sábado, 27 de junho de 2020


A Criança e as Pandemias – Parte III
     Continuando este tema da exposição da Criança às diversas Pandemias que vivemos, vamos refletir sobre o mundo que estamos oferecendo para nossos pequenos. A covid19, a violência, a negligência intrafamiliar, a negligência social, a pandemia do esvaziamento de afeto, o egoísmo, a desresponsabilização, a tecnologia, são pandemias que acometem a Criança e sequelas serão guardadas ativas em sua mente em formação.
      Retomando a pandemia do egoísmo, que, essencialmente, estabelece um binômio eu/eu, onde se resume o único critério de escolha, “eu quero só para mim” e “eu não quero ter nenhum prejuízo”, o primeiro é o “é bom para mim” e o segundo “é ruim para mim”, temos desdobramentos afetivos e sociais que impedem o bom exercício da cidadania. Os códigos morais passam a ser regidos pelo egocentrismo.
     A pandemia da desonestidade vai além da financeira.  Influenciada pelo egoísmo, com seus pilares individualizados longe do coletivo, chegamos à desonestidade afetiva, à desonestidade intelectual, hoje tão banalizada. Há argumentos inacreditáveis para justificar a manipulação e distorção de conceitos e princípios. Depende! Este é sempre o início da frase quando se indaga qualquer coisa, até se matar, ou roubar, é errado. Tudo pode vir depois deste “depende”. A flexibilidade é imensa. A judicialização, crescente, também é acometida por decisões ilógicas, sem um pingo de bom senso. Os Direitos da Criança são violados, pela própria justiça. Uma criança pode ter sua guarda invertida por uma alegação verbal, que evoca a locução alienação parental, sem prova material e sem aferição do referido comportamento da mãe, enquanto ainda é amamentada ao seio, cumprindo mandato de busca e apreensão efetivado por policiais. E a amamentação dela? E os cuidados maternos, indispensáveis na 1ª infância, que perde de uma só vez? O entendimento é que aquela mãe faz mal aquele ainda bebê porque fala mal do pai. Leis existem. Belíssimas. Mas há também a pandemia da desobediência, da transgressão estrutural. É como se vivêssemos uma lavagem de direitos. Eles existem, mas são interpretados na contramão.
     A Criança cresce convivendo com a pandemia da corrupção. Ela está dentro do carro quando vê o pai negociar com um agente do trânsito uma multa que seria aplicada a ele. Ele viu que o pai furou o sinal vermelho do cruzamento, e viu também que o pai deu um dinheiro para que o guarda não completasse a papeleta da multa. A transgressão combinada com a corrupção é uma aprendizagem que fica inscrita na mente da Criança, que a levará como natural. O jargão de que o fim justifica os meios vai se cristalizando banalizado. Encontramos corrupção em profissionais que deveriam, por Código de Ética, seguir leis de Proteção da Criança.
     Se pensarmos numa mala de pandemias, do egoísmo, da negligência social, da desonestidade, da lavagem de direitos, surgiria disfarçada a pandemia da pedofilia. Na naturalização da pedofilia, hoje na tentativa de se alojar sob um título de preferência sexual, apenas. Caminhando para uma sonhada legalização, a pedofilia vem se alastrando, sustentada pela banalização. Acobertada pela Lei 12.318/2010, a chamada lei da alienação parental, termo que não tem comprovação científica, e foi cunhado por um médico americano pedófilo, em cima de uma fase de luto pelas emoções de perda, de frustração, de sofrimento relativo ao término de uma relação conjugal. Nada de novo. Somente o neologismo usado para calar Crianças e mães que denunciam abusos sexuais incestuosos. Servindo como tapete para onde são varridos os crimes de pedofilia. O abuso sexual é praticado, em sua grande maioria, por pai, avô, padrasto, tio, primo, irmão mais velho, entre 65% e 85% dizem as pesquisas, e tem como fator a submissão afetiva, é alguém que a Criança ama e obedece. É definido pelos estudiosos, pela sua característica de repetição, como a exposição ao extremo estresse, que além de causar traumas psicológicos, danifica o sistema límbico e o sistema neurológico, atrofiando estruturas cerebrais e suas funções. A violação do direito de ser cuidado pela mãe e o direito de mãe, são endêmicos no judiciário. Afinal, qual é a lógica de entender que faz mal a mãe “alienar” o pai, mas este mesmo objeto, a “alienação”, é usada para punir esta mãe, então, a justiça aliena a mãe. E acreditem, esta não é uma reserva particular do nosso país. Nossa exclusividade é de ter uma lei para uma locução falsa, como afirma o Presidente do Comitê de Direitos da Criança da ONU, Luis Pedernera.
     A pandemia da Miséria Psicológica. É a morte da esperança. É a descrença no outro, quando se é ainda vulnerável, indefeso. Ela é alimentada pelo vírus com a morte, pela violência, pela negligência, pela desonestidade afetiva, pela corrupção de valores, pela pedofilia que sustenta a exploração sexual intrafamiliar, o novo formato da parte mais miserável dos humanos.
     Infelizmente, mais uma tragédia da Miséria Psicológica aconteceu nesta madrugada envolvendo Criança. Eram duas crianças que estavam brincando às 02.00horas da manhã. Uma delas morreu com um tiro na cabeça, disparado da pistola da outra que era novo no tráfico. Uma tinha 11anos, a outra tinha 10 anos. Quantas perguntas brotam: a hora, o aliciamento do tráfico, as famílias, uma arma... A Miséria Psicológica de todos nós se isentará da culpa e dolo desta tragédia. Foi lá na favela. A responsabilidade é nossa. De todos.


A Criança e as Pandemias – Parte II
     São muitas as Pandemias que acometem o desenvolvimento saudável das Crianças, para muito além da Covid19. E não passam. Parece que estão cada vez mais estruturadas e naturalizadas. A Pandemia da Negligência com as crianças tem amplo acometimento na infância. Se considerarmos as inúmeras situações em que a criança é deixada sem os cuidados que lhes são devidos, as dimensões da Negligência excedem o que se convencionou.
     Facilmente, pensamos na situação padrão de negligência: a criança suja, sem alimentação regular, roupas velhas e inadequadas, sapatos menores ou maiores que seu pé, sem frequentar regularmente a escola. Mas, a negligência tem vários cenários. Pode estar presente quando a criança está bem alimentada, bem vestida, bem ocupada numa boa escola e com inúmeras atividades extracurriculares. Piano, futebol, natação, judô, balé, inglês, tudo encaixado em horários compactados pela semana, de tal maneira que não lhe sobra tempo para demandar nada dos pais. A terceirização e fragmentação da maternidade e paternidade fazem parte da infância O que é negligenciado é o afeto, o aconchego, o olho no olho, que não tem lugar na vida do mini-executivo.
     Crianças que se desenvolvem em meio vazio de afeto, serão incapacitadas para a empatia, fundamental ao exercício de cidadania. É a Pandemia do Egoísmo. E, sem conseguir sentir empatia, sem conseguir se colocar no lugar do outro, estas crianças, crescem submersos em competitividade, diuturnamente. Notas de avalições, escores de resultados em competições dos esportes que praticam, tudo está voltado para quem é o mais sobre os outros. Sem a experiência da empatia, não formamos líderes, só chefes que usam de autoritarismo. Excesso de competitividade leva à ausência de valores humanitários. Ser chefe é mandar no outro tendo o egoísmo como único parâmetro. Portanto, sob a égide do egoísmo, os escrúpulos são rarefeitos. A inexistência de aquisição da noção de coletivo e de coletividade é responsável pelo enraizamento do próprio umbigo como princípio e meta. A liderança, no entanto, é construída por experiências afetivas, considera o coletivo, e por isso é sustentável, e leva ao exercício da liberdade.
     A Pandemia do Egoísmo patrocina a Pandemia da Desresponsabilização. A Cultura do descomprometimento é o seguimento do mecanismo de defesa infantil de jogar a responsabilidade e a culpa dos atos que não rendem louros e destaques, sempre no outro. Ou seja, tudo o que dá errado não é assumido, a autoria é, automaticamente, passada para o outro. A Desresponsabilização favorece os comportamentos infantilizados da inconsequência.
     Enquanto isto, em outras casas, crianças sofrem a Pandemia da Negligência Social. Esta é extramuros. Crianças pequenas que ficam sozinhas em casa esperando a volta da mãe de seu irregular trabalho. Muitas vezes aquele “mundo” apertado é rasgado pelo ruído repetitivo de rajadas de metralhadora, e tiros de fuzil que transpassam aquelas frágeis paredes. Todos ao chão até que volte o silêncio que, não raro, vem aos gritos de choros desesperados. A Negligência Social se mistura à violência, a social, e também a doméstica. A Pandemia da Violência perpetrada contra a criança, vivida ao vivo, vem deformando a mente humana. Das crianças que ali vivem, das que vivem a alguns metros, e usufruem de uma ilusão de urbanismo e sociedade. Esses dois tipos de território são separados por muros transparentes blindados que não permitem a livre mobilidade urbana. Talvez tenhamos, com as nossas cores nacionais, um agravamento da pandemia da violência, pelas nossas peculiaridades de rachadura social. Mas a violência é um nefasto fenômeno mundial a despeito de nossa evolução epistemológica em todos os campos das Ciências.
     O abandono social de crianças, por aqui, abre uma fenda em territórios paralelos, verdadeiros Estados paralelos. Com leis e governos próprios, sem educação, sem saúde, sem condições básicas de energia elétrica, de água, de esgoto, sem urbanismo, sem segurança pública, são territórios que deixam à mostra as vísceras apodrecidas de uma sociedade que não cuida de suas crianças.
     Estas Pandemias vão se banalizando, silenciosamente. Nem as enxergamos mais como tal. Crianças crescem em meio a elas. São confundidas com modernidades, com avanços, com mudanças sociais. Mas, não devemos nos enganar pela sedução de um aparelhinho tecnológico, mais um item da negligência com o esvaziamento dos afetos. A Pandemia da Tecnologia dependente é mais uma nefasta influência que acomete as crianças atualmente. É a terceirização da maternidade e da paternidade, do aprendizado via “Dr. Google”, de tal maneira que empurra para atalhos, muitas vezes distorcidos e contorcidos, fazendo perder a aquisição da capacidade de raciocinar, de pensar, de refletir, ainda em desenvolvimento.
     Algumas outras Pandemias serão abordadas na próxima semana. A Pandemia da Desonestidade, a Pandemia da Corrupção, a Pandemia da Pedofilia, a Pandemia da maior das misérias, a Miséria Psicológica.


A Criança e as Pandemias – Parte I
    São muitas as pandemias. O novo corona-vírus está emprestando a dimensão do termo “pandemia”. Mas, esta denominação não se restringe à covid-19. Temos várias pandemias não declaradas por nenhum órgão internacional. Seu caráter pandêmico fica sempre mitigado pela própria sociedade, por grupos que as defendem em troca de Poder. Temos a pandemia de preconceitos, a pandemia do racismo, a pandemia da violência, a pandemia de violência contra mulheres e crianças, a pandemia da pedofilia. Leis não faltam, mas transgressões também não.
     Somos uma Sociedade Cenográfica. O papelão é material muito usado para fazer de conta que há limites entre sistemas que, na essência e na efetividade, são fictícios. E seguimos fazendo de conta. Somos responsáveis por todas as vítimas de todas estas pandemias, em ação e omissão.
     Este tipo de “Estado” é muito danoso para a formação das crianças e adolescentes. Se já é difícil tecer o esboço do necessário código moral, construindo regras éticas, para ingressar, saudavelmente, na vida em grupo, com princípios humanizados, certamente, se torna impossível esta construção com o relativismo, o direito a privilégios ou a punições arbitrárias no oscilante “faz de conta” reinante.
     Não é difícil visualizar os efeitos do isolamento pela pandemia da covid-19 para uma criança. A pergunta que se repete, quando vai acabar esse vírus, que segue sem resposta daqueles adultos em quem depositava a confiança do “saber tudo”. Talvez, esteja sendo o primeiro choque de realidade do tamanho destes adultos. Estão aprendendo que eles sabem quase tudo. A agitação motora que só cede quando entra o joguinho eletrônico. E daí deste espaço virtual não sai mais. A convivência exaustiva com os pais, o que nunca fez parte de sua experiência anterior.
     Assim como o planejamento da flexibilização é programado em fases sob critérios de medição, também as crianças passam por fases durante o isolamento. Uma primeira fase foi a “delícia” de ter pai e mãe por 24 horas, 7 dias por semana, desobrigadas de ir à escola. Mas esta anormalidade, aparentemente deliciosa, tem um prazo de validade. A ausência da escola, até então comemorada, surge como uma falta insubstituível, falta da sala de aula, da professora, do recreio, falta da rotina, falta de toda a atividade escolar. As conversas com os amigos, mesmo que pareçam monossilábicas, mas se esbarrando. O mundo virtual não preenche este mundo real, mas oferece uma saída para um mundo paralelo. Enganoso, mas ofuscante, e de resposta imediata.
     No entanto a criança necessita mais precisamente da sua própria fantasia. De cria-la, de viajar nela e de sair dela quando decide. O mundo virtual dos joguinhos lhe oferece uma “fantasia” pronta, mas que tem vida própria. Não lhe satisfaz em suas necessidades de desenvolvimento. A velocidade de resposta digital não é suficiente, apesar de ser aprisionadora. A pandemia do vírus empobreceu a saúde física e mental das crianças, empobreceu a construção da vida afetiva delas. 
     A desordem se instalou dentro das células sociais, as famílias. E com ela, as alterações do curso do desenvolvimento. Crianças expostas aos temas de adultos, com os humores alterados pela vivência do forte sentimento de impotência, regado a medo. Mas, antes, durante e depois, a pandemia dos preconceitos. Temos muita dificuldade de conviver com diferenças e diferentes. Eles nos ameaçam porque nos fazem sair da famosa zona de conforto. Se não é igual, não sabemos como é, e temos medo da aproximação. Qualquer traço do perfil do outro pode gerar um preconceito que deixa como saldo a falsa sensação de que, por um atalho, chegamos à conclusão sobre aquela diferença. O preconceito é a expressão da fixação numa fase do desenvolvimento cognitivo em que a criança só raciocina com uma única variável. E, por isto, ela incorre em erro. Esta é uma pandemia que dá lugar a outra, que hoje grita por todos os cantos do mundo: a pandemia do racismo.
     Uma criança pequena, quando perguntada o que está vendo numa foto de duas crianças abraçadas, fala “um menino e uma menina abraçados”, sem se referir a cor da pele deles. Mas, o racismo estruturado traz para ela o adjetivo da cor da pele, que caminha no sentido de se tornar o sujeito da frase. No mundo adulto ela aprende desde cedo a diferenciar a cor da pele das pessoas e pela cor lhe atribuir adjetivos plenos de preconceitos.
     Vivemos agora, mundialmente, uma primeira reação consistente da sociedade que questiona esta condição estrutural do racismo. A pandemia do vírus não foi capaz de deter a indignação das pessoas. E os protestos desafiaram o vírus. Mas, se as pessoas foram capazes de se levantar contra uma imagem de opressão racista explícita que mata, entre nós, não conseguimos reclamar do adolescente que também morreu de opressão racista explícita. O joelho ou o fuzil, mas a naturalização deste tipo de conduta já é estrutural em quase todos.
     A pandemia da violência contra a mulher é responsável pela opressão e morte de muitas. O Feminicídio e seus índices galopantes. Não adianta ter uma lei, Lei Maria da Penha, específica e competente, se não temos Políticas Públicas consistentes e consequentes. Falta a educação do respeito e da empatia. O desejo de Poder absoluto destrói as palavras que deveriam preencher os lugares interpessoais. E, como crianças, que ainda não adquiriram um esboço de código moral, de código legal, vemos adultos agredindo, violentando e matando mulheres, na maioria das vezes dentro de casa, portanto na frente das crianças. Este é um comportamento que ensina para as crianças testemunhas a violência e a submissão, ambas nocivas à vida em grupo.
     Neste caldo sombrio, temos a pandemia do egoísmo. Não há coletivo, Valoríza-se o narcisismo, antes de tudo. Crianças que não aprendem a pensar e sentir no coletivo, não são capacitadas para a empatia e para a cidadania. E mais, não serão líderes. Só conseguirão ser “chefes” porque se acostumaram ao egoísmo e ao eixo dominador x dominado, opressor x oprimido. Uma sociedade sem líderes é uma sociedade pobre de humanidade.