segunda-feira, 15 de março de 2021

Nova lei, velho patriarcado

                                                    Nova lei, velho patriarcado 

                                                                                               Ana Liési Thurler, filósofa, socióloga e 

                                                                    Ana Maria Iencarelli, psicanalista de crianças e adolescentes. 

     Viviane do Amaral Arronenzi, presente! 

     A Juíza Viviane foi morta com extrema violência na véspera do Natal de 2020, pelo ex-marido, diante das três filhas: uma com nove anos e as gêmeas com sete anos. O crime ocorreu no Rio de Janeiro, em via pública, à luz do sol. Viviane foi entregar as meninas para passarem o Natal com o pai. Três meses antes do feminicídio, havia feito um Boletim de Ocorrência, mas manteve a guarda compartilhada das meninas. O pai queria zelar por elas? Seu comportamento feminicida indica o que ele realmente pretendia: manter acesso à Viviane. Se ela não tivesse concordado com a guarda compartilhada com um homem violento, certamente seria mais uma mãe acusada de alienadora. Mas hoje estaria viva. 

     O Projeto de Lei da Alienação Parental foi apresentado na Câmara Federal em 2008. Com rara rapidez na tramitação, foi aprovado em 2010, consagrando o princípio de presunção de culpa da mulher-mãe. Um dos pilares do Direito brasileiro é o princípio de presunção de inocência. Pelo caráter das relações sociais de gênero ainda vigentes, por misoginia, esse princípio não vale para as cidadãs deste país. Violências e abusos denunciados por mulheres-mães são mantidos sob suspeitas, por um Sistema de Justiça androcêntrico, sexuado onde as mulheres são 36% entre Juízes e metade disso entre Ministros dos Tribunais Superiores. A palavra da mulher não tem credibilidade diante do Estado brasileiro. Frente a nosso Sistema de Justiça, é a mãe quem promove alienação. 

     A LAP é uma lei sexuada, com caráter coercitivo e punitivo sobre as mulheres-mães, supostas histéricas, doentes. Penas vão da redução ou extinção da pensão alimentícia até a reversão da guarda e a restrição total do contato da mãe com a criança. Homens alienadores não existem. Síndrome da Alienação Parental e Implantação de falsas memórias No texto da lei 12.318/2010, alienação parental é a manipulação psicológica da criança para que venha a temer, desrespeitar ou repudiar o genitor. Essa expressão se assenta na Síndrome da Alienação Parental, não reconhecida em nenhuma instância de saúde, sem CID, ainda que seu criador, desejoso de criminalizar as mães, tenha insistido até a morte, nessa sindromização, nessa patologização. 

     O criador da expressão SAP foi o psiquiatra estadunidense Richard Gardner (1931-2003), lançando-a publicamente em 1985, não tendo reconhecimento nem pela comunidade médica, nem pela comunidade jurídica. Então a LAP – que neste Oito de Março continuamos pedindo para ser revogada – se assenta em uma Síndrome inexistente, sendo o Brasil o único país no mundo a ter uma lei nesse sentido. Uma pergunta não pode ser calada: por que, justamente este país, com altos índices de violências contra crianças e mulheres, mantém, solitariamente, a LAP? O quadro grave de grande parte de nossas famílias é revelado por dados produzidos por entidades e programas com reconhecida confiabilidade. Destaco o programa Disque 100, onde são evidenciadas, ano após ano, violações sofridas por crianças, principalmente entre 4 e 7 anos, dentro de casa. No ano em que o programa completou 20 anos, em 2017, ao menos 130 mil crianças – a maioria meninas – foram negligenciadas, violentadas psicologicamente, abusadas sexualmente. E o programa Ligue 180 tem oferecido mais de um milhão de atendimento de violências de gênero que mutilam e matam milhares de brasileiras no âmbito doméstico e atingem filhas e filhos, que presenciam e sofrem violências. Há entidades produzindo informações qualificadas, nesse campo. É o caso do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que, desde 1998, publica o Mapa da Violência, com apoio da Unesco e da Flacso, e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que oferece à sociedade o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Graças à produção desses dados sabemos, por exemplo, que nas últimas duas décadas do século passado foram assassinadas, neste país, 47,5 mil mulheres e na primeira década do século XXI foram mortas 43,5 mil brasileiras. Enfim, dentro de casa, violências e abusos existem. Não são falsas memórias, maldosamente implantadas pela mãe, na cabeça da criança. 

     A locução “alienação parental” foi cunhada por Richard Gardner, médico generalista, defensor de pais abusadores e violentos. Em seu livro True and Falses Accusations of Child Sex Abuse, a p.24 diz: “As atividades sexuais entre adultos e crianças fazem parte do repertório natural da atividade sexual humana.” A pais acusados de pedofilia intrafamiliar recomendava acusarem a mãe de alienação parental, retirando o foco do pai e da criança, apresentada como programada pela mãe. O relato da criança é desqualificado, considerado resultante da implantação de falsas memórias. Tal programação é impossível, pois a infância transcorre sob a égide de experiências e do raciocínio concreto. Constelação Familiar e Privação Materna Judicial A violência institucional prossegue com a adoção do método da Constelação Familiar, que se disseminou pelos espaços de Justiça brasileiros. Tal método desresponsabiliza o agressor/abusador, inocentado porque o constelador descobre, por transmissão de vibrações morfogenéticas, que um tetravô - sempre na linhagem materna - era pedófilo. Da mãe, que denunciou o pai, é exigido que peça perdão de joelhos ao ex-cônjuge violador. Com a crença de que antepassados de várias gerações continuam ativos entre nós, é aceito e autorizado nas dependências dos Fóruns brasileiros, esse ritual que desresponsabiliza quem comete crimes. Mais uma violência institucional contra a mulher e a criança. 

     O Estado patriarcal humilha a mãe, encena uma “resolução”, sonega o crime cometido, reduzindo-o a um simples conflito entre o ex-casal. Se a mãe não se retratar, é sustentado que ela faz uma campanha contra o pai junto à criança. Dogmaticamente, a alegação de alienação parental patrocina a separação da mãe e da criança. Na maioria das vezes, separação traumática, em cenas de desespero com a execução da ordem de busca e apreensão, feita com policiais. É no colo de um deles que a criança sai de sua casa, deixa sua mãe, seus objetos pessoais. Sente que está sendo presa porque quebrou o pacto de silêncio com o pai abusador. A Privação Materna Judicial (expressão cunhada por Ana Maria Iencarelli) - violência institucional contra a mãe e a criança instituída no Brasil, sob as bênçãos do Estado patriarcal - é promovida com a acusação da mãe de prática de atos alienadores, prática que tem se tornado banal em Varas brasileiras de Família. 


Joanna Marcenal, presente. Em 2010, a médica Cristiane Marcenal demandou pensão alimentícia para a menina Joanna, cinco anos. O pai acusou Cristiane de alienação parental e pediu reversão da guarda. O Judiciário atendeu André Marin. Não é detalhe: foi aplicada uma lei que não existia e, em 26.05.10, a menina foi separada da mãe punida com impedimento de ver a filha durante noventa dias. Cristiane reencontrou Joanna em agosto, já com morte cerebral. A menina Joanna morreu em 13.08.2010. A LAP foi aplicada contra a mãe e a menina, três meses antes da aprovação da lei, em 26.08.2010. Joanna Marcenal, mártir da Lei de Alienação Parental. 

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar. Parte III

 

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar.

  Parte III

     O combo que está contido na legalização doas casas de jogos de azar, envolve a diminuição da maioridade de meninas e meninos, novinhas e novinhos, para preencherem os “empregos” que proporcionarão o atendimento total aos jogadores, incluindo serviços extras, que passam a fazer parte. Afinal, os jogadores são o sustento das casas de jogos, e a satisfação deles, o principal objetivo pela garantia de fidelidade às casas de jogos.

     É necessário atender a tudo que é demandado pelo jogador. Entenda-se aqui que não é o jogo esporádico, o recreativo, o dos curiosos, o que importa aos empresários dos cassinos. É o jogador dependente, os nacionais e os internacionais, que dão sustentação ao negócio. E nada que tire um jogador ou jogadora de uma sensação de fracasso na mesa, quando perdeu uma fortuna, do que o prazer imediato dado por sexo com alguém vulnerável, mas legal. É a recuperação ilusória, mas imediata, do Poder perdido nas cartas ou na roleta. Revigorado vai retornar para seu trono, voltando a alimentar sua sede de Poder, entrincheirado em seu castelo. Sua socialização é, geralmente, escassa, ausente, ou dissimulada pois esconde seu isolamento cristalizado.

     Para garantir o melhor atendimento aos jogadores, os mantenedores das casas de jogos, meninos e meninas, novinhos e novinhas, na idade de deslumbramento com o consumo que lhes faltou na infância. A redução da maioridade, que acena com o brilho da juventude dos meninos e meninas que assim, aos 16 anos, podem entrar nesta roleta de vida. A redução da maioridade está bem escondidinha embaixo do casco do jabuti, enquanto o discurso gira em torno da alegação da delinquência juvenil, que, na verdade, não ultrapassa o índice dos 5% na totalidade da criminologia. A redução da maioridade vem por baixo de um pseudoargumento dos delitos e crimes, que são cometidos, alguns com muita crueldade, e envolvimento com os crimes do tráfico, para conceder autonomia aos jovens, retirando os impedimentos que viriam pela necessária autorização dos pais ou responsáveis.

     Além deste tentáculo do combo, a redução da maioridade, facilitadora nos contratos e nas “transferências” internacionais entre cassinos, sonho/pesadelo, existe outro tentáculo da profissionalização da prostituição. Num primeiro olhar, também, parece algo bondoso com as mulheres que trabalham com o corpo. Sedutor falar de carteirinha de SUS, aposentadoria. Mas é com foco nas meninas e meninos que este tentáculo surge vestido de bondade, em consideração a quem nunca é considerada ou considerado. Com maioridade e número de INSS, meninas e meninos podem também ser cambiados para outros países, sem a necessidade de autorizações. Vale lembrar que estas meninas e estes meninos, ainda quase crianças, serão muito facilmente manipulados e seduzidos por promessas de sucesso e dinheiro. Quantos sonhos de encontrar em meio àqueles homens ricos, o “Príncipe Encantado” serão sonhados. Ou a Rainha, em menor número, mas existem jogadoras compulsivas também, que levará para um castelo para serem felizes para sempre. Vulneráveis. Mão de obra garantida, para toda obra, muito maleáveis pela pouca idade e pela inexperiência.        

     Por outro lado, prontos para trilhar as vias que levam aos endereços dos cassinos, não o contingente dos necessitados por sobrevivência, os necessitados por empregos, mas o contingente formado pelas crianças e adolescentes que fazem intenso treinamento com os jogos virtuais, treinamento que foi incrementado enquanto alívio para os pais quando todos estavam restritos em casa. Temos milhões de crianças e adolescentes viciados nos joguinhos eletrônicos, onde matar é banalizado, a regra é a rapidez digital, e a mágica está acima da razão. A concentração é enorme, mesmo para os que são dispersos nas tarefas escolares. O alheamento para um mundo paralelo é similar ao alheamento do jogador de pôquer numa mesa.

     Eles, parece, nasceram com um celular nas mãos, tamanha a intimidade que têm com o aparelho. Hoje, é muito comum que se imagine que é um sinal de mais inteligência uma criança bem pequena conseguir mexer com o dedinho para mudar de imagem, atrás de uma preferência. Não é. Os chipanzés também conseguem. E, vale ressaltar que este “dedinho que desliza” vai tirar aquela criança de treinamento psicomotor que lhe é necessário: a preensão dos 2 dedos, indicador em oposição ao polegar, que dá sustentação para o lápis. Esta aquisição psicomotora é importantíssima porquanto se inicia no lápis e progride para a caneta, o pincel de arte e o bisturi da cirurgia. Lápis, caneta, pincel, bisturi, todos salvam vidas.

     Preocupa-me muito pensar onde caberão tantos indivíduos que vão vir de infâncias viciadas em joguinhos eletrônicos, neste último tempo, ainda incrementadas pelo comportamento determinado pela pandemia. Para os pais, ainda bem que há joguinhos nesta hora, para a criança, o excesso de isolamento na telinha, só tem retardado de maneira comprometedora a socialização e o desenvolvimento cognitivo. Sozinho, dentro daquelas imagens rápidas, quase sempre binárias, acerto ou erro, onde não há possibilidade de vivenciar a solidariedade e a empatia, será que haverá espaço para a humanicidade?

     Serão os próximos habitantes dos cassinos.  

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar. Parte II

 

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar.

                               Parte II

     Entre nós, terra brasilis, o fluxo é invertido. Nas sociedades, em condições de não excepcionalidade, a lei surge por uma necessidade de regulamentação de um comportamento social que vem sendo praticado. Aqui, salvo raras exceções, quase todas referentes à Mulher, um grupo apresenta uma lei e cria-se, então, a necessidade pelo lobby e pelo marketing, aparecendo então o comportamento, já escorado na “lei” do tal grupo que busca um interesse particularizado.

     É, no mínimo, curioso ver nos artigos, diários, defensores da legalização dos jogos de azar, a alegação sedutora de que os impostos arrecadados verterão para a Educação e a Saúde, alguns ainda acrescentam a Segurança Pública. Não sei se rio ou se choro. Verbas destinadas à Educação e Saúde tem apresentado reduções escandalosas e comprometedoras de qualquer planejamento que tenha razoabilidade. E, ainda, mesmo o pouco que é destinado em 2020, nem foi usado, completamente, num ano de educação à distância, em que um enorme número de estudantes não tinha computador, celular ou internet que garantisse uma só aula. É a Evasão Escolar Institucional, promovida pelo próprio Estado. O investimento em Educação e Saúde vem sendo diminuído, mesmo na situação de crise que atravessamos. E não é por uma questão econômica. O valor maior atual é a determinação taxativa de eliminação de quem contradiz, perdeu-se o brilho da reflexão. Neste caldo, a escolaridade, enquanto capacitação de etiologia, probabilidades, efeitos possíveis, do exercício do raciocínio lógico hipotético dedutivo, até, atrapalha.

     Então, a despeito do desinvestimento de verbas previstas por lei orçamentária em Educação e Saúde, como fazer com que impostos, os que forem pagos, que venham das Casas de Jogos de Azar vão chegar à Educação e à Saúde. Soa contraditório, aliás, financiar estas áreas com dinheiro vindo de doenças de pessoas, posto que, o que sustenta um cassino ou um caça-níquel é a compulsão, uma doença progressiva que destrói o jogador. Moralista? O dinheiro não é sujo do sangue de muitas famílias? Talvez, o fim passe a justificar os meios. A realidade da degradação de dependentes de cocaína, craque, maconha, alucinógenos vários, medicamentos, jogos de azar, entre outros patógenos, se expande e atinge toda a família e, muitas vezes, amigos também. O alcoolismo, não incluído nessa lista, mesmo legalizado, continua a fazer estragos e demolições em seus portadores. Temos muito pouca oferta de tentativa de recuperação e tratamento para estes portadores destas compulsões, que não consegue contemplar a todos os necessitados. Como o cocainômano que arranca a porta da casa e leva para a boca para trocar por sacolés do seu pó, o jogador aposta e perde a casa, para além da porta, onde mora a família.

     Sobre o jogador, é preciso descrever alguns pontos de sua personalidade. Na maioria das vezes ele tem um traço de preferência pelo isolamento, isolamento afetivo, isolamento social, isolamento para um mundo dele onde devaneia com o sempre esperado momento de “quebrar a banca”. Para ele, sorte e azar são os principais regentes da vida. Seu pensamento mágico, fase normal da infância, ficou cristalizado e continua vigorando, mesmo que ele consiga delimitar uma área para ele, e consiga preservar. O gosto e o hábito do jogo, como todas as dependências e, como todos os quadros psicopatológicos, têm múltiplos fatores inclusos. No entanto, há especificidades neste tipo de compulsão. É importante, portanto, observar algumas características do perfil do jogador que é dependente, em qualquer grau.

     A atração imperiosa pelo devaneio do ganhar faz com que o indivíduo apresente uma tendência ao alheamento marcante. Ele dedica muito tempo ao seu ensimesmamento. Assim, frequentemente, é alguém que tem no isolamento um alojamento que faz uso. Pouco sociável, costuma estender o comportamento que tem na mesa de jogo para suas relações afetivas e sociais. Ou seja, o jogador dependente não se adapta a fazer turismo, a dedicar um tempo em socialização. Ele repete a mesma conduta necessária à barreira fisionômica para que os parceiros de mesa não percebam seus blefes. Isto faz parte do jogo. O único “turismo” que ele pratica é, quando se cansa, ir deitar por algumas horas. Nestes momentos, esse jogador costuma querer ser recompensado com prazeres sexuais prestados a seu corpo. Lembrando que as empresas de cassinos, já conhecendo este comportamento do jogador, oferecem o conforto de construir cassinos glamurosos em hotéis 5 estrelas, deixando a distância entre esses dois pontos, a mesa e a cama, por conta de um elevador, alguns minutos.

     Mas a alegação lobista é de que a legalização dos jogos de azar traria um incremento substancial no turismo. Jogador não aprecia paisagens, nem monumentos ou museus. Ele viaja para jogar. E ainda, ele não aprecia também viajar com a família. Para ele, jogar é coisa séria, não é lazer. Não é de fácil sustentação esta segunda alegação, o incremento do turismo.

     E chegamos à questão mais preocupante, a alegação do aumento de empregos. É preciso se debruçar sobre quem são os candidatos às vagas dos cassinos. São meninas e meninos candidatos, novinhas e novinhos, que são candidatos a servir os jogadores dependentes em suas necessidades enquanto jogam.

     Continuamos na próxima semana com o combo do que o casco do jabuti esconde de  mais grave.                

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar - Parte I

 

Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar

Parte I

     Dinheiro, muito. Glamour, com sonhos de fama, de estrelato. Só coisas boas. Turismo. Empregos. Arrecadação. Prazeres. Diversões. Este é o lobby que é feito em prol da legalização dos jogos de azar. Sou consciente que não é a ilegalidade que soluciona. Sabemos todos que eles só são ocultos, mas existem. Alguns, ficam nas esquinas, sentadinhos apontando, auxiliados em seu serviço por árvores e postes onde exibem os resultados diários. E, mais. Temos conhecimento, pela mídia, do funcionamento de empresas de caça-níqueis, de cassinos clandestinos. E, no país que os jogos são proibidos e combatidos como contravenção e crime, temos um cardápio de loterias, que não raro são alvo de escândalos. O que é proibido, é praticado pelo próprio governo. Para alegria do povo, talvez. Quantos, para viver esta “alegria”, gastam um dinheiro escasso que serviria para algum equilíbrio financeiro? Tudo em nome da ilusão de ganhar, do sonho infantil de, magicamente, virar rico! Vender ilusão é uma prática humana corrente.

     Não por acaso, articulistas diversos têm escrito, praticamente, todos os dias, sobre as vantagens de legalizar os jogos de azar. São muitos. A velha estratégia de falar muito para naturalizar, efetivando o lobby.  A técnica do convencimento por reconhecimento subliminar. E, claro, que essa banalização do mesmo conteúdo repetido à exaustão planta uma “familiaridade” e uma ilusão de pseudo-verdade. Assim, passa mais fácil. Não duvido que a porteira está aberta para passar a manada de jabutis. Talvez na véspera do próximo feriadão. Mesmo em tempos de pandemia, isto funciona bem. Não se discute com a sociedade civil, que acorda um dia com a lei votada. Mas, pela familiaridade plantada meticulosamente, acha até que vai ser boa. Foi exatamente assim com a lei de alienação parental, numa noite, ao apagar das luzes, durante a Copa das Confederações. E ela saiu do Congresso com o apelido de ser uma lei de proteção da Criança. Hoje, já temos um livro que expõe as suas perversidades contra Crianças e Mulheres, invisíveis. Mas, já se tornou dogma jurídico que nutre uma cadeia alimentar sobre a dor desta invisibilidade de atrocidades. E, quem se atreve a contestá-la, é visto como alguém que é contra a Criança. A inversão é uma estratégia perversa, mas, eficiente.

     No caso da legalização dos jogos de azar, fala-se de aumento de empregos, incremento no turismo, e entrada de arrecadação de impostos. Todos, benefícios, vistos superficialmente. É sonegado o “x” da questão nestes discursos. Cassinos e caça-níqueis são frequentados por dependentes. Os frequentadores são portadores de uma das doenças da compulsão. E, se fizermos uma rápida avaliação sobre nossas Políticas Públicas de tratamento de outras compulsões, álcool e drogas, por exemplo, vamos encontrar um vazio de atitude política séria e consistente. Programas existem, ideias ótimas são muitas, mas na efetividade, quase, quase nada. Não damos conta de nossos alcoólatras, nem dos nossos cocainômanos, nem dos nossos, recentes e degradantes, usuários de craque. Estes últimos, zumbis, são varridos daqui e dali em meio às grandes cidades.

     Políticas Públicas Sociais para estes doentes da nossa sociedade? Onde? Não há nem para a sobrevivência ou o combate à morte provocada por um vírus. Talvez o “Glamour’ justifique a defesa deste lobby da vez. Certamente, vão argumentar que nem todos sucumbem ao vício do jogo. No entanto, há que se reconhecer que são os viciados que sustentam estas indústrias de ilusões. Todas. E os adoecidos, se inutilizam para a vida em sociedade. Precisam de ajuda técnica, dentro de programas de Políticas Públicas. E, quais?

     Interessante prestar atenção ao argumento do incremento do turismo. Jogadores frequentadores de cassinos, não fazem turismo. Não viajam com a família, que poderia fazer turismo. A família atrapalha o jogo. Crianças, nem pensar. As esposas também não, vão demandar a presença para ir ao restaurante. Não saem das mesas, exceto quando o cansaço lhes parece estar atrapalhando a sorte. Aliás, os empresários do Jogo, aprenderam que a melhor localização para um cassino é dentro de um hotel de luxo. Assim eles só se ausentam das mesas e das roletas para pegar o elevador, descansar um pouco no quarto confortável, e pegar o elevador de volta para a mesa de jogo. Este é o turismo deles. Não se interessam por nenhum monumento, nem praia, nem mesmo um rápido city tour. Como alegar incremento de turismo?

     A outra alegação é a de arrecadação de impostos. Mas, é do conhecimento de todos que jogadores da sorte não são muito claros nos negócios. Além disso, sabe-se também que o jogo, muitas vezes, vem acompanhado com outros “negócios”, tráficos variados e não explícitos. Também na hora de pagar impostos, muitas vezes, vale a arte de blefar. Afinal, faz parte do jogo.

     E os empregos. Vamos abordar na próxima semana estes “empregos” porque eles fazem parte de um combo, muito bem elaborado, onde cabe prostituição juvenil, e redes de tráfico. Vamos nos deter nesta parte que diz respeito à adolescência e juventude no próximo artigo. Aqui há o nascedouro da tese da diminuição da maioridade, que vem sendo vendida como referente aos adolescentes infratores, que não ultrapassa os 5% do total de crimes. É a casa de jogo e suas redes que precisam de novinhas e novinhos.

     Precisamos refletir mais sobre esta fábrica de ilusões, antes que este jabuti cruze a porteira.