sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Lei Maria da Penha, desmerecer para esvaziar.

Transcrição do comentário de Luciana Uyeda feito no nosso Facebook:
Luciana discorre sobre as manobras para esvaziar a eficácia da Lei Maria da Penha. 

A Lei Maria da Penha tem sido sistematicamente desmerecida e repudiada nos tribunais machistas que aproveitando-se da guarda compartilhada colocam vítimas em risco obrigando-as a conviver com seus agressores que também perpetuam a violência contra os filhos como forma de atingi-las, o artigo 22 inciso IV que garante aos filhos de mulheres vítimas de violência as medidas protetivas também aos filhos e o afastamento do homem agressor não é levado em conta! E nos casos de abuso intra familiar a situação é ainda mais nefasta! A mãe que se socorre na justiça para proteger os filhos de pais pedófilos, além de desmerecida pela lei de alienação parental usada como forma de defesa pelos abusadores poderá segundo a bancada evangélica fascista e os machistas em geral no legislativo ser presa porque querem além de garantir que as crianças sejam levadas a força das mães que denunciam e entregues nas mãos dos pais abusadores, sejam também estas mães presas! A lei de alienação embasada nos estudos do psiquiatra pedófilo americano Richard Gardner criador da síndrome de alienação-SAP, procurado pelo FBI, nunca aceita pela O.M.S-Organização Mundial de Saúde se tornou lei aqui no Brasil com o objetivo de tirar da Lei Maria da Penha a eficácia da proteção e ser usada como defesa de pais pedófilos, abusadores, agressores.
Até quando ficaremos gritando e lutando sem o apoio do legislativo?
Quando as frentes feministas que lotam a Av.Paulista entenderão que estas mães precisam do apoio da luta feminista?
Quando o executivo tomará para si esta questão e procurará em suas cidades criar mecanismos para proteção de mulheres e seus filhos?
A lei de alienação entrou em vigor em 2010, naquele período a menina Joana foi assassinada pelo pai favorecido por esta lei e desde então muitas crianças tem sido vitimas de seus algozes sob a égide da justiça brasileira!
BASTA! Basta de machismo escancarado! Por que é mais fácil fechar os olhos para esta terrível forma de violência contra a mulher e taxa-las sempre de loucas, histéricas e alienadoras? Porque o seu machismo não te deixa ver a verdade! A terrível verdade que vendem laudos nas corrompidas varas de família para os pais abusadores, a terrível verdade que psicólogos machistas massacram as mães em lides judiciais, a terrível verdade que juízes homens e mulheres destratam as vítimas reais e sequer leem os laudos favoráveis às mães.
BASTA!
O machismo TEM que ser criminalizado, a lei de alienação TEM que ser revogada e a lei Maria da Penha TEM que ser fortalecida!

Luciana Uyeda.

O Estado e a Lei da Alienação Parental e a Lei Maria da Penha.


 Transcrição de comentário de Leninha Lena, feito no nosso Facebook: Sobre a Lei de Alienação Parental, a Lei Maria da Penha e a Postura leniente do Estado:É mais que óbvio. A Lei de Alienação Parental é a materialidade da vingança machista contra as conquistas das mulheres através da Lei Maria da Penha e demais, que de algum modo visam coibir maus tratos de homens abusadores. A lei de Alienação Parental é uma aberração jurídica pois afronta diversas leis de proteção aos direitos humanos, em particular de crianças e mulheres/mães. Um horror sem precedentes no Brasil. Ela afronta os direitos humanos violando outro grande preceito legal de que não se decide nem pune ninguém sem prova. Observamos que criminosos perigosos não podem ser sequer denunciados para que respondam processos sem que haja provas robustas constituídas pela materialidade que não se substitui pela prova testemunhal, circunstancial etc. Para q um criminoso perigoso e contumaz seja condenado por um latrocínio, por exemplo, o Estado por suas leis exige provas cabais, constituídas sem sombras de dúvidas, porém, quando homens acusam mulheres de influenciar filhos contra eles, o judiciário sequer cogita se a criança rejeita a relação com o pai por uma atitude, comportamento ou até crime praticado pelo genitor contra a criança. Decide punir a mãe protetora com a perda da guarda do filho e até a própria criança, condenando-a a conviver com seu abusador. Não há razões minimamente razoáveis para o Estado admitir tais aberrações. Lei para proteger e lei para permitir abusos contra crianças e mulheres. Valha-nos Deus!Leninha Lena.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Transcrição do Artigo de Candice Kim, in "Child Sexual Exploitation Update", Vol. 1, 2004.


Da fantasia à realidade: O vínculo entre a pornografia infantil e as crianças molestadas

Por Candice Kim, Child Sexual Exploitation Update — Volume 1, Number 3, 2004

Ilustração: Aastha Mittal
Introdução
O ato de ver a pornografia infantil não existe no vácuo. A existência de imagens que exploram sexualmente crianças representa evidências tangíveis de abusos passados, presentes e, provavelmente, futuros. Mesmo aqueles indivíduos que não molestaram fisicamente uma criança e simplesmente afirmam que “apenas” recebem ou coletam pornografia infantil produzida por outros, desempenham um papel na exploração sexual de crianças “. Na verdade, a maioria dos circuitos considerou que a vítima do crime de transporte de imagens de pornografia infantil não é a sociedade em geral, mas a criança retratada “. A vitimização das crianças envolvidas não termina quando a câmera do pornógrafo é afastada … “A existência contínua da pornografia faz com que as crianças vítimas continuem a prejudicar assombrando aquelas crianças nos próximos anos “. Além disso, O incidente assinalado de um abuso sexual de uma criança é frequentemente usado para vitimizar crianças adicionais no futuro. Pesquisas recentes concluem que existe uma correlação entre indivíduos que coletam e disseminam pornografia infantil e aqueles que molestam crianças sexualmente. Este artigo pretende dissipar o mito de que a visualização de pornografia infantil é apenas olhar para as fotos e alertar os promotores, os investigadores e os profissionais de abuso infantil de primeira linha para o significado da pornografia infantil em padrões predatórios de comportamento.
As estatísticas
Estudos recentes demonstram que aqueles que coletam e disseminam pornografia infantil provavelmente molestarão uma criança real. De acordo com o Serviço de Inspeção Postal dos Estados Unidos, pelo menos 80% dos compradores de pornografia infantil são agressores ativos e quase 40% dos pornógrafos infantis investigados nos últimos anos teriam abusado sexualmente crianças no passado. De janeiro de 1997 a março de 2004 , 1.807 pornógrafos infantis foram presos e 620 desses indivíduos foram confirmados por molestar crianças. Portanto, entre 34–36% desses pornógrafos infantis eram realmente molestadores de crianças, definidos como alguém que confessara atos de abuso sexual, alguém que tinha registro de molestador, ou alguém que estava envolvido em um ato evidente para obter crianças para fins sexuais.
Em um estudo de 2000 emitido pelo Federal Bureau of Prisons, 76% dos delinquentes condenados por crimes relacionados à internet contra crianças admitidas para entrar em contato com crimes sexuais com crianças anteriormente não detectadas pelas autoridades policiais e tinham uma média de 30,5 vítimas sexuais para crianças cada 10. Além disso, os relatórios das forças-tarefa da internet Contra Crimes contra a Infância (ICAC) confirmam a correlação positiva entre a posse de pornografia infantil e de cometimentos de crimes contra crianças, por meio de sua aplicação da lei e trabalho de campo. Por exemplo, a força-tarefa ICAC baseada na Pensilvânia Informou que 51% dos indivíduos presos por delitos relacionados à pornografia também estavam determinados a molestar ativamente as crianças ou ter molestado no passado.
Usando pornografia infantil no processo de preparação
Os predadores sexuais frequentemente usam a pornografia como uma ferramenta para ajudá-los no processo de preparação. “Grooming” é o termo usado para descrever o processo pelo qual os molestadores de crianças criam confiança com elas para a transição de uma relação não-sexual para uma relação sexual de uma maneira que parece natural e não ameaçadora. Através do processo de preparação, o molestador infantil busca fazer amizade e manipula uma vítima alvo. Semelhante ao processo de cortejo adulto, o agressor infantil “seduz” a criança vítima com atenção, carinho e presentes. O preparo é um processo gradual e um manipulador de crianças qualificado cuida de estabelecer uma base de confiança, amor e amizade antes de escalar o relacionamento sexual. Em última análise,os abusadores de crianças utilizam a pornografia para adultos e a pornografia infantil no processo de preparação, embora seja para fins diferentes. A pornografia adulta é mais usada para despertar a vítima e quebrar as barreiras da criança ao comportamento sexual. A pornografia infantil também é usada para destruir as barreiras da criança ao comportamento sexual, mas serve o propósito adicional de comunicar as fantasias sexuais do molestador infantil à criança. A exposição repetida à pornografia adulta e infantil destina-se a diminuir as inibições da criança e dar a impressão de que o sexo entre adultos e crianças é normal, aceitável e agradável. A pornografia infantil utilizada para este propósito retrata crianças que estão sorrindo, rindo e aparentemente se divertindo, que, por sua vez, legitima o sexo entre adultos e crianças e retrata essas atividades sexuais como divertidas. De 1.400 casos de abuso sexual relatado em Louisville, Kentucky, entre 1980 e 1984, a pornografia estava relacionada a cada incidente e a pornografia infantil estava conectada na maioria dos casos.
Infelizmente, os molestadores de crianças tendem a atingir crianças que são negligenciadas ou provêm de lares disfuncionais. Para essas crianças, o molestador infantil oferece um relacionamento alternativo que faz a criança se sentir especial e amada. Como resultado, as crianças que são abusadas frequentemente exibem feroz lealdade a seus abusadores. Os predadores sexuais são habilidosos na identificação de crianças vulneráveis, necessitadas e / ou solitárias. Os próprios predadores sexuais admitem que procuram crianças vulneráveis:
“Escolha crianças que não tenham sido amadas. Tente ser legal com elas até confiarem em você e dar-lhe a impressão de que elas vão participar com você de bom grado. Use o amor como isca …. Dê-lhe a ilusão de que ela é livre vá com ele ou não. Diga-lhe que ela é especial. Escolha uma criança que tenha sido abusado. Sua vítima pensará que desta vez não é tão ruim.
Parte do processo de preparação consiste em desenvolver uma relação de confiança com a criança e, muitas vezes, a família da criança. Na verdade, o relacionamento aparentemente “confiável” é um de decepção e manipulação. À medida que o agressor infantil ganha confiança e lealdade da criança e da família da criança, muitas vezes ele envolverá a criança com imagens pornográficas à medida que ele intensifique o relacionamento em realidade abuso sexual. A pornografia infantil utilizada neste contexto é muitas vezes um indicador das fantasias sexuais do molestador infantil, bem como uma ferramenta usada no processo de preparação de uma vítima. Participar na pornografia infantil é um precursor comum de praticar comportamentos sexualmente desviantes com vítimas vivas.
“Muitos pedófilos reconhecem que a exposição a imagens de abuso infantil alimenta suas fantasias sexuais e desempenha um papel importante para levá-las a cometer delitos sexuais práticos contra crianças”.
Coleções de pornografia infantil
Os dados recolhidos das investigações de aplicação da lei concluem que os abusadores de crianças muitas vezes coletam pornografia infantil. O termo “coleção” vai além da mera visualização para salvar, categorizar e fantasiar sistematicamente sobre as imagens pornográficas.
Em um estudo realizado em 1984 pelo Departamento de Polícia de Chicago, descobriu-se que em quase 100% de suas detenções anuais de pornografia infantil, o indivíduo preso estava envolvido em atos sexuais com as crianças nas fotos, filmes e vídeos confiscados. Como tal, A posse de pornografia infantil deve alertar os investigadores e os promotores para a alta probabilidade de abuso sexual infantil passado, presente ou futuro.
Os infratores sexuais preferenciais são particularmente obsessivos em colecionar, organizar e categorizar imagens pornográficas. Os infratores sexuais preferenciais são aqueles infratores que têm uma clara preferência sexual para crianças; Considerando que os infratores sexuais situacionais não têm uma preferência sexual compulsiva para crianças, preferem se relacionar com crianças por razões variadas e complexas. Ao contrário dos infratores sexuais situacionais, os agressores sexuais preferenciais não molestam crianças por causa do estresse situacional ou insegurança, mas porque são sexualmente atraídos e preferem crianças. Estes são os infratores que têm fantasias eróticas sobre crianças e coletam imagens pornográficas que descrevem suas fantasias sexuais com elas. Os agressores sexuais preferenciais podem ser extremamente meticulosos sobre categorizar, rotulando e organizando sua coleção de pornografia infantil de acordo com a idade, gênero, ato sexual e fantasia. Essas coleções são uma indicação direta das fantasias sexuais que os infratores experimentaram ou pretendem experimentar.
“Especialmente para os agressores sexuais de tipo preferencial, a coleção é a palavra-chave aqui. Isso não significa que eles simplesmente vejam a pornografia. Eles salvam. Ele vem definir, é combustível e validam suas fantasias sexuais mais preciosas”
Ver pornografia infantil reforça fantasias e leva o predador a atuar sobre essas fantasias sexuais com crianças reais. Portanto, mesmo se um indivíduo não está molestando ativamente no momento em que ele é investigado por possuir pornografia infantil, uma extensa coleção indica sua preferência sexual por crianças, e é uma bandeira vermelha para possíveis planos futuros para molestar. A pornografia pedófila e a coleção erótica são o melhor indicador do que ele quer fazer.
Além disso, o ato de negociar pornografia infantil na comunidade de pedófilos na Internet reforça a ideia de que a pedofilia é aceitável. Com a tecnologia dos computadores e a vasta comunidade através da Internet, os pedófilos podem facilmente alimentar seus desejos sexuais com o clique de um mouse e localizar outros indivíduos com interesses semelhantes. Ao se comunicar com outros pedófilos na Internet, eles trocam informações e validam seus interesses e comportamentos desviantes.
Conclusão
A noção de que a exibição de representações pornográficas de crianças não tem relação com o abuso sexual infantil é sem base. Embora as absolutos estatísticas sejam impossíveis de desenhar em uma arena como essa, a evidência de investigações e experiências reais nos diz que é um pequeno passo de ver a pornografia infantil para molestar crianças. Os indivíduos que acham prazer em ver imagens de crianças envolvidas em atividades sexuais já violaram as normas sociais com seus interesses sexuais desviantes. Portanto, não é uma ideia absurda que um espectador de pornografia infantil imitará os crimes cometidos nessas imagens. Possuir pornografia infantil é uma bandeira vermelha para o interesse sexual desviante em crianças. Os perpetradores devem ser perseguidos com vigilância, com base no pressuposto de que, quando há pornografia infantil, há abuso infantil.
Tradução Livre: Fernanda Aguiar

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

GUARDA DE CRIANÇAS, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E ALIENAÇÃO PARENTAL: ONDE ESTÃO OS DIREITOS DAS CRIANÇAS?



Este brilhante e preciso texto da Dra. Clara Sottomayor, Juíza do Supremo Tribunal Constitucional de Portugal, é de 2015. E is Direitos das Crianças???

GUARDA DE CRIANÇAS, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E ALIENAÇÃO PARENTAL: ONDE ESTÃO OS DIREITOS DAS CRIANÇAS?


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Nos países muçulmanos as mães perdem a guarda dos/as filhos/as que criaram, quando o pai, após uma separação, exige a sua guarda. Também na Europa Ocidental foi assim até à introdução do princípio da igualdade, na década de 70 ou 80 do século XX: o pai exercia o poder paternal e a mãe tinha apenas o direito de ser consultada sobre a educação dos/as filhos/as de quem cuidava. Em Inglaterra, no século XIX, o movimento feminista lutou para que o Parlamento reconhecesse às mulheres a guarda dos/as seus/suas filhos/as após o divórcio. Com o Talfourd Act de 1839 conseguiram a guarda dos/as filhos/as até aos sete anos e direitos de visita para os/as mais velhos/as. Foi a vitória do afeto sobre a visão das crianças como propriedade do pai. Em Portugal, antes de 1977, prevalecia a unidade da família no chefe masculino sobre a prestação de cuidados feita pelas mães, que não tinham qualquer poder de decisão sobre os/as filhos/as que criavam.
Fala-se muito na moral dupla que arrastou consigo séculos de humilhações e de violências contra as mulheres. Mas pouco se fala da discriminação sofrida pelas mães, quando o Estado intervinha na família para decidir a guarda de uma criança nos casos de divórcio. Essa moral dupla reflectia-se também na maternidade e as mulheres perdiam a guarda das crianças por terem cometido adultério, o que nunca acontecia aos homens na mesma situação.
No exercício da parentalidade, homens e mulheres são avaliados ainda hoje por critérios diferentes, muito mais exigentes para estas. É que, quando se diz que os Tribunais entregam 90% das crianças à guarda da mãe, está-se a esquecer que na maioria dos casos as crianças ficam à guarda da mãe por opção dos próprios pais e não por decisão judicial. Os processos judiciais litigiosos de regulação das responsabilidades parentais, em que os pais discutem a guarda de uma criança, são uma das áreas em que a discriminação das mulheres é mais violenta e mais invisível para a sociedade: se é uma mãe autoritária, que impõe regras, já não é boa mãe porque é vista como uma mãe fria, a quem falta o carinho próprio de uma mãe; se é uma mãe meiga e protetora, então esgrime-se, com sucesso, o argumento de que é demasiado condescendente com os/as filhos/as e não sabe impor regras; se é uma mãe que trabalha a tempo inteiro, não tem disponibilidade para os filhos; se depois do divórcio sai à noite ou deixa os/as filhos/as com os avós, é uma galdéria e não sabe ser mãe; se pede aumento da pensão de alimentos para os/as filhos/as, porque o seu magro ordenado não chega para os/as sustentar quando crescem, então é vista como uma consumista, que se quer aproveitar das crianças para extorquir dinheiro ao ex-companheiro.
Mas a tragédia maior acontece quando são vítimas de violência durante o casamento e depois do divórcio, e os/as filhos/as se recusam a visitar o pai: presume-se imediatamente que manipulam os/as filhos/as, mesmo que estes/as sejam já adolescentes com idade para gozar de autonomia e fazem-se diagnósticos de uma doença, nunca reconhecida pela OMS nem por outras entidades competentes, designada por «síndrome de alienação parental», e que se carateriza pela intenção de destruir a relação afetiva da criança com o progenitor acusado. Após se deixar cair a «síndrome», defende-se que as mães são mulheres diabólicas, que praticam um facto objetivo – alienação parental – que devia ser punido penalmente, bastando para o efeito que uma alegação de violência doméstica ou de abuso sexual de crianças não reúna prova suficiente no processo-crime. Perante a recusa da criança ao convívio com o pai, usa-se o argumento dos direitos deste e esquece-se o interesse da criança e o seu direito a viver sem violência, ou apenas o seu direito a ser humana e a ter sentimentos e necessidades próprias, distintas das dos seus pais.
E de onde vieram estes conceitos de «síndrome de alienação parental» ou de «alienação parental», que tanto sucesso têm feito na criação de uma imagem diabolizada das mulheres, em especial, daquelas que lutam para defenderem os/as seus/suas filhos/as de situações de violência doméstica ou de abuso sexual?
O criador da «síndrome da alienação parental» foi um médico psiquiatra norte-americano, que identificou um conjunto de sintomas que classificou como síndroma de alienação parental, para defender em tribunal, como perito, pais acusados de abuso sexual dos seus/suas filhos/as, em processos de guarda de crianças, construindo a ideia de que as mães mentem para cortar a relação da criança com o outro progenitor e para obter vantagens nos processos de divórcio.
Ao trabalho de Richard Gardner nunca foi reconhecida validade científica. As conclusões dos seus estudos foram deduzidas de amostras populacionais reduzidas, compostas pelos seus clientes, e baseavam-se nas impressões pessoais do autor sobre as alegações daqueles, sem incluir grupos de controlo, comparação dos dados com outras investigações anteriores sobre o tema nem avaliação da taxa de erro da teoria e das suas consequências. Os livros e artigos de Richard Gardner foram auto-publicados e nunca foram objeto de revisão pelos seus pares, como se exige para que um trabalho de investigação tenha validade científica. É importante esclarecer, também, o desfasamento do seu discurso sobre as mulheres e as crianças em relação à ciência e às conceções da sociedade.
Num livro publicado em 1992, intitulado “True and false accusations of child sex abuse”, o autor afirmou que as mulheres eram meros objetos, recetáculos do sémen do homem, e que as parafilias, incluindo a pedofilia, estão ao serviço do exercício da máquina sexual para a procriação da espécie humana. Afirmava o autor: “A pedofilia é uma prática generalizada e aceite entre literalmente biliões de pessoas”. E negava os danos sofridos pelas crianças vítimas de abuso sexual, dizendo que o abuso sexual não é, em si mesmo, negativo para as crianças, mas é a sociedade que o torna traumatizante. Fica bem patente nestas palavras a ideologia sexista do autor, completamente desatualizada e primária, e a total incompreensão do sofrimento das crianças vítimas de abuso sexual.
O resultado da aplicação das suas ideias no mundo judiciário não podia ter sido mais compensador para estas teses, que induzem os profissionais, encarregados da avaliação das famílias, e os tribunais, a desvalorizar as alegações de violência doméstica e de abuso sexual. Temos casos de regimes de visitas forçados das crianças ao agressor, durante a pendência de processos-crime, nos quais foi aplicada medida de coação de afastamento da vítima e nos quais está em causa a segurança da criança e da mãe. Pior ainda: casos de entrega da guarda de crianças a pais condenados por violência doméstica.
A ideologia de Gardner, juntamente com a crença na co-parentalidade, tão generalizada nos tribunais de família, transformou-se numa separação entre os processos cíveis e os processos-crime, em que o discurso oficial é: «o que se passa no processo-crime nada tem a ver com o processo cível»; «pai é pai» e tem direitos. Perante queixas de abuso sexual diz-se à mãe e à criança, quando ouvida em tribunal: «seja o que for que se tenha passado, há que esquecer»!
Toda a linguagem dos critérios para identificar a SAP é artificial e contém uma conceção biologista da paternidade, baseada na posse sobre as crianças, que são vistas como objetos cuja vontade nunca é própria mas sempre determinada pelo «progenitor alienador», epíteto que nasceu para se aplicar às mães, designadas por «mães maliciosas», e que depois se generalizou a ambos os géneros. No entanto, na prática judiciária, as consequências não são as mesmas para homens e para mulheres. Como demonstra um estudo de jurisprudência feito em Espanha, quando o pai é o «progenitor alienador» não se aplicam medidas tão drásticas como aquelas que são aplicadas às «mães alienadoras»: em 83% dos casos em que foi feito um diagnóstico de alienação parental à mãe, a guarda foi transferida para o pai; nos casos em que o progenitor residente alienador era o pai, nenhuma das crianças foi entregue à guarda da mãe.
De repente, desde que passou a ser moda obrigatória falar de alienação parental, todos os profissionais com formação para saberem que a maior parte dos abusos sexuais de crianças e dos maus tratos acontecem na família, idealizam a família pós-divórcio, reduzindo a violência doméstica a um mero conflito. Embora não disponha de dados estatísticos em relação a Portugal, nos EUA alguns estudos indicam que em cerca de 75% dos casos litigiosos de guarda de crianças há violência doméstica e que os progenitores agressores tendem duas vezes mais do que os outros pais a pedir a guarda dos/as seus/suas filhos/as como forma de retaliação sobre a ex-mulher ou ex-companheira. E não nos podemos admirar que assim seja: as mulheres estão a viver um processo de emancipação. Tendem por isso a separar-se ou a divorciar-se dos agressores. Onde estão as mulheres vítimas de violência? Esperamos todos/as que rompam a relação com o agressor, não é? Então, temos que perceber que é nos processos de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais que elas se encontram e que são elas e os/as seus/suas filhos/as que mais precisam da ajuda da lei e dos tribunais.
Um regime de regulação das responsabilidades parentais, que não contemple as necessidades de proteção das vítimas de violência, condena-as a permanecer junto do agressor ou a aguentar perseguições e riscos de vida depois da separação. A primeira pergunta que dirigem aos profissionais que as apoiam, no processo de saída da relação, é esta: vou perder os meus filhos? Para além de medidas sociais e económicas destinadas à aquisição de independência financeira para saírem das relações abusivas, as mulheres vítimas de violência doméstica precisam que a relação de afeto que têm com os/as seus/suas filhos/as seja protegida. Muitas, porque o sistema não as protege, são obrigadas a fugir para outro país com os/as filhos/as e acusadas de crime de subtração de menores. O «rapto parental» pode ser a única defesa das vítimas de violência. E também é, e sempre foi, uma arma usada pelos agressores para exercer retaliação sobre a vítima de violência que pede o divórcio. Tenho consciência, contudo, que há mulheres nos processos de guarda litigiosos, que não foram nem são vítimas de violência doméstica e que abusam do seu «poder doméstico» sobre as crianças para dificultar as visitas, durante uma fase em que estão magoadas com o divórcio ou porque não confiam com fundamento, ou sem ele, nas capacidades parentais do outro progenitor. Mas não precisamos do conceito de alienação parental, para resolver estes conflitos.
Nos casos em que não há violência doméstica, os litígios tendem a desaparecer ou a atenuar-se ao fim de um ano ou dois. E temos ao nosso dispor os mecanismos da mediação e do apoio psicológico aos pais e às crianças para as ajudar a ultrapassar o stress que lhes causa o divórcio. É que os Tribunais não podem impor afetos e a sua capacidade de intervenção neste domínio é necessariamente limitada.
O conceito de alienação parental não pode ser usado para qualificar, de forma indiscriminada, toda e qualquer situação em que a criança não deseja o convívio com um dos pais. Quem recorre ou aplica o conceito deve demonstrar que a mãe ou o pai manipulou os/as filhos/as, incluindo a prova de manobras ou artifícios dolosos para obter o controlo do pensamento da criança e a prova de que o resultado pretendido foi obtido, a prova da intenção de cortar a relação afetiva com o outro progenitor e do nexo de causalidade entre a manipulação e a rejeição da criança. Como o discurso da alienação parental se centraliza nos interesses e direitos do progenitor dito «alienado», perde-se de vista, na prática judiciária, que a recusa da criança pode ser proveniente da sua vontade ou de um comportamento incorreto do progenitor rejeitado. A recusa da criança não permite presumir tal manipulação. Há que ponderar outras hipóteses: as crianças aliam-se a um dos pais porque acham, na sua própria avaliação (as crianças são seres pensantes e com capacidade para terem opiniões próprias) que a culpa do divórcio é do outro, por rebeldia própria da adolescência ou como uma forma de ultrapassarem a dor e a depressão que lhes causou o divórcio.
Toda a análise desta questão deve ser centrada na pessoa da criança – naquilo que ela sente – e a decisão deve pressupor empatia com esse sentimento. Só assim não se reduz as crianças a objetos. As crianças amam ambos os pais e esta relação afectiva deve ser protegida. Mas devem ter liberdade de não amar e de não perdoar quando são maltratadas. Afinal, a liberdade de amar ou não amar alguém faz parte do reduto mais profundo do ser humano e nenhum Estado a pode eliminar sob pena de totalitarismo.
Os defensores do conceito de alienação parental propõem, na esteira do criador do conceito da síndrome de alienação parental, a transferência da guarda da criança do progenitor que ela ama para o progenitor que ela rejeita, ou, nos casos mais graves, o internamento institucional acompanhado da suspensão de contacto, mesmo telefónico, com o progenitor dito «alienador». Esta situação agrava-se mais ainda, nos casos em que o sistema judicial entrega a guarda a um progenitor que está a ser investigado por suspeita de violência doméstica ou de abuso sexual de crianças. Pode dizer-se, claro, que um progenitor suspeito ou acusado se presume inocente. E é verdade. Mas a presunção de inocência – garantia fundamental no processo penal – não tem de ser o critério de decisão no processo tutelar cível, em que prevalece o interesse da criança e a sua proteção.
Sabe-se que o abuso sexual de crianças, na maior parte dos casos, não deixa vestígios ou marcas físicas no corpo da criança detetáveis em exames de medicina legal. A prova fundamental é o testemunho da criança validado por técnicos/as especializados/as. Em Portugal, não há ainda formação especializada nesta matéria nem um corpo de especialistas dedicados/as a esta tarefa. Um estudo feito na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto revela que cerca de 60% das queixas de abuso sexual são arquivadas por insuficiência de prova, tendo este arquivamento como principal causa o facto de a única prova ser a palavra de uma criança muito pequena. Embora a ciência demonstre que a partir dos 4 anos a criança tem capacidade de testemunhar e discernimento para distinguir a fantasia da realidade, o sistema judicial não está ainda preparado, em regra, para ouvir crianças desta idade e valorar o seu testemunho.
As acusações de alienação parental contra as mães que apresentam queixa do outro progenitor por abuso sexual colocam as mães numa encruzilhada sem saída: ou não denunciam o abuso e podem ser punidas por cumplicidade com o abusador, ou denunciam, e podem ver a guarda da criança ser entregue ao progenitor suspeito ou ordenadas visitas coercivas.
Descartar queixas de abuso sexual só porque feitas no momento de um divórcio não tem qualquer fundamento científico. Os estudos divulgados em cursos para profissionais sobre divórcio, que afirmam a falsidade da maioria das queixas de abuso sexual nos processos de guarda de crianças, baseiam-se apenas na perceção dos próprios acusados e dos peritos que os defendem em tribunal e não esclarecem qual o conceito de abuso sexual que utilizam. Nos Estados Unidos, um estudo feito com uma amostra ampla de 9000 divórcios demonstra que o número de queixas consideradas falsas ronda os 5%, tal como noutros contextos. O sucesso do conceito de alegações falsas, em processos de divórcio, explica-se pelo conforto que fornece às crenças da sociedade de que o mundo é justo e que os pais, sobretudo se jovens e de classe alta, não cometem crimes tão hediondos.
Nestas questões, penso que o caminho é colocarmo-nos no lugar da criança e ouvirmos a sua voz. Proteger a criança acima de tudo e nunca correr o risco de entregar a sua guarda a um abusador. Ser vítima de abuso sexual continuado provoca nas crianças sequelas psicológicas que se repercutem negativamente em todo o seu desenvolvimento e idade adulta. É um sofrimento semelhante a viver num campo de concentração ou a ser vítima de tortura. Não podemos aceitar: nem como hipótese!

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

"Quando a gente ama, a gente cuida."

                                   Quando a gente ama, a gente cuida


                   Foi com prazer que ouvi magistrados pensarem o cuidado e o afeto como valores jurídicos na Jornada promovida pela EMERJ (Escola de Magistratura do TJ/RJ), no último dia 29 de setembro. Como não houve oportunidade de colocar algumas questões nesta ocasião, gostaria de expor alguns pontos que são oriundos da conjugação do exercício profissional de mais de 30 anos da minha formação como psicanalista de criança e de adolescente, com a atividade mais recente de assistente técnica de vários processos desta área jurídica, além do trabalho nos últimos 12 anos junto a ABRAPIA, organização não governamental dedicada à proteção de crianças e adolescentes.
                   Conceitos psicológicos fundamentais foram adquiridos nestes, últimos tempos, pelos Advogados, Promotores, e Juízes de Varas da Infância e Juventude e de Família, garantindo às crianças e aos adolescentes o convívio com os elementos familiares essenciais que estão na estrutura de formação da 
mente humana e de sua personalidade.
                   Sabemos hoje que a participação do pai desde o início do desenvolvimento de uma criança tem importância na aquisição de sua identidade de gênero, mesmo quando esta criança é uma menina e ainda é muito pequena. Sabemos também que uma união rompida não deve desfazer os laços familiares entre pais e filhos, e, quando novas uniões destes pais surgem, a justiça tem garantido a permanência destes laços.
                   No entanto, parece que estes conceitos se transformaram em “mitos familiares” que tem ocasionado distorções danosas para o desenvolvimento psicológico de muitas crianças e adolescentes,  comprometendo assim a sua saúde emocional. Refiro-me aqui à consagração dos  conceitos “mãe” e “pai”. O famoso “instinto materno” que justifica a permanência da criança ao lado de “mães” que só tem direito ao título biológico, independente de tê-lo sido por um acidente da natureza ou por excessivo desejo de sê-lo.
                   A maternidade é uma das etapas do “processo de maternalidade” que acompanha a mulher por toda sua vida tendo ela filhos ou não. Este conceito introduzido pelo psicanalista francês Jean-Paul Racamier,  nos auxilia a compreender melhor a constatação de que muitas mulheres não exercem a função de mãe logo depois da maternidade, e algumas, em nenhum momento da vida. Tornar-se mãe não é compulsório, nem instintivo. É uma possibilidade afetiva, e como tal vai depender da experiência vivida como filha e da rede de identificações positivas e construtivas que estruturaram a sua própria afetividade. Além disso, muitas mulheres tentam se sentir “mãe” assumindo a posse do filho através do seu corpo: “saiu de mim, é meu”. E, se escondendo atrás da “explicação” de corretivo, ocupam o primeiro lugar nas estatísticas de denúncias de violência física com o índice de 52% praticada por elas, as mães, contra  24% praticadas pelos pais, 8% por padrastos, 13% por outros parentes e 3% por não-parentes. Como afirmamos no artigo “Violência e Afeto” publicado no editorial do Jornal “O Globo” de 20 de fevereiro de 2006, se acrescentarmos as “palmadas moderadas educativas” a estes índices obtidos com base em denúncias, alcançaremos alarmantes escores de 70% a 80% de mães batendo em seus filhos, exercendo o papel de posse, e não cumprindo a necessária função de mãe. A violência da questão da criança abrigada trazida na Jornada pelo Promotor Sávio Renato Bittencourt (MP/RJ), que, com tanto cuidado e afeto, convocou o judiciário a ter um olhar quantitativa e qualitativamente mais efetivo. Na verdade, há poucos abrigos oficializados, se considerarmos o enorme número de crianças e adolescentes “abrigados” em seus próprios lares, sem nenhuma assistência, cuidado, ou direito, perfazendo dois grandes grupos: os que possuem computador e os que não possuem.
                   A qualidade das relações afetivas intra-familiares vem se degradando e vínculos se tornaram, em grande parte, descartáveis. Quantas vezes nos deparamos com a utilização perversa de uma criança pela sua mãe como arma para vingança pessoal ou como moeda para obtenção de “conforto financeiro” próprio. Seria longa a lista de situações de abuso físico, sexual e psicológico praticado contra a criança e o adolescente. Assim, devemos ter muito cuidado ao afirmarmos, automaticamente, que toda criança precisa ficar com a mãe. Toda criança precisa de mãe, mas nem sempre da sua mãe. Uma mulher pode até ser uma boa mãe operacional, (limpar, alimentar e colocar no berço para dormir), e, no entanto, não conseguir ser uma mãe, saudavelmente, afetiva e cuidadosa. Exercer a função de mãe não é a mesma coisa que executar tarefas. Muitas mulheres não conseguem nem mesmo operacionalizar seu papel de “mãe”. Por exemplo: existem meninas muito danificadas, psiquicamente, pela permanência ao lado da mãe, portadora de distúrbios afetivos graves, porque foram obrigadas a cuidar de suas mães desde a infância, alimentando-as, dando banhos, tentando impor limites às mães, desculpando-as e perdoando-as, numa inversão de papéis, o que determina um enorme custo emocional de muito longo prazo, pois que esta inversão aconteceu durante o período do desenvolvimento. Ou seja, a ausência da proteção necessária junto a uma demanda da função protetora exercida precoce e inadequadamente, antes de haver a menor condição para tal, causando, na maioria das vezes, deformações emocionais e afetivas que as acompanham para sempre.
                   Por outro lado, o mito de que a presença do pai é indispensável para o desenvolvimento da criança, nos coloca diante de outra distorção: pais que abusaram sexualmente de um filho ou filha tem um convívio garantido judicialmente pela visita supervisionada. É preciso pensar que a importância do pai, aquele que assim se comporta, no desenvolvimento da criança está correta, mas um pai que usou o corpo de seu filho/a para obter prazer sexual de qualquer tipo, abriu mão de sua função de pai, atacou e destruiu a mente da criança através da ilusão de posse do corpo dela para satisfação concreta de sua perversão. Sua simples presença no ambiente, é imensamente perturbadora para a criança e a empurra à dolorosa revitimização, pois, não tendo sido protegida de sua perversão, não confia em nenhum adulto como protetor até que seja restaurado o vasto estrago psicológico causado pelo abuso ocorrido. Poderia também listar as dores e desesperos de crianças e mães ou pais na luta pela não visitação supervisionada, até que a própria criança se sinta capaz de estar no mesmo ambiente que o abusador/a. Em alguns casos, o desespero é tamanho que se tornar “fugitivas”, criança e mãe, foi a decisão tomada diante da impotência de serem ouvidas, principalmente, no pânico produzido pela determinação judicial da visitação supervisionada. A destituição do Poder Familiar é outro ponto mitológico. Processos se arrastam por quase 10 anos, com a vítima sendo chamada em audiências repetitivas para contar tudo de novo, porque agora elas já cresceram. Mas a criança logo aprende ao longo desta saga que não adianta repetir aquela história para vários Juízes porque não vai haver a condenação por crime de abuso sexual, e perde a esperança nos adultos e em sua justiça. Prisões também são muito raras, não encontramos seus registros, porque parece haver um medo do judiciário de condenação à “pena de morte”, já que este é um crime não tolerado pela população carcerária e suas “leis”. Então, desta maneira, é a criança ou adolescente é o único que custeia este adiamento ad eternum do julgamento de um fato que povoa sua mente assaltada na sua necessidade de paz, cotidianamente, pela dor do medo e da impotência, e pela raiva da impunidade. Portanto, estamos colaborando para mais uma deformação psicológica, porquanto não podemos esperar que a vitimização e suas conseqüentes revitimizações neste cenário, venham a produzir mentes saudáveis. Abusado ontem, abusador hoje ou amanhã. Este é um risco já demonstrado por estudos e pesquisas, vide o processo por pedofilia de Angers, França, em julgamento público em maio de 2005, talvez o maior que se tenha notícia, com 45 vítimas de 6 meses a 12 anos, abusadas por pais, mães, irmãos mais velhos, tios, primos, que por sua vez tinham sido abusados pelos avôs e tios-avôs, formando uma enorme rede de compulsão à repetição.
                   Por tudo isso, nós temos certeza que podemos e devemos comemorar, a primeira sentença que contemplou recentemente a visitação de um pai sócio-afetivo, atestando assim a capacidade de um entendimento da importância do vínculo afetivo no desenvolvimento de uma criança. Este é um marco muito importante porque a sobrevivência psíquica transborda compromissos pecuniários de sobrevivência corporal, igualmente importante. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências de um adulto que lhe seja especial. A sua necessidade de alimento, leite e afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados básicos, são sua única possibilidade de continuar existindo. O quadro de hospitalismo, descrito por René Spitz, comprova que a privação de afeto pode levar um bebê atendido em suas necessidades básicas, do ponto de vista da alimentação e higiene, à morte, como o autor bem observou. O Apego, comportamento teorizado por John Bowlby, pode ser observado no comportamento dos bebês de se agarrar e escalar o corpo do adulto quando são segurados no colo. A segurança vem do amparo físico e aconchego recebidos. O afeto, também necessidade básica para o bebê, é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental saudável. O cuidado é, pois, a expressão deste afeto de qualidade. 
                   Considerando, pois, a prática acumulada durante todos estes anos, trabalhando com os danos causados pela privação maior ou menor de cuidado e afeto, numa espécie de oficina da arte de restaurar o mundo interno, de tantos pacientinhos, e somando a experiência mais recente de acompanhar processos como assistente técnica, infelizmente, posso afirmar que, se o infanticídio foi tolerado até o século XVII, temos que reconhecer que hoje há uma espécie de infanticídio psicológico que todos permitimos com nossas omissões, com a obediência a mitos, enfim, com a deficiência e a falta de cuidado com nossas crianças e adolescentes. Por isto, do meu prazer de ouvir magistrados, numa sexta-feira, pensarem o cuidado e o afeto como valores jurídicos.
Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2006.
Ana Maria Iencarelli.

<anaiencarelli@rionet.com.br> (este email está desativado há alguns anos) 

Infanticídio: quem ama, cuida.

Infanticídio: quem ama, cuida


         A inclusão do afeto e do cuidado como valores jurídicos é de fundamental importância para a saúde de nossas crianças e vem juntar-se ao Projeto de Lei nº 2654-03 sobre a interdição da punição física de crianças e adolescentes.
         Conceitos psicológicos fundamentais foram adquiridos nestes, últimos tempos, pelos Advogados, Promotores, e Juízes de Varas de Família, garantindo às crianças e aos adolescentes o convívio com os elementos familiares essenciais que estão na estrutura de formação da mente humana. Sabemos hoje que a participação do pai desde o início da vida de uma criança tem importância para seu desenvolvimento. Sabemos também que uma união rompida não deve desfazer os laços familiares entre pais e filhos, e, quando novas uniões destes pais surgem, a justiça tem garantido a permanência destes laços.
         No entanto, parece que estes conceitos se transformaram em “mitos familiares” que tem ocasionado distorções danosas para o desenvolvimento psicológico de muitas crianças e adolescentes, comprometendo assim a sua saúde física e emocional. Refiro-me aqui à consagração dos  conceitos “mãe” e “pai”. O famoso “instinto materno” que justifica a permanência da criança ao lado de “mães” que só tem o título biológico. Tornar-se mãe não é compulsório, nem instintivo. É uma possibilidade afetiva, e como tal vai depender da experiência vivida como filha e da rede de identificações positivas e construtivas que estruturaram a sua afetividade. Muitas mulheres tentam se sentir “mãe” assumindo a posse do filho através do seu corpo: “saiu de mim, é meu”. E, se escondendo atrás da “explicação” de corretivo, ocupam o primeiro lugar nas estatísticas de denúncias de violência física com o índice de 52% praticada por elas, as mães, contra 24% praticadas pelos pais, 8% por padrastos. Temos 84% num triste total. Como afirmamos no artigo “Violência e Afeto”, publicado em fevereiro de 2006, se acrescentarmos as “palmadas moderadas educativas” a estes índices baseados em denúncias, alcançaremos alarmantes escores. Todo espancamento começou por uma palmada.
      A qualidade das relações afetivas intra-familiares se degradaram e vínculos se tornaram, em grande parte, descartáveis. Devemos ter muito cuidado ao afirmarmos, automaticamente, que toda criança precisa ficar com a mãe. Toda criança precisa de mãe, mas nem sempre da sua mãe.
         O mito de que a presença do pai é indispensável para o desenvolvimento da criança, nos coloca diante de outra distorção: pais que abusaram sexualmente de um filho ou filha tem um convívio garantido judicialmente pela visita supervisionada. É preciso pensar que a importância do pai, aquele que assim se comporta, no desenvolvimento da criança está correta, mas um pai que usou o corpo de seu filho/a para obter um prazer sexual, abriu mão de sua função de pai, atacou e destruiu a mente da criança através de posse do corpo dela para satisfação concreta de sua perversão. A agressão física como desculpa educativa não passa da busca do prazer infantil de um pequeno poder em relação a um mais fraco. A compulsão à repetição é selada pela aquisição da relação algoz-vítima que se inverterá na idade adulta: negligenciado hoje, negligente amanhã, abusado hoje, abusador amanhã, espancado hoje, espancador amanhã.
       A sobrevivência psíquica transborda compromissos pecuniários de sobrevivência corporal. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências de um adulto que lhe seja especial. O leite e o afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados básicos, são sua única possibilidade de continuar existindo. O afeto é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental saudável e da saúde como um todo. E o cuidado é a expressão deste afeto de qualidade.
        O infanticídio foi tolerado até o século XVII.  Mas temos que reconhecer que hoje praticamos o infanticídio psicológico quando pais espancam seus filhos, meninas ficam presas em cela com detidos adultos, crianças se prostituem em nossas orlas, meninos são aliciados por sites de pedofilia, meninas são torturadas pela “mãe”, menino é esquartejado pelas ruas sem lei, crianças são jogadas pela janela, bebês são jogados contra a parede ou afogados em lagoas ou morrem de dengue, situações perversas de abandono, negligência e violência, de descuido e desafeto, que nós, pais, professores, políticos, instituições, mídia, permitimos com nossas omissões, com a obediência a mitos, com a falta de tempo e de responsabilidade. Porque se um morre, fica o medo de ser o próximo.
       Citando a poesia de Débora Duarte diante de sua primeira maternidade:           
                            ...  “ Entre espanto e medo         
                                        Me irrito e enterneço ante tua dependência passiva...
                                    Te desejo

                                    Tenho medo do poder de te matar”...