terça-feira, 19 de novembro de 2013

PERFIL DO ABUSADOR -I

          Quem é o abusador sexual de crianças e de adolescentes? A resposta é: uma pessoa comum, que você nunca suspeitaria, e, mesmo depois de tomar conhecimento deste seu desvio de caráter, você se pega duvidando. A sua perversão, a pedofilia, este indivíduo, aparentemente comum, guarda embaixo de sete capas. Esta característica, a dissimulação, é ponto essencial de seu perfil. O abusador tem uma divisão em sua mente: o lado sociável e o lado da compulsão da perversão. O lado sociável fica a serviço da camuflagem da perversão. Esta segunda parte, nunca admitida por ele, é vivida apenas pela criança/adolescente com quem ele pratica o abuso.
          Como é compulsivo, o abusador repetirá sempre seu comportamento de abuso. Nada o deterá. Restrições, por exemplo, impostas pela família ou pela Justiça, não conseguem detê-lo porque o caráter compulsivo é sempre imperioso. Faz-se necessário que se entenda esta compulsão como um vício oculto, semelhante ao vício do álcool ou de uma droga. O alcoólatra, na falta da bebida convencional de sua eleição, apela para qualquer outra bebida, e na falta delas, para o álcool etílico, para os perfumes, os desodorantes, os produtos de limpeza, guardados em seus respectivos armários, de maneira que não levantam nenhuma suspeita sobre a ingestão do álcool. Assim também funciona o vício do abuso. Determinante. Quando na presença de outro adulto, por exemplo, nas visitas monitoradas determinadas, equivocadamente, pela Justiça, o abusador reduz esta restrição a um desafio para ele. Desafiar a lei é sua maior excitação e seu maior prazer. Pois, não é o prazer sexual que ele busca. Este, ele não tem nas sessões de abuso. É o prazer da sensação de onipotência, do controle do proibido – a excitação compulsiva por condutas sexualizadas se utilizando de um corpo que não possui atributos de sensualidade - enfim, é o prazer infantil de enganar a todos a cada dia, e ninguém conseguir descobrir.
          Por este motivo muitos abusadores ousam, com sucesso, abusar em público. Os gestos são discretos e rápidos, o olhar altivo, e, misturados a abraço, beijo e aparente carinho, a mão desliza por entre roupas pelo caminho determinado pela compulsão perversa até alcançar algum ponto excitante da genitália da criança. Pronto. Não precisa muito tempo ou muita coisa. O desafio foi vencido. O vício cumprido. A ousadia é tamanha que cega às pessoas presentes em torno da cena. E o triunfo, instantaneamente como uma droga, lhe preenche o buraco interno de sua perversão. Olha a todos com desprezo. Como não foram capazes de ver o que ele acabou de fazer? É superior a todos naquele momento. Solta a criança com esta sensação secreta de onipotência, e volta para o mundo dos pobres mortais, até o próximo impulso, quando repetirá o ritual abusador.
          Esta é uma marca do comportamento do abusador presente em todas as formas de pedofilia. Se o ritual é restrito ao aconchego do lar, se a compulsão desafia os olhares em volta em situações familiares/sociais, ou lugares públicos, ou se a tecnologia é o veículo, o prazer do abusador está neste desvio, na sensação de poder sobre o vulnerável e sobre a vulnerabilidade das instituições, completamente, fracas no combate e na punição desta patologia que deixa danos permanentes.
          A sensação de impotência experimentada, precoce e intensamente, pela criança, irá permanecer como um traço de seu comportamento diante de qualquer situação em que se depare com um poder do outro. Sua reação será sempre a de encolhimento diante do outro, não importando a sua situação real de possibilidade de enfrentamento. Este prejuízo, por vezes, a leva à invalidez social quando da natural competitividade da vida adulta. A pedofilia é equivalente à necrofilia: ambas as perversões buscam tirar sensações e prazeres sexuais de corpos inertes. O objetivo sexual é, essencialmente, de posse absoluta de um corpo.
          Por outro lado, a criança abusada terá um descrédito nas leis, e poderá, por identificação com o abusador, trilhar os caminhos da transgressão com o desrespeito aos limites da vida afetiva e social. Tanto uma linha de desenvolvimento quanto a outra, compromete o processo de cidadania. Aprisionada na sedução do abusador, entre promessas e ameaças, o amadurecimento de sua competência relacional fica obstruído por esta manipulação que se estende por toda sua infância. Iludida pela fantasia de que “super-amada” pelo abusador, a criança vai sendo arrastada na restrita tarefa de guardiã do segredo. Esta competência do abusador é central em sua personalidade porque lhe dá mais uma sensação onipotente. O abusador não ama a sua vítima, ela serve apenas para lhe fornecer estas sensações narcísicas de onipotência transgressora.
          Sendo um crime de difícil comprovação, as marcas se inscrevem na mente da criança abusada, o abusador, conta ainda com a impunidade, a marca de nossa sociedade. E, fazendo jus à sua psicopatia, quando ele é denunciado, lança mão de sua exímia capacidade manipuladora e inverte o sentido da acusação. É quem revela seu segredo perverso que é o culpado, é a criança que está inventando, é a mãe da criança que está levantando calúnia contra ele, ficando de vítima, e alojando-se até em figuras jurídicas, como falsas acusações de alienação parental, para gozar da proteção da Justiça.
          Como psicopata, o abusador não adquire o sistema de capacidade empática, tendo também defeituosa sua afetividade, de padrão narcísico e bastante anômalo. Ele não tem compaixão porque é incapaz de se colocar no lugar do outro e, assim, dimensionar o que o outro está sentindo em um sofrimento. A capacidade de empatia é responsável também pela aquisição da capacidade de sentir culpa por falhas e erros cometidos. Um abusador nunca sentirá culpa pela sua perversão, pelo que imprime à sua vítima. Portanto, ele não poupa a criança, intimidando-a, chantageando-a, ameaçando-a, de todas as maneiras que forem necessárias para garantir a sua própria proteção. Assim, o pai/abusador, (cerca de 85% dos casos são pais e padrastos), sem sentir culpa pelo que faz com filho/filha, não exerce mais sua função de pai, ou seja, incapaz de assumir a responsabilidade do cuidado, ele é maléfico ao desenvolvimento saudável daquela criança que ele molesta, rasgando o marco civilizatório da interdição ao incesto. Em tempo de reformulação de conceito de pai e mãe, é espantoso que se apele para a consanguinidade, item já relativizado pela ciência e atualizado pela Justiça, em seu Direito de Família. Quantas crianças já possuem seu registro com filiação a dois pais ou a duas mães. Pai é o cuidador, mãe, é a cuidadora. O cuidado de boa qualidade é que conceitua a função de mãe e de pai.
           O abusador é um torturador que substitui a dor para obtenção da informação, a política, pelo prazer da manipulação sexual para a não obtenção da informação. Nesta tortura o prazer é usado para guardar o segredo, o abuso. Os elementos são os mesmos invertendo-se os sinais. A tortura de prazer por excitação sexual é praticada por ele, aprisionando a criança a ele. Torturador e torturado passam a formar uma amálgama indissolúvel, com uma cristalizada dependência recíproca. Mas, apenas o torturado, a criança abusada, conhece o sofrimento.

Ana Maria Iencarelli. Novembro de 2013.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Fenômeno “Lewandowski”, cultura da transgressão e pedófilos



          Vivemos um tempo de experiência coletiva da cultura da transgressão. Nem nos damos conta do infeliz exercício cotidiano de negociar a lei a cada esquina, mergulhados na cultura da transgressão, o que tem nos levado à sensação de vivermos numa sociedade cenográfica, onde instituições, comportamentos e relações psicossociais são de faz-de-conta, de papelão pintado com as tintas do narcisismo. A lei não é internalizada, só é convocada quando de um interesse pessoal, e nem se aplica a todos. Assim, o pouco conceito de lei resta pessoal, não sabemos o que é coletivo ou público. Negligenciar, desanimar, se omitir, relativizar ilícitos, da regra de trânsito ao crime hediondo contra a criança, distorcer e interpretar negando o óbvio contando com a onipotência de se acreditar capaz de convencer a todos, culpar a vítima, negociar e customizar o limite e a lei, etc., etc., etc., é o que acontece em todas as situações das nossas relações sociais. Este estado de desnecessidade de compromisso e responsabilidade com o outro favorece, generosamente, aqueles que, patologicamente, precisam do prazer da sensação de poder. É nítido este comportamento na maioria dos políticos, dos empresários, dos governantes. É o que fazem também os pedófilos, os “ao vivo” e os virtuais. Acreditam estes que ninguém irá descobrir o que praticam e, quando denunciados, negam o óbvio, acusam quem lhes denuncia, porque conhecem bem seu potencial de impunidade. Afinal é apenas uma criança falando, ou, no similar deste momento, os brasileiros, portanto, não merecem crédito. São os crimes quase perfeitos porque, silenciosos e perversamente frios. Abusadores e corruptores não deixam rastros, muito menos provas, é claro. Juízes são feitos para fazer Justiça. E supomos que, quanto mais Supremo, mais capacitado ele está para avaliar, relacionar e julgar indícios, juntando peças destes sofisticados quebra-cabeças, intencional e ardilosamente, embaralhadas para o acobertamento destes criminosos. Provas concretas são equivalências de operações mentais primitivas, implicam em ingenuidade, estão no nível de pensamento concreto no desenvolvimento cognitivo da criança. Já enjoados de pizza, fomos convidados para a primeira festa da cidadania de uma Instituição de Verdade. Mas, assistir às distorções das constatações nos autos, sendo travestidas em acusação de desnecessidade de indicação de "ato de ofício", é  traumático. Muito se parece com a minha vivência de batalha e frustração dos caminhos da proteção de crianças e adolescentes. Quando escuto o argumento “mas não houve penetração”, então não é tão grave uma menina, ou um menino serem abusados todas as noites pelo pai. Esquecem as pessoas, e nem querem ouvir, que, como na corrupção é a presença de barganha, no abuso é a proposta tirada do corpo de uma criança com 02, 12 anos de idade, deste corpo sem sensualidade dar prazer a um adulto, é este estupro psíquico, até à distância. Tocando com carícias ou através da tela de um computador, os danos psicológicos são irreversíveis em sua maior parte.
          Por toda a implicação das representações, o fenômeno “Lewandowski” nos assustou. Fomos jogados de volta à impotência, tornamo-nos vulneráveis, sentimo-nos como uma criança quando é abusada por um adulto. Os crimes de poder, o pequeno ou grande poder, tem a mesma essência: o prazer do criminoso advém da sensação de onipotência pela transgressão realizada e impune. De bônus, ele parte para o mecanismo de defesa primitivo da projeção: a inversão para transformar a vítima em algoz, e, conseqüentemente, o “pobre agressor” se tornar vítima. Hoje, estes criminosos estendem seus tentáculos atacando os técnicos que confirmam seu comportamento agressor sexual, movendo processos contra os profissionais que se pronunciam. Desde a década de 60, estudos demonstram que este movimento denominado BACKLASH acontece e diversos países, e há alguns anos já chegou entre nós. Engessados pelos processos, ameaçados da perda de seu registro profissional, os técnicos são silenciados, e servem de “exemplo” que outros técnicos se amedrontem e nada afirmem em laudos vazios de tudo o que ocorre de fato entre aquele abusador e a criança.

          É, portanto terrorífico vermos um operador de Justiça argumentar a favor de um crime de poder público, sacramentando pela absolvição a impunidade, ou pelo menos contribuindo para baixar a média das condenações. Não conseguimos dimensionar a extensão dos estragos a médio e longo prazo, ou o número de crianças atingidas. A indignação é muito pouco diante da força das nefastas conseqüências deste fenômeno. O uso destes argumentos será transformado em Jurisprudência, que será bem aproveitada pelos pedófilos, a desnecessidade de contestar indícios beneficiados pela necessidade de provas. A queda da cultura da transgressão é um longo e penoso processo de cidadania a ser batalhado por todos nós, todos os dias.