quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


FELIZ NATAL
     Feliz Natal. Já fui criança. Guardo nítidas as memórias desta data. À noite, minha mãe enfeitava os quatro filhos com roupas novas, as cartinhas já tinham sido devidamente entregues ao Papai Noel da grande loja de brinquedos “Viana Leal”, e saíamos para ver as árvores de natal dentro do Rio Capiberibe. No portão da casa, minha mãe sempre parava e dizia para o meu pai ir dar uma olhada para verificar se tinha fechado todas as portas e janelas. Ficava intrigada. Se o papai Noel vinha e estava tudo fechado, não tinha chaminé, como deixava os nossos presentes. Mas não ousava perguntar, hoje eu sei, porque queria continuar a acreditar na fantasia. Meu pai voltava lá de dentro da casa e íamos pegar o ônibus.
     As árvores, que lindas! Eram muitas, muitas! Não conseguia contar quantas. As luzes das simples lâmpadas daqueles cones grandes que boiavam na água do rio calmo se multiplicavam e se multiplicavam no reflexo. As pontes exibiam seus colares de pérolas, que também passeavam pelas águas. Muitas famílias estavam por ali, gentis e sorridentes desejavam feliz natal.
     Depois de tanto êxtase, voltávamos e encontrávamos a satisfação dos nossos desejos realizada. Os presentes do Papai Noel. Ele tinha atendido a cada pedido de nós quatro. Era mágico! Que coisa boa! Sentávamos à mesa, uma pequena oração de agradecimento, e minha mãe servia a ceia. Coisas especiais, pouca coisa, era tarde, uma delícia! Terminada esta refeição especial, com o coração satisfeito de alimento, sentávamos à sala, meu pai numa poltrona, minha irmã grande ao piano, minha mãe arranhava o violino e nós três menores, sentadinhos pelo chão, entoávamos as canções de natal.
     Feliz Natal para todas as crianças. Aquelas que têm uma família que cumpre sua função, mãe sendo mãe, pai sendo pai.
     Feliz Natal para as outras crianças. As que hoje estão servindo de objeto sexual de um adulto perverso que rasgou seu título de parentesco. Desejo de todo o coração que estas outras crianças, as pequenas e as que já cresceram que tenham esperança na modificação do seu sofrimento, que acreditem que podem um dia minorar e melhor administrar sua dor onipresente.  

Ana Maria Brayner Iencarelli. 24 de dezembro de 2014.       

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A mini-série "CONSELHO TUTELAR", produção da TV Record, que está sendo exibida esta semana, todas as noites, às 23.30hs, retrata fielmente o sofrimento de crianças e adolescentes vítimas de todo tipo de violência. Os estragos que esta violência endêmica no nosso país deixam até a vida adulta, como no caso do conselheiro abusado sexualmente na infância. Uma tatuagem na alma. Importante ressaltar que a dinâmica  de personagens de um Conselho Tutelar e de Operadores de Justiça, ali encenada na obra de ficção inspirada em casos reais, sob exímia direção, torna cada episódio verdadeiro. Os sentimentos, emoções, friezas, envolvimentos, dores, maturidade, vaidade, narcisismo, interesses políticos pessoais, a vulnerabilidade, o poder poderoso, mas, principalmente, a mistura de medo e raiva, mistura paralizante que permanece no âmago da alma destas crianças, mesmo quando se tornam adultos.
A mídia deveria dedicar mais espaço para estas questões de desproteção de crianças e adolescentes. Feias, são. Se são horríveis de ver, temos que imaginar que são ainda piores de serem vividas por um bebê, por uma criança, por um adolescente. Elas precisam deixar de ser tabu.    

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

ALIENAÇÃO PARENTAL MISÓGINA PRÓ-PEDOFILIA

          “Cada dia chegam mais e mais processos de abuso sexual, é um monte, mas, graças a Deus, nenhum é abuso, é tudo Alienação Parental”.  Juíza de Vara de Família.
          “Já sei tudo! É Alienação Parental, você está impedindo a relação do filho com o pai, o pai é ótimo, e se não aceitar isso que vou escrever, mando tirar a guarda de você e mando dar para o pai!” Psicóloga Judicial na primeira entrevista, “falando” para uma mãe, quando fez uma acareação de criança e pai suspeito de abuso sexual.
          “É um caso de Alienação Parental gravíssima, mesmo que não haja nenhuma evidência dos comportamentos alienadores típicos, e deve ter a guarda invertida e a mãe afastada da criança, seguindo o que avaliou e afirmou a renomada psicóloga judicial”. Promotor Público de Vara de Família, referindo-se a caso de abuso sexual continuado, perpetrado pelo pai.
          “Quero que venha buscar sua filha que está sob nossa proteção” e “a senhora não apareceu, logo se vê que é uma mãe negligente e está praticando Alienação Parental”. Juiz de Vara de Família, em caso de abuso com lesão em menina de 02 anos.
          “As atividades sexuais entre adultos e crianças são parte do repertório natural da atividade humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e a faz ansiar por experiências sexuais que redundarão num aumento da procriação” ... “o incesto não é danoso para as crianças, mas é, antes, o pensamento que o torna lesivo”. Richard Gardner, psiquiatra que fazia trabalho voluntário na Universidade de Colúmbia, não tinha o título de Professor, mas aproveitou o prestígio desta Instituição. Gardner é o autor do Conceito de Alienação Parental.
          Poderia listar por páginas e páginas os fatos que ocorrem hoje com as crianças vítimas de violência sexual e suas mães incautas que vão buscar a Lei da Propaganda anual do Denuncismo. Mas, é tudo Alienação Parental. As decantadas estimativas, mesmo não conseguindo saber como e onde foram feitas e que métodos foram utilizados, variam entre 90%, os mais modestos, 95%, o próprio Gardner, e 100% dos casos de abuso sexual, indubitavelmente, são mentiras e falsas acusações todas patrocinadas pela pretendida Alienação Parental. Assim afirmam, peremptoriamente, os Operadores de Justiça.
          Vale ressaltar que o conceito de Alienação Parental carece de cientificidade. Conceito subjetivo, fluido, interpretativo, desconsidera o processo emocional de término de um projeto de vida a dois. É evidente que ocorrem difamações e obstruções de convívio entre um genitor e o filho/filha, protagonizado pelo outro genitor. No entanto, sabe-se que a unanimidade absoluta é, no mínimo, não inteligente, ou está a serviço de outra meta. O holocausto, por exemplo. O luto pelo término de uma relação afetiva que inclui filhos é um processo de tristeza, de perda, de mudanças, de readaptação, de ressentimento por vezes, de raiva, de frustração, de alívio, de questionamento e autoavaliação, de transformação, que, como todo luto, dura entre um e dois anos. Hoje, este processo de luto, que na sua elaboração é saudável, foi reduzido tão somente à Alienação Parental, com tem um único gênero, só mãe denigre a figura do pai. Aos olhos da Justiça, nenhum pai pronuncia mais aquela frase, “a vagabunda da sua mãe” ou “não vou sustentar macho da sua mãe”.  
          Desconsiderar o sofrimento da criança que é submetida ao abuso sexual intrafamiliar incestuoso é a evidência de não ter nenhuma experiência com a tatuagem na alma marcada por estas destruidoras vivências sexuais precoces e perversas. A interdição ao incesto é o marco zero na evolução epistemológica do homem e no seu processo de humanização. É o diferencial entre humanos e animais. O abuso sexual, em suas diversas formas, todas perversas, abrange comportamentos sub-animais. E, irresponsavelmente, achar que a atividade sexual entre um adulto e uma criança, é benéfica para a preservação da espécie humana, deixa de fora a atividade sexual entre um adulto/pai e uma criança/filho, menino, onde a procriação está, definitivamente, excluída. Os pares homoafetivos não procriam! Onde se encaixaria, por exemplo, o benefício para a humanidade da atividade de carícias sexuais e de penetração anal de um pai em um filho, menino, de 03 anos? Aliás, é numeroso este grupo. Um em cada seis meninos foi ou é abusado sexualmente.
          Não sei qual é o motivo do autor do conceito da Alienação Parental, Gardner, além de saber que havia a motivação da carreira profissional em defesa de homens acusados de violência física e sexual contra mulheres e crianças. Sua postura deixa clara a sua crença no patriarcado, mulher e crianças como objetos possuídos pelo macho alfa. E, a mulher que contraria esta configuração, é, imediatamente, psiquiatrizada como “histérica” (sic), vingativa, emocionalmente fraca. A criança, por sua vez, é idiotizada por ter virado um papagaio que repete, obedientemente, o que a mãe mandou falar sob o dito ”falso abuso”, ou uma fantasiosa, excessivamente, sexualizada. Isto tudo afirmado sem a menor necessidade de consistência teórica, comprovação objetiva, ou relação com a realidade dos comportamentos de mãe e de criança.  Ignorar a expressão de angústia da impotência e o desenvolvimento infantil em seus eixos de crescimento, aqui implicados o da linguagem e o cognitivo, é um Abuso de Instituições que se pretendem protetivas, mas praticam, abertamente, a terapia da ameaça.
          O Princípio do Melhor Interesse da Criança, escrito em vários artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente, E.C.A., que deveria nortear os processos de abuso sexual, foi transformado em melhor interesse do adulto pai/abusador: “já pensou o prejuízo do pai se for mentira?”. Mas o Promotor não pensa: “já pensou o que vai ser desta criança se for verdade?” A voz da criança é desqualificada: à pequena é atribuída uma capacidade cognitiva descabida ou é portadora de imensa imaginação sexualizada, à grande, acusação de conluio com a mãe ou é mentirosa. A revelação foi desconstruída, não vale mais nada aos ouvidos dos Operadores de Justiça. Crianças são “avaliadas” em acareação com o suspeito, uma crueldade, sem a escuta competente, sem Salas de D.S.D. com especialista e registro audiovisual, sem protocolos padronizados, enfim, laudos inconsistentes são produzidos utilizando-se apenas silogismos.
          Bernardo, que se tornou nome de lei pós-morte, é o exemplo incontestável da desvalorização da criança. Falou, falou, falou. Pediu para parar para o pai, pediu ajuda às pessoas de sua referência, às Instituições Competentes, com seus 11 anos buscou pessoalmente os Operadores de Justiça. Foi sendo morto por todos, todos os dias, aos olhos e ouvidos de todos, cegos e surdos, até ser assassinado pelos familiares que deveriam garantir a preservação e a qualidade de sua vida. Não me admiraria se atribuíssem à mãe morta deste menino, a Síndrome da Alienação Parental. A família nem sempre é um lugar seguro. Só quando romanciada. A violência intrafamiliar já matou a Isabela, a Joana, e tantas outras crianças, tornou paraplégica a Maria da Penha, e, certamente, tatuou a alma de suas filhas. Para que serve ter nome de lei ou ter lei com nome de vítima que não foi ouvida, que não foi considerada em vida?
          O retrocesso atual nesta matéria traz a misoginia à tona. Talvez as mulheres tenham passado a incomodar muito, a não mais se submeter como na idade medieval. Por outro lado, a sedução masculina, a manipulação psicopata e a sede de poder fálico instituíram uma moda de mulheres atacarem outras mulheres na defesa de homens violentos e violadores. Inverter uma acusação de abuso sexual para alienação imobiliza a mãe mumificando-a. “Resolve” para baixo do tapete, fornecendo a quem usou a caneta sentencial a sensação de enorme poder. E o criminoso vira vítima, e passa a ser protegido. “Coitadinho”. Afinal, hoje o pai tem papel mais importante do que a mãe, sem a presença dele, pela cartilha em vigor, uma criança nem se cria. A mulher é a culpada, frustrada, invejosa, encenadora, maluca. Ninguém se dispõe a se colocar no lugar desta mãe, a ter empatia, para dimensionar o que ela sente ao entregar, por decisões judiciais de visitas, sob o acordo do “vai ser pior”, o filho/filha para o pai se servir dele/dela como escravo sexual. São crianças, na sua grande maioria de menos de 06 anos. Para esta mãe, não cabe uma agonia nesta situação de extrema impotência e total engessamento? Obrigada a baixar a cabeça e calar porque agora o pai é muito, muito importante, mesmo quando viola os direitos fundamentais de sobrevivência psíquica e comete crime contra a integridade do filho/filha. O relato da criança, e, até mesmo Exame de Corpo de Delito, com conjunção carnal afirmativa, rara situação que não ultrapassa 5% do total de casos, prova que seria irrefutável, são desqualificados por silogismos. Nada detém a certeza dos 90%, 95% ou 100% de Alienação Parental. Enquanto isso, o Abuso Sexual zerou. Só existe no Rio Grande do Sul que possui salas de D.S.D. em todas as Comarcas, com especialistas com competência, e na imaginação das mulheres “histéricas”.            
          Quando o Operador de Justiça foi questionado pelo outro setor, ainda há pessoas de boa vontade, que buscava proteção para aquela menina e sua mãe em abrigos sucessivos pela perseguição real do pai, ele, o Operador, se justificou dizendo que recebeu a informação de que esta mãe era doente mental, causava problemas. Aliás, o problema é que, enquanto a mãe ia para o trabalho, a menina, 02 anos, era colocada de castigo do lado de fora da casa. Esta queixa da mãe foi averiguada apenas pelo telefonema ao abrigo, que negou os maus tratos à criança, e se defendeu respondendo que a mãe era “maluca”. A resposta foi acolhida de imediato, o pai foi chamado e a ele foi entregue a menina, por ele várias vezes estuprada, que já havia apresentado, entre outras coisas, dilaceração da parede reto-vaginal, reparada em cirurgia. Quando a mãe finalmente descobriu o que tinha acontecido e chegou, bastante tarde, foi acusada de negligência e criminalizada pela prática de Alienação Parental. Ela é que estava acusando injustamente o pai, segundo o Operador.
          Foi decretado que o abuso sexual já acabou. Para que perder tempo com um crime às escuras, sem provas, depender do discurso infantil? O que tem sido negado é que não provado, não é não ocorrido. Então, inconsequentemente, se resolve uma questão que atormenta e horroriza a todos por mostrar uma face monstruosa do homem. Aterroriza em especial, aqueles que devem decidir o destino de uma criança cuja mãe, tentando protegê-la, apresenta uma queixa de abuso sexual incestuoso. Melhor é acreditar que ela vai se esquecer disso, que, como prega Gardner, o pai da Alienação Parental, não causa danos a ela, ao contrário, faz bem a ela, que o abusador, um portador de uma perversão compulsiva, vai parar, milagrosamente, com esta atividade sexual com seu filho/filha, que, finalmente, o pai é legal e a mãe é que é a bruxa. É ela, e só ela, que detém o dolo. Transformando o abuso sexual em alienação parental, que prescinde de prova e é patrocinada por uma interpretação subjetiva, desaparecem por encanto todos os horrores do homem. Só a criança abusada, que vai continuar a sofrer a tortura do campo de concentração sexual.
          A Justiça está surda. Nós todos também. Matamos cada dia muitas crianças abusadas. Elas morrem na tortura do abuso continuado, hoje sob o manto de sentenças contra suas mães, elas morrem na humilhação do descrédito em suas palavras. Com o amparo ao incesto como está acontecendo, a transgressão reina, não há e não haverá civilidade.
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Crianças e Adolescentes.

Artigo publicado no Portal do Instituto de Cultura e Cidadania A Voz do Cidadão em 21 de outubro de 2014.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O ABUSO SEXUAL ACABOU!
CHEGOU A VEZ DA ALIENAÇÃO PARENTAL.


          É incrível a mágica que vem sendo efetuada para banir o crime de abuso sexual contra crianças e adolescentes. O curioso é que continua existindo em, praticamente, um só Estado da Federação: o Rio Grande do Sul. Será que chegaremos à conclusão que só os gaúchos abusam sexualmente de crianças e adolescentes? Em defesa dos gaúchos, temos a constatação que só no Rio Grande do Sul os Operadores de Justiça contam com as Salas de Depoimento Sem Dano, D.S.D., com profissionais de Psicologia qualitativamente treinados para obter informação do abuso junto à criança, produzindo assim, laudos com compromisso teórico e coerência com a realidade. Cuidado de qualidade. Em todas as Comarcas do Estado foram instaladas, e estão funcionando, estas salas especializadas na apuração de denúncias de abuso sexual pela voz da criança, que é, devida e competentemente, ouvida e creditada, sendo ouvida e vista pelo Juiz, e Promotor Público da Vara da Criança. Este procedimento proporciona visão direta, e única para que seja evitada a revitimização da criança em repetidas avaliações cheias de interpretações subjetivas, muitas vezes, equivocadas de cada psicóloga que se intitula “Perita”. O Silogismo é, amplamente, usado para escapar do Backlash.. Então, tudo pode. É possível, facilmente, reconhecer a semelhança do clássico exemplo de Silogismo: após as duas premissas, conclui-se que uma constelação de estrelas é um animal grande que vive nas florestas. Ninguém mais afirma a existência de indícios do abuso, até mesmo quando a criança relata com detalhes as práticas do abuso. É de praxe hoje que isto seja “interpretado” como “construção cognitiva”, desconsiderando, completamente, a fase do desenvolvimento cognitivo e do desenvolvimento linguístico em que se encontra a criança, que ainda nem alcançou a etapa requerida para fazer uma construção cognitiva desta ordem. Não há compromisso com o fundamento teórico de uma afirmação. E, se a criança fez esta dita "construção cognitiva”, foi sua mãe que é detentora inconteste de S.A.P., a Síndrome da Alienação Parental. A pérola da vez, parece que os Operadores de Justiça estão encantados por esta “patologia” que já foi criminalizada. Agora, há que se falsificar as emoções, os sentimentos, para fazer parecer que todos ao final de uma relação conjugal, são fofos com o outro, não importando o que aconteceu e o que foi provocado. Não há mais espaço para o filtro, regulador do enterro dos ossos de uma relação, o saudável tempo de elaboração e reconstrução dos ex-cônjuges. Assim, uma vez acusada, nem importa se a mãe preenche ou não os itens elencados por Juristas especializados em Alienação Parental. O luto pela relação que acaba não realizado ou mal elaborado, motivo-motor da entrada na prática da Alienação Parental, é apontado de maneira justa, consequente e responsável pela Desembargadora Maria Berenice Dias, autora de vários títulos, entre eles, “Incesto e Alienação Parental”. Este luto, precisaria constar. Por outro lado, a Desembargadora portuguesa Clara Sottomayor, autora de vários títulos, não concorda com a criminalização da Alienação Parental por entender que o luto nos fins dos relacionamentos tem o mesmo tempo para, naturalmente, passar, quando da reorganização da vida dos ex-cônjuges. É um processo com um tempo semelhante ao luto por perda pela morte. Rolf Madaleno, em “Alienação Parental”, listou vários indícios da presença da S.A.P., Síndrome da Alienação Parental, chegando à filigrana do “olhar alienante da mãe”. Interessante que as referências são sempre no feminino. Parece que temos que aprender que só mãe, “mordida” por ter sido “abandonada”, parte para a S.A.P. Estaria eu alucinando machismo/feminismo? Os sutiãs já foram queimados há tantos anos... O que vemos na prática dos Processos Judiciais é que não há nenhuma preocupação em preencher estes itens, em provar a acusação que está sendo feita à mãe, já taxada irremediavelmente de alienadora. As Publicações de Jurisprudência nas Varas de Família de todo o território nacional, realizadas pelo IBDFAM, Instituto Brasileiro de Direito de Família, exibem pelo menos uma argumentação jurídica de Alienação Parental a cada 03 dias, e nenhuma jurisprudência de crime de abuso sexual. Nenhum julgamento por abuso sexual. Estas publicações respeitam o sigilo jurídico, portanto...
          O abuso sexual é um crime às escuras: não há provas. É a palavra de um adulto, o abusador, e a palavra de uma criança, a vítima. Apenas 5 % dos casos incluem a penetração. Este índice é antigo porque estudos continuados nesta área são inexistentes. Além disso, com a impunidade reinante e as autorizações oficializadas pela inversão de culpa e transformação do abuso em alienação, evidente que este número deve ser hoje de 10, 15 ou 20%, ou mais, de penetração. Imersos na Cultura de Transgressão estamos autorizando os abusadores sexuais a expandirem, sem medo, suas práticas sexuais perversas com as crianças.  A criança tem o título de “Sujeito de Direito”, mas sua palavra é desqualificada e derrubada por avaliações plenas de psicologismos rasos e Silogismos que tudo banalizam. É redundante dizer que as revelações da criança são invertidas para servir de “provas” da prática de Alienação Parental por parte da mãe.
          Vale ressaltar que abusadores tem espírito corporativo. Pedófilos de internet, por exemplo, se mobilizam financeiramente quando um deles “cai” para pagar grandes advogados, pagar a prática de backlash, e pagar a destruição de provas. Além das estratégicas influências que também são acionadas, são muitas as articulações e poderes em troca de favores, tudo para proteger e defender o “grupo”, por razões óbvias. O lobby é muito eficiente.
         Assim, foi banido o horrendo, complexo e psiquicamente letal abuso sexual, crime hediondo, de marcas permanentes. Esta tatuagem na alma de meninos e meninas, o crime está sendo substituído, precipitadamente, pela acusação de Alienação Parental, um manto de blindagem para os abusadores incestuosos, e a mumificação de mães protetoras. Mariza Silveira Alberton, Coordenadora do Movimento pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/RS, da Pastoral do Menor/CNBB, contribui para a qualidade da Proteção da Criança com uma lista de Indicadores de Famílias Incestogênicas e Indicadores de Abuso Sexual em Crianças e Adolescentes, que poderiam se tornar um instrumento confiável e consistente nas avaliações das crianças que, inadvertidamente, revelaram o abuso sexual incestuoso. Poderia. Mas, fora do Rio Grande do Sul, não há nenhuma preocupação de verificação destes indicadores de respostas objetivas, que nem constam das avaliações psicológicas periciais, que não seguem nenhum método de investigação psicológica padronizado. Não há Protocolo. Tudo é livre, pode ser tudo. Conceitos teóricos são usados equivocadamente. Erros grotescos são escritos. Baseiam seus laudos em filmes comerciais de grande circuito! Todo laudo faz referência a um deles. É de praxe.  Livros? Formação técnico-teórica de qualidade? Experiência com tratamento psicológico de crianças? Operadores de Justiça pensam tão somente que sendo psicóloga sabe tudo de criança, “a psicóloga disse”, então se torna verdade. Outros classificam como “tudo bobagem”, essas “falações” do E.C.A., e não dão ouvidos. Isso à luz do Princípio do Melhor Interesse da Criança.
          Temos conhecimento e experiência no tratamento psicanalítico de crianças cuja mãe, por vingança afetiva, fez uma falsa acusação de abuso sexual contra o pai. A Alienação Parental é danosa por um bom tempo para a criança, até que ela tenha atingido o desenvolvimento cognitivo que lhe permita ter juízo de valor e raciocine com todas as variáveis de um dado problema. Na dinâmica da família, encontramos estes escondidos, segredos, distorções, invejas, juízos de valor de todos os tipos. Mas, ao alcançar esta maturidade cognitiva, os fatos podem ser apurados junto aos mais velhos, ou entre os familiares extensivos e aqueles amigos quase família. No abuso, é diferente. O segredo pertence tão somente aos dois envolvidos: abusador/pai, abusado/filho/a.
          Estupro a vulnerável? Qual vulnerável? Garantia de Direito da Criança? As várias faces do medo e das ameaças, “se falar para alguém vou matar sua mãe”, não são consideradas.  Mães que denunciaram têm suas crianças mandadas para abrigos, Guardas são invertidas em sequência, indícios e evidências são desprezados em detrimento do discurso manipulador do abusador que toma o lugar de “pobre vítima”. Nada que impeça a “garantida convivência” paterna, fruto de um conceito psicológico raso, “pai é pai”. Ignora-se que pai não é um título, um papel. Ainda mais em tempos que é cada vez mais estendido este título. Temos filhos com dois pais ou duas mães. Poucos profissionais que atuam nesta área parecem ter conhecimento que Função-pai não mais coloca o conceito biológico em si mesmo: função contida na socioafetividade.
          Meninas e meninos com vaginas e ânus dilacerados, parte daquele pequeno número em que existe prova do abuso como constatação por Exame de Corpo de Delito, são entregues aos seus pais abusadores. Sob o manto de decisões que condenam mães que ousaram buscar proteção para uma filha, um filho, estamos condenando crianças a permanecerem como escravos sexual de perversos. É sempre crime de Alienação Parental. O pai, mesmo abusador é considerado indispensável para o desenvolvimento da criança. Despreza-se o conceito de função pai, o mal causado pelo ensino da transgressão perversa do abuso, e a destruição da mente pela tortura da continuada prática de uma sexualidade pervertida de um pai que comete o crime de incesto em associação com a criança. Cidadania? Como? É grave, nefasta e sombria a perspectiva de uma Sociedade que está formando um enorme contingente de Transgressores, Delinquentes e Criminosos. Somos todos responsáveis por isto. Abuso Sexual? Só no Rio Grande do Sul onde o respeito pela criança é efetivo, consequente e responsável.


Ana Maria Brayner Iencarelli. Psicanalista de Criança e Adolescente.    Agosto 2014.
Publicado no Portal do Instituto de Cidadania A Voz do Cidadão em 08/08/2014.

terça-feira, 6 de maio de 2014

BERNARDOS, O E.C.A., A CARTA MAGNA, TODOS NÓS.



BERNARDOS, O E.C.A., A CARTA MAGNA, TODOS NÓS.

     Estamos no tempo midiático da perplexidade e da indignação diante dos fatos que serraram a vida deste menino de 11 anos. Ele, mesmo muito criança ainda para dimensionar o horror de mentes perversas, percorreu todos os lugares, todas as promessas de proteção à integridade física, psicológica e moral de uma criança. Todas, portas enganosas e frustrantes que o devolviam para o sofrimento cotidiano. Todos sabiam. Mas, ninguém foi capaz de ter empatia e dar crédito a seu repetido pedido de sobrevivência.
     Para Bernardo, a fila andou, chegou a sua vez, antes já houve a Joana, também abandonada pela inversão de guarda, antes a Isabela jogada pela janela, e antes dela outros que minha memória rejeita guardar, mas que a lembrança do horror causado, nunca me deixou. Crime de lesa criança. Crime de lesa a Pátria do amanhã. 
     Escrevemos, lindamente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 3º, art.4º, art.5º, art.7º, e na Constituição art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela integridade da criança e do adolescente e pela garantia dos direitos fundamentais. Se, de novo retomamos este tema, é porque a Lei continua sendo pouco cumprida, e a sociedade só se horroriza quando uma atrocidade chega à mídia, mas trata como fato isolado, logo esquecendo. Nosso judiaciário falha monotonamente. São as crianças que são punidas, que estão cada vez mais isoladas em seu sofrimento perpetrado por adultos perversos. Não há resiliência psicológica possível para uma criança viver como um saco de pancada ou um escravo sexual de um adulto perverso. É a prática da tortura doméstica mantida pelo medo, que acontece nos porões dos lares, executada sob o manto da imagem de família normal.
     A Via-Crúcis de Bernardo é emblemática para constatarmos o enorme fosso entre a Letra da Lei e a realidade do sofrimento de crianças e adolescentes que necessitam de proteção contra ataques dos adultos de quem dependem. As evidências, no caso de Bernardo, são inegáveis, mas de nada adiantaram. Protegendo quem não lhe protegia, ele, com reserva e guardando uma parte do segredo, buscou uma solução para seu sofrimento no espaço intrafamiliar, no nuclear e no extensivo, no social junto ao casal substituto de figuras parentais, no Conselho Tutelar, até mesmo por conta própria, indo sozinho à Promotoria de Direitos de Crianças e Adolescentes, na Audiência da Vara da Infância e Adolescência. Não foi escutado. Foi neste momento que foi acolhido, ingenuamente, o compromisso do seu pai, – título --, de melhorar as relações afetivas, uma segunda chance, compromisso creditado pelo Juiz, que determinou 90 dias para uma reavaliação desta tão evidente situação inafetiva. Antes de 60 dias, no dia 04 de abril, o caso da tal “negligência afetiva” foi resolvido.
     Não há por que conceituar como “negligência afetiva”, ou vontade de “ter atenção e carinho”, esta grave situação de descuidado e de irresponsabilidade civil a um vulnerável. A violência explícita na atitude proativa continuada de exclusão do núcleo familiar torna-se sinônimo de dolo. Gostaria muito que alguém se interessasse pelo estudo do feminino contido no caso. O caso em pauta traz duas mulheres, uma mãe de meio-irmã desta criança, portanto exercendo o papel de mãe, título, não a função materna, equívoco comum cometido por operadores de justiça, outra assistente social por profissão que vende o serviço de matar uma criança, parece que para proteger um homem, o pai. Mulheres que se unem para matar uma criança? Acredito que é uma evidência cruel da inexistência do instinto materno das mulheres, mito falso. Venho afirmando que esta falsa crença, instinto materno nas mulheres, não é compulsório. A boa qualidade da maternidade é alimentada pelo cuidado e responsabilidade afetiva que foram recebidos enquanto esteve na posição de filha, numa cadeia alimentar de afeto. Há que se entender também que a função de mãe, isto que estamos definindo nesta cadeia, é exercida também em substituição, ou seja, não é obrigatório a consanguinidade. Adotamos, afetivamente, todos os filhos, os de sangue também. Assim, tanto mãe quanto pai, podem ser substituídos saudavelmente.    
     No entanto, em nada surpreenderia se alguma leitura pseudopsicológica dos fatos aparecesse contemplando a pérola da moda jurídica, a alienação parental, atribuída à mãe desta criança, morta há 04 anos. Quem sabe, até se matou como forma de uma alienação parental. Não me refiro aqui à postura teórica séria e consequente da Desembargadora Maria Berenice Dias. Mas, absurdos são ditos e praticados sem fundamentos teóricos ou clínicos, acusando crianças e mães que denunciam. Atualmente, é ela, a alienação, que abriga e perverte a quase totalidade dos desvios de comportamento praticados por pais contra seus filhos invertendo a culpa e jogando-a em quem tenta proteger a criança. 
     Conselhos Tutelares, segundo a Secretaria de Direitos Humanos, faltam 632 para atendimento regular. Os que existem, sofrem de faltas de estrutura física, de estrutura instrumental e de estrutura de formação de pessoal. Prova da ausência de cuidado público. Denúncia anônima, como é mote de campanha, não existe, só com nome completo, endereço e o devido C.P.F. Inexperientes em lidar com a excelente performance verbal dos psicopatas, Psicólogos Judiciais e Assistentes Sociais não ousam afirmações que evidenciem os abusos físicos, sexuais, e psicológicos, que apontem um adulto praticante. O medo dos processos subsequentes, o movimento de Backlash contra técnicos especialistas, traz o silêncio do segredo, presente nestes casos intrafamiliares de desrespeito aos direitos fundamentais de vulneráveis. É melhor desacreditar da criança... E a conivência se faz. Há ausência de Políticas Públicas. Mas, criança não paga impostos e não vota. 
     Recentemente, fomos brindados por texto primoroso de Luiz Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça, sobre o julgamento do abandono afetivo, mostrando as duas posições sobre a transformação do afeto em cobrança pecuniária. Em 2005, e em recurso em 2009, uma Turma entendeu que o abandono e o descumprimento dos deveres de sustento, levam à destituição do poder familiar, o que foi entendido como uma contramão de uma possibilidade de aproximação entre pai e filho, negando a indenização. Mas, em 2012, outra Turma, contrariou esta posição e acolheu a possibilidade de indenização de abandono afetivo, tese baseada em fundamentos psicanalíticos para atribuir compensação financeira ao sofrimento imposto. O autor salienta a questão da intervenção do Estado naquilo que a Constituição garante, a intimidade e a vida privada, em nítida demonstração da liquidificação de privado e público. (“modernidade líquida”, Bauman). O que significou para os Operadores de Justiça no caso de Bernardo o termo continuado “negligência afetiva”? Sabem que ela mata? Mas, parece que a concretude dos vários pedidos de ajuda, (provas?), não convence tanto quanto complexas abstrações pseudo-psicanalíticas.
     Se Francisco pede perdão pelos abusos cometidos por padres ao longo da nossa história, encontramos um Juiz que não reconhece seu erro, dizendo que acredita sempre que pais não maltratam filhos. Como acreditar na bondade humana generalizada quando se está na posição de arbitrar sobre a proteção de vulneráveis? Foto de família feliz? A Justiça opta, cegamente, cada vez mais, pela idealização da convivência entre pais e filhos, custe o que custar, como a lei, recentemente sancionada, de visitação a pais apenados. Já havia a autorização per caso para este tipo de visitação funcionando muito bem, o que embaralha o propósito do aparecimento de mais uma lei. Gostaria que me respondessem sobre o grande bem do convívio com um pai, por exemplo, que matou a mãe a pancadas ou facadas na frente da criança, se a exceção da lei é apenas o dolo contra a criança. Visita em presídio, nos nossos presídios, é saudável para uma criança? Tirar a roupa para a revista é adequado? Mas, parece que todo homem é essencialmente bom. É a crença vigente, quase uma religião. Afinal, dos conceitos psicanalíticos incompletos e superficializados, guardou-se apenas que pai é pai. Serão confeccionadas salinhas com borboletas e passarinhos decorando paredes coloridas, que, silenciosamente, testemunharão os constrangimentos e os medos destes pequenos visitantes de “bons pais” em penitenciárias. Enquanto isso, as Salas de Depoimento Sem Dano que permitem a revelação de abusos cometidos em estado de segurança para a criança, diminuindo os enormes prejuízos causados pela perversão, estas, são raríssimas e de difícil aceite. Cabe ressaltar o trabalho de qualidade no uso da Sala de D. S. D., do Juiz José Antônio Daltoé Cezar, hoje Desembargador, postura impecável ao reconhecer com respeito e crédito a ajuda da criança no processo em que ela é vítima.
    Os perversos, difícil diagnóstico de psicopatia, até mesmo para profissionais da área que não sejam gabaritados, são pessoas acima de qualquer suspeita: afáveis, simpáticos, envolventes, manipuladores. Não tem um olho na testa ou a marca dos três algarismos seis em ninho embaixo do cabelo. A patologia é caracterizada, entre outros fatores, pela incapacidade de sentir culpa pelas maldades que pratica contra o outro. Há uma ausência da capacidade de empatia. Estão entre nós. Todos nós conhecemos, e nos relacionamos com pedófilos, necrófilos, espancadores de crianças, mulheres e idosos, violentos verbais domésticos. Compulsivos em suas específicas perversões, amantes de um pequeno poder secreto, por vezes conseguem alcançar um grande poder, em áreas como a monetária, a política ou a profissional. A fragilidade dos Operadores de Justiça diante destes psicopatas que escolhem a criança e o adolescente como alvo de sua perversão, é quase caricata.  
    A pífia campanha de combate à violência contra a criança, incentivando apenas o denuncismo, é enganosa na garantia do anonimato, aparece uma vez por ano no pré-carnaval. A ausência do cuidado com o acolhimento adequado e qualificado com estas vítimas, e o necessário tratamento psicológico especializado, a precária formação dos Operadores de Justiça e técnicos judiciais, a conivência social pela omissão ou pela impotência, são os indicadores sombrios para uma sociedade futura, repleta de pessoas sequeladas na infância, que foram tatuadas na alma. As crianças quando não são as vítimas, são testemunhas desta prática e da sua impunidade. Não conseguirão apreender a contento o código de civilidade. Não alcançarão o exercício da cidadania. A inexistência de Políticas Públicas, real exercício da proteção, permanentes, consistentes e consequentes é a negligência pública que contraria, frontalmente, o melhor interesse da criança. A omissão patrocina a conivência com a violência contra a criança.
     Como anunciado no artigo “Imagina na Copa”, por ocasião da Copa das Confederações, a ineficácia e a ausência de programa de educação, conscientização, acolhimento, fiscalização e acolhimento pelos órgãos competentes. Enfim, a responsabilidade da proteção que cabe à família, à sociedade e ao Estado, o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, permanece em seu estado de inércia. A reportagem coordenada por Carolina Benevides e colaboradores, O Globo, mostra pelo trabalho de campo no entorno dos estádios e nos principais pontos turísticos das cidades que terão jogos da Copa do Mundo de Futebol, que aliciadores são vistos trabalhando a olho nu. Promessas de ganhos entre R$10.000,00 e R$15.000,00 por trabalhos sexuais prestados aos estrangeiros, por meninos e meninas de 10 a 17 anos. Atestado da nossa miséria sócio-econômica e psicológica. Por que só repórteres enxergam o que está tão visível? Contra essa organização criminosa, excepcionalmente, será lançada uma segunda vez este ano aquela campanha, cartazes em aeroportos, hotéis, e publicidade em emissoras de televisão, que objetiva o denuncismo. A única coisa que sairá do papel e das reuniões. Após a denúncia, nada. Fora a possibilidade de processo contra quem denuncia. Impotência. Há um abismo intransponível entre a Lei escrita e o sofrimento da criança pelo abandono, negligência, abuso e exploração sexual, na família, no social e no judicial. Somos uma sociedade cenográfica. Os abusos contra crianças e adolescentes são uma sombra social.   
     São muitos os culpados. A responsabilidade com nossos pequenos é de todos. Muitos são culpados com uma dose de dolo por omissão egoísta. No caso de Bernardo, os seus executores detém o dolo, mesmo que sob os auspícios de todos os que tiveram a possibilidade de salvá-lo, numa autêntica e irrefutável omissão de socorro.
     Finalmente ele chegou à solução de suas dores, por todos conhecidas. Na falta do cuidado e da responsabilidade, a Proteção e a Paz foram a ele impostas. Como aconteceu, anteriormente, com outras crianças, e, por este estado de coisas, acontecerá com outras, foi a Morte que trouxe a proteção para Bernardo. Foi a Morte que falou a verdade de Bernardo. A Morte foi sua única chance. Sua mãe foi poupada desta tragédia, diferente de tantas outras mães condenadas ao choro perpétuo. Com ele, morremos todos em dignidade e cidadania.   Ana Maria Iencarelli.

Psicanalista de Crianças e Adolescentes.    <anaiencarelli@gmail.com>

sexta-feira, 14 de março de 2014

Wood Allen VS. Soon-Yi e Dylan, ainda.

          O tempo midiático já consumiu a notícia, e, o conteúdo em questão, já se alojou em seu reino blindado do eterno e indesvendável segredo. Voltamos a associar, automaticamente, o nome aos seus geniais filmes.
          O título do artigo publicado na Revista de Domingo do O Globo, de 16 de fevereiro de 2014, é “Wood Allen VS. Mia Farrow, ainda”.

          Lamentável. Será que se lhe pedissem para escrever sobre a relação entre a inversão de sentido da rotação do astro sol e os desastres climáticos, você escreveria? Ou sobre a física quântica no nosso cotidiano, diria o que “acredita” ou “não acredita”? O comportamento humano e a psicopatologia não são apenas o que os olhos veem. Os pedófilos não exibem a sua perversão na testa em letras de neon intermitente. Posso lhe assegurar que você conhece vários pedófilos, quem sabe até algum necrófilo, enfim, perversos ocultos. Todos, conhecemos. São, como psicopatas que o são, médicos, advogados, professores, padres, pastores, prefeitos, atores, cantores, cineastas, técnicos desportistas, comunicadores, empresários, policiais, políticos, militares, dentistas, etc., etc., etc., muitos, de muito sucesso profissional, alguns ditos gênios no que fazem. São sedutores e manipuladores, ou seja, em geral inteligentes, são simpáticos, sociáveis, agradáveis, por vezes, engraçados, encantadores, porque é, exatamente assim, que escondem sua perversão. Pais e padrastos perfazem 85% dos casos de abuso sexual em crianças e adolescentes. O incesto é ingrediente importante para esta perversão.
          O prazer do abusador não é sexual, é o prazer secreto de enganar a todos. Enganar a você, a mim, a todos, até a criança de quem ele abusa, que é obrigada a fazer o pacto do segredo. Isto proporciona a eles uma intensa sensação narcísica de superioridade. Assim, os abusadores, gozando da proteção de sua vítima, da nossa cegueira, nosso descuidado, acumulam prestígio e respeitabilidade para se tornarem intocáveis. E, conseguem. 
          É inacreditável que ainda persista a fantasia, veiculada no artigo, de que se conhece alguém olhando nos olhos, pela sua produção, ou pelo seu comportamento social. Esta mágica de saber quem é o outro, alimenta a onipotência do pedófilo. Envolvente, driblar esta crença primária é uma atração para ele. Ninguém descobre quem ele é. Não nos cabe o julgamento pela “cara”, ou, a sentença “inocente”, baseados em aparência. Abusadores não são nunca condenados pela Justiça. O abuso sexual é um crime quase perfeito que imprime uma tatuagem na alma de meninos e meninas. É a palavra da criança desacreditada diante da palavra de um adulto “acima de qualquer suspeita”, como são vistos. Assim, fica na conta de uma tal “construção cognitiva” da criança, da alienação parental da mãe, da mentira da criança, etc. Em nenhuma destas alegações é levada em consideração a idade da criança, sua capacidade cognitiva, sua capacidade de mentir com conteúdos sexuais que ela ainda não teve acesso, os critérios de observância da alienação parental, o luto pela separação, por exemplo. Ao contrário, parte-se do princípio de que a mãe sempre ficou frustrada pela separação, negando sempre o evidente alívio que tantas vezes a separação traz. Acrescente-se que o desespero de uma mãe na procura da escuta e da proteção a um filho pequeno abusado é sempre interpretado como histeria, tornando-se prova de seu desequilíbrio, sem as devidas investigações psicológicas a este respeito. Crime às escuras cujos vestígios, nunca com materialidade, só são captados por especialistas com expertise verdadeira. Mas, raros são os que têm a coragem de afirmar ou, pelo menos, apontar os indícios, e assinar embaixo. O fenômeno do “backlash” é cada vez mais avassalador contra os técnicos, a omissão tem sido usada amplamente.
          A incapacidade de escuta da criança, ou pós-criança, que revela um abuso sexual é, totalmente, antagônica à escuta da criança consumidora ou indutora de consumo. Na letra da Lei, Sujeito de Direito, na realidade, desacreditada. Hoje, todas as crianças que quebram este pacto doentio do silêncio, são “definidas” como dominadas na infância e pela vida toda por uma poderosíssima mãe que pratica, para sempre, a consumida alienação parental. Parece até que ficam sem juízo de valor, sem critério de realidade para sempre.                                         
         O conceito de Modernidade Líquida, (Bauman), bem se aplica aqui. Impossibilitada de sentir uma responsabilidade empática pela criança numa situação de abuso, a articulista banaliza a psicopatologia, duvida de seu poder, coloca a arte acima da sociedade, das crianças, como se fossem comparáveis ou excludentes. Comportando-se como é o corrente atual, superficial e descompromissadamente, expele-se a angústia. Tem nos faltado o devido cuidado com um mecanismo de defesa usado pelo nosso ego ao se deparar com uma situação de impotência aguda, a identificação com o agressor.

Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Criança e Adolescente. Fev. 2014.


quinta-feira, 13 de março de 2014

UMA LEI NÃO MUDA UM COMPORTAMENTO
         Prova do autoritarismo que transita, silenciosamente, pelas nossas veias, as leis são sancionadas para gerar comportamentos. Esta contramão engorda nossos códigos, mas ela não traz mudança de comportamento, de crença social. Na passagem de um ano para o outro tivemos várias evidências da ineficácia de leis, tidas como pérolas de uma conquista, que, efetivamente, não se dá pela letra da lei. Um Adilson que enforcava a mulher em plena via pública, abordado por agentes policiais, que desconheciam ou desconsideravam a lei que tenta impedir agressão à mulher, se aproximaram na conduta do “deixa disso”. Uma arma foi alcançada pelo Adilson, que poderia ter matado algumas pessoas. Um ex-namorado que esfaqueou a ex-namorada, em público, na entrada de um shopping. Um ex-noivo que arrombou a vida da ex-noiva, e depois a jogou pela varanda. Ele tinha duas ocorrências do mesmo tipo, mas ainda sem o assassinato, mais do que previsto neste tipo de roteiro. Na seqüência, o prefeito abrigado pela floresta amazônica, pelo seu bando, e pela justiça em atitude, no mínimo, protelatória em relação a 70 processos de queixa de abuso sexual e exploração sexual de meninas de 09 a 15 anos.
          Temos agora o lançamento de nova campanha de denúncia de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Cartazes. O foco nas estradas. Quanto teria custado? Parece até, por um breve tempo, que nos preocupamos e cuidamos das nossas crianças. É o carnaval... E, parece que estes cartazes vão ser aproveitados para a Copa. Em que estradas serão distribuídos? Nas estradas da vida? Mais uma campanha inconsistente, não persistente e inconseqüente. Campanhas de denúncia não produzem comportamento adequado, cultura, nem tão pouco, cidadania. Longe de negar a importância da denúncia, mas sabendo o tamanho restrito e breve do denuncismo, que não traz responsabilidade pela criança. Denunciar é apenas se livrar de parte da culpa de saber, um momento de trocar um vômito social por um lapso de “cumprimento” da lei, que beira um pequeno exercício de poder sob o manto do anonimato, muitas vezes, banhado em narcisismo, - “eu fiz meu dever, agora não tenho mais nada a haver com isso”. Ninguém quer se envolver, ninguém tem responsabilidade empática.  Quem fez pela criança? O denunciante? O receptor da denúncia? Os Sistemas das várias Assistências? Qual Instituição vai se responsabilizar? O Estado? Quem irá proteger o vulnerável?
          A criança está escrita na lei como Sujeito de Direito, com voz. Com Voz. Na realidade, sua palavra é desqualificada, reduzida à mentira, mais recentemente, destituída de verdade porque conceituada como “construção cognitiva”, até mesmo quando, muito pequena, ainda não alcançou o desenvolvimento cognitivo para assim ser classificada. A criança que denuncia um abuso sexual é desacreditada. É mais fácil jogar para esta terminologia, jogar para suas fantasias, sem, sequer, se preocupar com o fato de que uma criança só fantasia em cima do que já conhece.
          O professor de economia continua a dar aulas na universidade, profissão, inclusive, formadora de opinião, enquanto a Maria da Penha que protagonizou a Lei dita de proteção à mulher, sentou para sempre na cadeira de rodas. Aliás, além das evidências midiáticas, já há estudo apontando para a não mudança da violência doméstica na vigência desta lei.
          O prefeito, emblemático na perversão, na inconsequência e impunidade, segue, sob os auspícios da justiça, afirmando que 70 mulheres e meninas mentiram. Só quando “deu no fantástico” as instituições da justiça se mexeram, e se debruçaram nos horrores das inúmeras meninas, prometendo até celeridade, o que é difícil nesta área. Talvez isto dure o tempo midiático, como acontece freqüentemente. Do alto de sua onipotência infantil, típica característica psicológica de abusadores, sem mexer um músculo do rosto frio, sorriso de Monalisa, afirma em rede nacional: “eu desafio quem conseguir uma prova contra mim”. Há 06 anos o descrédito nas meninas e a conivência com o estupro a vulnerável garantem sua impunidade.
          O depois é negligenciado. O que fazer com a criança que revela um abuso sexual intra-familiar? Muito comum é a negação da revelação por parte da mãe, assim como, na violência doméstica, o perdão pela agressão física e psicológica, atitude esperada e compreensiva, considerando-se o abandono e o medo em que são mergulhadas as vítimas. Recorrer a quem? Os processos duram anos e são quase, quase sempre inconclusivos, ninguém quer afirmar nada. Nem as pessoas envolvidas, nem as que, de alguma maneira, testemunham, nem os técnicos requisitados, nem os operadores de justiça. A criança vai seguir em sua solidão da tortura sexual que vai continuar acontecendo. Encarcerada nesta transgressão perversa, tatuada em sua alma, é possível que, como sabemos tecnicamente, venha a repetir este padrão o que seu inconsciente guarda, vindo a ser outro elo desta cadeia do abuso sexual.
           A Lei Maria da Penha, a lei do Estupro a Vulnerável, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, são avanços jurídicos, mas não são avanços humanos. Quando uma mulher, depois de recolher toda a sua coragem, chega a um balcão de denúncia e ouve da “autoridade” a pergunta se ela tem certeza do que está fazendo, porque depois não pode voltar atrás, ela, que já sofreu várias vezes agressões até maiores, aposta naquela aliança psicológica, de difícil compreensão, de que ele vai mudar, e recua. Assim também, o conceito de estupro a vulnerável, juridicamente correto, não tem ressonância para a grande maioria, não houve sangue, não houve rompimento, nem houve penetração, então não é grave. Leia-se: leigos e operadores de justiça de parte do nosso país. Ao invés de ampliar a importância do crime, restringiu sua identificação.
          Mas, vale ressaltar os contrastes de nosso país. No norte, aquela menina de 15 anos ficou confinada por 26 dias numa cela com mais de 20 homens, sendo estuprada 5 ou 6 vezes ao dia. Delegada e Juíza, duas mulheres arbitrando sobre uma menina, não tinham um exemplar do ECA à mão. Lá também, ouvimos de juízes a classificação de “essa besteira” em referência ao conceito jurídico ampliado de estupro a vulnerável, aos danos psicológicos causados à criança, e a canetada é leve para o abusador, e só se tiver muita prova concreta de um crime às escuras, um crime quase perfeito. No sul, um estado que instalou, em todas as suas Comarcas, as Salas de Depoimento Sem Dano, conhecidas como salas de DSD, raríssimas e obstaculizadas em outros cantos do país, procedimento simples que garante segurança e dignidade à criança e ao adolescente para a revelação em única vez dos abusos sexuais sofridos. Lá também, foi sancionada agora a lei de porte de tornozeleira eletrônica para monitorar agressores de mulheres e crianças, buscando melhor fiscalização do cumprimento das leis e medidas protetivas.  Hoje, no norte, hoje, no sul de um mesmo povo, do que deveria ser uma mesma Justiça.
          Mais uma campanha de denúncia é até um bom recomeço. Mas, não mais que isso. E depois? E depois de nove meses da Copa? As meninas pobres, muitas e bonitas tem sonho de príncipes louros, que falam línguas estrangeiras... Já escrevemos sobre isto, “Imagina na Copa”, em 2013, antes da Copa das Confederações, alertando para a ausência total de política de proteção de nossas meninas. Estes cartazes, agora, não conseguem cumprir o papel político de proteção, fiscalização, respaldo em estrutura de assistência de qualidade, solução para as diversas situações de exploração sexual de menores, meninas e meninos, durante um evento que congrega homens sozinhos, sem suas mulheres e famílias.
          Sabemos que este tipo de violência intra-familiar, 90%, causa medo, repulsa, destrói sonhos e projetos, dá muito trabalho até para quem está ao redor. Muito trabalho judicial e psicológico. Por isto mesmo, um dos maiores danos é a sequela do isolamento afetivo. Assim, por mais difícil que seja, há que se aproximar o olhar, o cuidado, o colo social para estas vítimas. Um cartaz é frio, dura a vida do papel utilizado, um anonimato é frio e acaba com o final da ligação telefônica, um fazer de conta que nada aconteceu ou que nada sabe, é cruel. É o final da campanha de cartazes, muito cruel.
          Alimentamos, orgulhosamente, uma cultura de transgressão em todos os níveis sociais, políticos, e até, em todos os nichos afetivos. Enquanto não construirmos uma cultura de cidadania, com consistência persistência e consequência, enquanto estas questões de violência sexual, física e psicológica contra criança, adolescentes e mulheres não forem ouvidas e tratadas olho no olho, pelo acolhimento do sofrimento destas vítimas de tortura cotidiana, os fatos de violência física psicológica e sexual contra este povo sitiado pelo medo e pela humilhação continuarão a ser a prova de que os comportamentos perversos seguem incólumes, pela nossa omissão, negligência e irresponsabilidade afetiva e social. É mais um indicador do déficit de cidadania.
Ana Maria Iencarelli. 25 de janeiro de 2014.  

Artigo publicado no Portal da Voz do Cidadão. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

MORADA NO INFERNO DE UM POVO SITIADO

MORADA NO INFERNO DE UM POVO SITIADO

          J.R. Guzzo, é jornalista, escreveu o artigo “Descida ao inferno”, publicado na Revista Veja edição 2341, de 02 de outubro de 2013. Rodrigo Constantino é economista, escreveu “Delírios de um povo sitiado”, publicado no Jornal O Globo de 01/10/2013. Em tempos próximos, por caminhos diversos, ambos tocam no inferno interno da tortura do abuso sexual em crianças e adolescentes, praticada diariamente nos lares brasileiros. Constantino, na expectativa de sua participação no evento Oriente Médio: Crise e Esperança, traz a tese de Kenneth Levin, que buscou em Anna Freud parte da explicação das questões do fracasso da Primavera Árabe. O comportamento das crianças abusadas ilustra claramente o mecanismo de defesa a criança se sente culpada, e, diante de um inimigo imbatível, junte-se a ele. A identificação com o agressor, mecanismo de defesa do ego, tem sido amplamente usado em várias situações humanas. Opressores e oprimidos, o jogo do pequeno poder seduz as mentes perversas. A pedofilia, a pior das perversões, evidencia as operações realizadas pelo abusador para ficar no lugar da vítima da criança sedutora. Culpada e na esperança de ser amada por aquele que abusa dela, ela se compromete em guardar segredo. Além desta proteção adquirida pelo abusador, a identificação com o agressor é responsável pelo ciclo de compulsão à repetição, abusado hoje, um tipo de abusador amanhã.
          Em “descida ao inferno”, Guzzo nos refresca a memória tão adoecida pela repetição de episódios deste tipo. Mas este é um caso emblemático da nossa realidade. “Trata-se de um episódio chocante por sua crueldade em estado puro, e o resultado inevitável de uma conspiração não declarada dos agentes do poder público para permitir a prática aberta dos delitos mais selvagens – por serem eles mesmos os autores dos crimes, ou pelo uso que fazem da letra da lei para livrar os envolvidos de qualquer risco de punição”. L.A.B., uma menina de 15 anos, tentou furtar um celular e uma correntinha de prata de um sobrinho de um investigador de polícia da delegacia de sua cidadezinha. A menina de 15 anos “foi presa dentro da prisão: arrastada para o fundo da cela, de onde não podia ser vista, tinha a sua miserável comida confiscada pelos outros presos, que só lhe permitiam comer se não desse trabalho durante os estupros”. Até que a mídia descobriu. Mas a mídia tem seu tempo midiático, e são tantos os descalabros... Foram 26 dias presa aos 15 anos numa cela, exclusivamente, masculina, habitada por mais de 20 homens, sendo estuprada 5 ou 6 vezes por dia/noite. Isto leva a pensar que cobre, com intervalos pequenos, o seu período fértil. Sabemos que o ciclo menstrual é de 28/30 dias, não seremos ingênuos em pensar que o período fértil desta menina se deu a partir do 27º dia de sua detenção. É possível que hoje ela tenha um filho do “Cão” ou do “vice-Cão”, os dois detentos punidos. Os únicos punidos neste episódio. Quantas crianças nascem por dia no Brasil, geradas em estupros e em incestos?
          O Estatuto da Criança e do Adolescente, E.C.A., só é referido quando nos indignamos com os benefícios que favorecem adolescentes de 17 anos cometendo delitos, assaltos, crimes, alguns hediondos. Nestas ocasiões ele é execrado. Avolumam-se os clamores para a diminuição da idade penal. O E.C.A. é belíssimo na letra da lei! Copiado por muitos países, elogiado como avançado. Confuso fica constatar que vivemos, para alguns é claro, o tempo da masmorra. Por que a menina L.A.B, de 15 anos não foi  que “beneficiada” pelo E.C.A.? Por que a delegada que efetuou a prisão não cumprindo o E.C.A., que reza a apreensão de menores de 18 anos, e não o encarceramento, não foi responsabilizada legalmente pelo crime que cometeu? Por que a M.M. Juíza que “regulamentou” a prisão da menina de 15 anos, não foi punida pela irresponsabilidade e pelo descumprimento da E.C.A. em seus inúmeros artigos que rezam a proteção da criança e do adolescente até 18 anos? É dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela integridade física, psicológica e social da criança e do adolescente. Está escrito lá, e também na Constituição, deveria ser obedecido pelos Operadores de Justiça. O artigo parece-me, é o 244-A do E.C.A., artigo acrescentado pela Lei nº 9.975, de 23.06.2000. Como não sou jurista, posso estar equivocada. No entanto, uma indagação não me sai do pensamento. Por que Delegada e Juíza, duas mulheres, fazem isto por 26 dias com uma menina? Difícil de responder. Talvez impossível, senão à luz da justiça com as próprias mãos, ou à luz da psicopatologia das perversões pela ausência absoluta de capacidade de empatia.  
          O que acontece que um jornalista e um economista, pessoas brilhantes em seus saberes, mas que não tiveram, necessariamente, uma formação acadêmica voltada para o psicológico, são capazes de compreender tão claramente a perversão do abuso sexual, e, Operadores de Justiça que deveriam exercer, institucionalmente, a proteção escrita no Estatuto, não o fazem. Apesar de termos excelentes Operadores de Justiça, também, no caso de L.A.B., que não é a única, não ouve apenas omissão, o que já é grave. Houve conivência com a transgressão.  Aproveito a oportunidade para perguntar: quantos pedófilos estão presos, condenados segundo o agravamento das penas? Será que não existem? Como bem disse Guzzo, este Brasil não muda. Certamente isto se deve ao resíduo do entendimento da importância, nenhuma, da criança e do adolescente. Não adianta a letra da lei, é o comportamento transgressor que perdura. Afinal, o Infanticídio foi tolerado até o século XVII. Continuamos matando crianças e adolescentes de bala perdida, de crack, de barganhas lucrativas nas mais diferentes moedas, enfim, de miséria psicológica. Meninos e meninas abusados e explorados sexualmente. Adolescentes violentados. Este é um povo de crianças e mães sitiado pelas instituições. Abandonados e desamparados, sempre desacreditados, ricos e, principalmente, pobres. O abuso sexual percorre todas as camadas sócio-econômicas, todas as graduações profissionais, intelectuais e religiosas. Porque não é preciso tirar a vida para causar uma morte. A tortura sexual em suas diversas formas de abuso, mata a vida psíquica, mata o processo de humanização, mata a possibilidade de cidadania.

Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Crianças e Adolescentes. Outubro de 2013.