolvimento cognitivo tem na escolaridade seu terreno promissor. É indispensável que a escola desperte a criança para o sistema de nutrição de sua característica epistemofílica. É perverso abandonar crianças empurrando-as para fora do mundo do conhecimento, assim como, é perverso institucionalizar um valor monetário pela criança. Transgressão e Perversão se misturam e se beneficiam uma da outra. Quanto mais transgressora uma sociedade, mais violenta ela é com suas crianças, seus idosos, seus doentes.
         Os pequenos desvios estão sendo assimilados pelas nossas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um critério claro de certo e errado, de limite, de lei, de conseqüente punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que, por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Não nos reconhecemos neste mecanismo de defesa? Falta-nos, a todos, vontade política consistente, conseqüente e persistente. Relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os grandes, quando negamos nossa participação, quando nos identificamos com o agressor, quando negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o conteúdo, nós não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização social. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência, do desânimo que se converte numa certa excitação pela barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Não paramos para pensar o conteúdo destas notícias, ficamos na superfície. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade. Alojamo-nos naquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com o agressor, para escapar do medo de enfrentar o agressor. Culpamo-nos uns aos outros, no entanto, todos, temos responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica.
          No VIII Congresso Brasileiro do Instituto Brasileiro de Direito da Família, IBDFAM, o Presidente Dr. Rodrigo Pereira Cunha ressaltou a importância do momento: a inversão do público e do privado. O Presidente do IBDFAM chamou a atenção para o aumento da importância crescente do público, quase um desafio, em inversão revolucionária ao privado. Disse ele: “Esta nova concepção de política, a partir das questões privadas, não significa desistir das antigas questões e ideologias que nos moveram até aqui. Significa apenas uma reformulação sob a perspectiva de um humanismo que tem a dignidade da pessoa humana como aspecto central”. E acrescenta: Os problemas aparentemente privados são os problemas politicos de hoje: a dívida pública, as questões ambientais etc, não teriam tanta importância política se o que estivesse por detrás não fosse o mundo melhor que queremos deixar aos nossos filhos e às gerações futuras”.
          Somos cada vez mais muitos, e cada vez menos um. Nossa identidade é grupal, mas, contraditoriamente, sentimos cada vez mais solidão em meio à multidão. E continuamos com dificuldade de sentir o público como nosso. A título de exemplo, é fácil reclamarmos com alguém que jogou uma latinha usada no nosso jardim, mas não sentimos a mesma coisa se vemos alguém jogando uma latinha na nossa praça. Nosso jardim. Nossa praça? E, quando se trata de tratamento dado à criança, é privado, ou público? Podemos bater quanto quisermos porque é nosso filho? As mães, que batem mais que os pais, justificam-se: “é meu, saiu de mim”.
          Assim, retomemos a lei, as leis. Somos copiados por outros países, o ECA é brilhante, o DECA, um olhar especializado. Mas nos comportamos na busca da vantagem egoísta, no vale-tudo para “ser feliz”, para nos livrarmos de uma raiva. Quando não internalizamos a noção de lei simples, o não pode, ficamos incapazes de empatizar com o outro e, conseqüentemente, de nos sentirmos responsáveis pelo que causamos ao outro. A dita medida disciplinar que serve de justificativa para o uso de castigo físico, tratamento cruel e degradante não se sustenta. Faz-se necessário o olhar de cuidado especial, necessidade da criança, que denuncia a patologia: a Síndrome do Pequeno Poder. A humanidade ainda não é competente diante de seu impulso agressivo e destrutivo. Violência doméstica, consumo e o tráfico de drogas, corrupção, milícias de vários tipos, as policialescas e as políticas, com leis próprias que incluem a pena de morte, pela ausência ou abuso dos serviços públicos, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer íntimo do exercício da opressão, que produz no agressor a ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência.  
               O comportamento empático-responsável intra-familiar é a possibilidade de estruturação e desenvolvimento saudáveis, e, conseqüentemente, a possibilidade da boa convivência humana. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e nos comprometermos com aquilo que vamos dar como resposta, pensando, o mais próximo possível, em como o outro vive aquele momento ou situação. O outro e não eu. Esta é uma capacitação, processual e não pontual, que deveria fazer parte do desenvolvimento saudável das nossas crianças. Nós a perdemos, completamente, para o egocentrismo com frieza afetiva, nos últimos tempos. A solidariedade, que é apenas a parte inicial da empatia, surge na tragédia. Muito bonita, é fundamental para o começo, mas, sabemos, ela se apaga com o apagar das câmeras. Trocamos de foco e esquecemos sem ajudar a resolver o problema do outro, que também é nosso. Vivemos um tempo regido por dois cultos. O primeiro, o culto ao egoísmo narcisista. Não é preciso ser, é indispensável ter e parecer ter, a qualquer custo. A passarela, o futebol, a mídia de imagem tem ido buscar na infância da cidade e do interior os seus trabalhadores, pequenos sonhadores explorados financeiramente pelas famílias e pelos agenciadores. Aqui, o público entrando nos lares e o publicado do que é intra-familiar, não tem importância. O segundo, o culto à impunidade que, de uma maneira ou de outra, todos nós nutrimos, e que retira um dos dois elementos da base da internalização da lei, a sanção e seu sentido. A sanção é registrada na mente como a conseqüência daquela falha na regra e na conseqüente responsabilidade. Assim, nossa sensação térmica de impunidade é cada mais intensa e, portanto, muito difícil de suportar.
          Tomemos como exemplo a Síndrome do Bebê Sacudido. Pouco conhecida e não detectada nos serviços de emergência ou nas anamneses, mas todos conhecemos a cena: um bebê de meses chora e a mãe, irritada o sacode com crescente rispidez até a brutalidade. O movimento de sacudir feito pela mãe, faz com que a cabeça do bebê seja jogada para frente e para trás, sem que ele consiga controlar. O cérebro esbarra sucessivamente na caixa craniana, fazendo com que ocorram inúmeras micro-hemorragias cerebrais. Logo o bebê cala, fica molinho, e adormece. Por muito tempo. Ou seja, seu sistema nervoso central tenta se proteger, e se recuperar reabsorvendo os pequeninos sangramentos, entrando para isso em estado semi-comatoso. Esta letargia do bebê dá à mãe a sensação de alívio da sua irritação, que, se questionada, se justifica dizendo que era manha mesmo, tanto que parou de chorar e dormiu. A síndrome do Bebê Sacudido é o exemplo mais ilustrativo que explicita bem a falsificação da justificativa de “educativa” da conduta agressiva contra a criança. A mãe experimenta uma extrema sensação de onipotência, de posse total, diante da mais absoluta vulnerabilidade do bebê. Qual teria sido a desobediência do bebê que precisava ser corrigida? Vale ressaltar que a metade das entradas hospitalares de bebês até 02 anos de idade, deve-se ao diagnóstico de traumatismo craniano. Os bebês não caem tanto dos berços como respondem mães e pais ao chegarem às emergências. Assim é também com as crianças queimadas, marcadas, com fraturas, abusadas sexualmente, humilhadas.
          Faz-se necessário explicar o funcionamento psicológico de uma mãe que sacode violentamente seu bebê para que pare de chorar. De pronto, somos levados a reagir com indignação. Mas o que acontece é que a conduta violenta desta mãe é movida pelo seu inconsciente. Ela acredita que está apenas ensinando para ele que ela é que sabe que ele não está sentindo nada para chorar, e que isto não é violento, é para ele aprender. Também não percebe que tipo de sono ele teve em seguida e a sua duração. Por outro lado, por menor que seja este bebê, ele vai “aprender”, ou seja, este comportamento da mãe será captado como sinal de alerta para que ele a proteja deste descontrole. Os bebês, muito precocemente, sentem o limite do descontrole da mãe, e o marcam com uma espécie de alerta laranja. Afinal, a sua sobrevivência depende disto. Assim, neste diálogo da relação mãe-bebê, é inserido um código rigoroso de sobrevivência, do lado do bebê, e de poder, do lado da mãe. A mente humana tem áreas, aparentemente, contraditórias, que se devem ao inconsciente. Muitas vezes, em tratamento, chegamos a situações antigas que foram enterradas e deletadas, sofridas por esta mãe, e que, como não foram tratadas, permaneceram como verdadeiros aprisionamentos a uma cena de violência. É a troca de lugar que sempre apontamos, agredido hoje, agressor amanhã. Inconscientemente, alguém tem que pagar pelo sofrido. A objetividade não contempla o funcionamento psíquico. Quando a lógica não explica, como é no caso do sintoma psicopatológico, entramos em terreno que tem razões inconscientes de difícil compreensão.              
          A miséria psicológica, esta forma de miséria que acomete os indivíduos de qualquer classe sócio-econômica, por adoecimento mental ou por embrutecimento social, se instala quando o processo de humanização fracassa. E, diante de alguns comportamentos que somos obrigados pela mídia a tomar conhecimento, a impressão que nos fica é a de que, por vezes, estamos nos tornando sub-animais. Não há mais espaço para estes erros. Urge trabalhar para acontecer, com qualidade e responsabilidade, para implantar uma nova cultura, a da cidadania, e não sucumbir ao desânimo, à desistência, porque existe uma criança que depende do que fazemos hoje, da nossa atitude hoje, que não pode ser negligenciada, abandonada e agredida na sua possibilidade de vir a ser um bom adulto para a sua futura criança, garantindo assim um crescente processo de humanização das próximas gerações, com a indispensável sustentabilidade psicológica.

              

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2011.
Ana Maria Brayner Iencarelli.

<anaiencarelli@gmail.com>