terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Atrasada, mas ainda na validade, transcrevo o convite do Lançamento da Coleção Direito UERJ 80 anos. Em 11 volumes o Direito da UERJ foi comemorado.
No volume dedicado ao DECA - Direito Especial da Criança e do Adolescente - tive a honra de contribuir com o Capítulo: "Os 18 anos do DECA no ECA".
A festa da noite de autógrafos foi aberta com o canto do Coral da UERJ que nos brindou com uma música indígena da colheita da mandioca. Mesa composta pelas autoridades  daquela casa de saber e estudo. As origens, a universidade. Um raro momento regado a muita chuva do céu.

PEDOFILIA NÃO É DOENÇA,

PEDOFILIA É CRIME!

 

       A Pedofilia, comportamento aberrante do adulto que elege a criança como objeto sexual, tem sido, cada vez mais, tolerada entre nós. A tentativa de encaixá-la como doença psicológica, passível de tratamento, aponta na direção deste movimento de aumentar seu espaço de tolerância, de banalização, e de desculpabilização.

       Faz-se necessário definir e distinguir dolos, culpas, negligências, quando estamos tratando de um comportamento sexual praticado por um adulto em uma criança. A proposta, a iniciativa, a repetição são da autoria do adulto. O pacto de segredo e a sedução e/ou intimidação também são da autoria deste adulto. Onde fica a doença? Se doente, não se importaria com o segredo, até publicaria como fazem os doentes mentais graves quando têm acessos sexuais com uma criança, pois ignoram as regras sociais, as interdições. Como explicar que um doente tenha tamanho cuidado em cometer este crime às escuras com toda uma sofisticação de cuidados de não deixar rastro, de se comportar tão bem fora da cena do abuso, chegando a gozar de prestígio e de conceito moral impecável? A doença mental grave não se esconde.

       O pedófilo intrafamiliar, aquele pai que abusa sexualmente de um filho ou de uma filha, é, extremamente, meticuloso no seu disfarce. Inteligente, sedutor, convincente de suas qualidades morais, falsifica e engana. Este é o seu verdadeiro gozo. Enganar a todos. Como um matador de aluguel que toma todos os cuidados depois do assassinato para apagar as pistas e indícios, ele trabalha a aliança da criança para que ela o proteja sempre, seja através de ameaças, seja através de privilégios e presentes. Rompendo a interdição do incesto, marco civilizatório da humanidade, o pedófilo intrafamiliar vem ganhando terreno na Justiça. A criminalização da Alienação Parental tem sido amplamente usada e abusada pelos pais abusadores de filhos e filhas. Invertendo os lugares de vítima e algoz, capacidade especial dos psicopatas, dos perversos, os abusadores sexuais intrafamiliares têm todo o êxito. Alojados sob o manto da Justiça, seguem tatuando a ferro a alma de seus filhos e filhas, enquanto as mães são mantidas engessadas, mumificadas, e são criminalizadas ao se debaterem em busca da proteção daquele filho ou filha que revelam o abuso. Por sua vez, a criança que denuncia o pai, é vista como mentirosa, como repetidora de texto da mãe, como fantasiosa. É aberrante pensar que uma criança de 04 anos fantasiou um relato de prática sexual anal, com detalhes que não tem possibilidade alguma de caber em seu desenvolvimento cognitivo desta faixa etária, quando o 4raciocínio é concreto, ou seja, se dá pela experiência e pela realidade vista. É como se pudéssemos afirmar que um menino de 04 anos diz à sua mãe que lhe dará um helicóptero de presente de Natal porque pegou suas moedas do cofrinho e comprou ações Preferenciais da Vale, antes do desastre da Samarco, e ganhou um bom dinheiro. Aos 04 anos ele só pode fantasiar que vai dar um helicóptero para a mãe com as moedinhas do seu cofrinho porque, para ele, se são muitas moedas, então, é muito dinheiro. Não há como ele saber da bolsa de valores, assim como, não há como ele saber que adultos usam o bumbum do outro em busca de prazer sexual, porque assim como as moedinhas, ele não possui este conhecimento, e só atribui a função excretora para sua região anal. Portanto, se a criança descreve uma atividade sexual promovida por um adulto no seu corpo, e o técnico tem competência qualificada para distinguir um texto decorado de um texto vivido, a proteção da criança é a primeira coisa a ser garantida, ou melhor, obedecido o E.C.A. nos artigos que rezam esta garantia do Direito Fundamental de Vulnerável.  

       E sobre a romântica ilusão de “tratamento psicológico para o pedófilo”, é preciso ter honestidade profissional. Ninguém é Deus. Psicopatas, pedófilos o são, não sentem empatia, têm frieza de afetos, são compulsivos no desvio de caráter, e não se propõem a mudar nada em si mesmos. Onipotentes, projetam toda a responsabilidade do seu comportamento aberrante na criança, na mãe, na sociedade, menos neles mesmos. Se fossem doentes, sofreriam. Para entender um pouco a dimensão do determinismo deste impulso anômalo, ter atração sexual pelo corpo, ou parte dele, de um bebê de poucos meses, de um menino de pouca idade, de uma menina antes do aparecimento dos caracteres sexuais secundários, sugiro que assistam ao filme “O Lenhador”, antigo, que mostra a força que um pedófilo faz para se conter depois de sair da prisão por longa condenação por abuso sexual de crianças.

       É também aberrante o despreparo dos Operadores de Justiça para lidar com esta questão. Não se sabe para que tanta campanha sobre a denúncia, sobre, até mesmo, a conivência de ter conhecimento de um abuso e não denunciar, implicando pais, professores, médicos, profissionais que tenham contato com a criança abusada, se os Promotores e Juízes continuam a buscar provas concretas para o abuso. O E.C.A. em sua prescrição de proteção: art.3º, art.4º, art.5º, art.7º, art.13, art.15, art.98, art.240, art.241, art.245, e o art. 227 da Constituição Federal. Na realidade, por falta de qualificação específica, a palavra da criança é desqualificada e distorcida. Ouvida em sistema de acareação, na presença do suposto abusador, profissionais confeccionam laudos inconclusivos de achismos. A argumentação usada é sempre que se você não viu, se não tem dilaceração vaginal ou anal com presença de esperma, e com o devido DNA, você não pode afirmar que houve abuso. Mas, por que é afirmado que não houve abuso? Isso pode. Como “provar” que não houve abuso? Os Processos Calvarianos estão repletos desta afirmação textual, não houve abuso, e a então inversão perversa de transformar tudo em Alienação Parental da mãe. Punição imediata, a começar pela perda da Guarda e afastamento total dela. Joana, 05 anos, teve a guarda dada ao pai e o afastamento total da mãe por 90 dias. Foi morta pouco tempo depois desta decisão judicial.

       As Salas de Depoimento Sem Dano, D.S.D., são recusadas por Operadores de Justiça, e são referidas como “pura besteira”. O Centro de Acolhimento do Adolescente e da Criança, C.A.A.C., com pessoal qualificado, preenchimento de protocolo, e registro áudio visual da oitiva da criança ou adolescente, é sub, subutilizado. O instrumento de aferição é o “olhômetro” de profissionais que rejeitam teoria e método adequado e científico. O “olhômetro”, em sessões de acareação que muito lembram os vergonhosos porões de inquéritos fraudulentos, afirma por interpretações rasas que não houve abuso. Basta a criança aceitar sentar no colo daquele pai que isto já é a garantia da afirmação de não abuso, mostrando o desconhecimento de conceitos como o impulso à cavidade primária, o apego, a dependência afetiva, a sedução, a síndrome de Estocolmo. Crianças pequenas abusadas pelo pai, amam este pai. As mulheres adultas espancadas pelo marido também amam este marido agressor, assim como muitas vítimas de tortura e privação grave passam a amar o torturador. Complexo, mas real. Mas, as Varas de Família só tem uma sentença: Alienação Parental. O autor deste conceito, R. Gardner, escreve em seu livro “True and False Accusations of Child Sex Abuse”, págs. 24-25, “as atividades sexuais entre adultos e crianças são parte do repertório natural da atividade sexual humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e a faz ansiar pelas experiências sexuais que redundarão num aumento da procriação”. Para ele “o incesto não é danoso para as crianças, mas é, antes, o pensamento que o torna lesivo”, pág. 549, porque “nossa sociedade ocidental assumiu uma posição muito punitiva e moralista sobre encontros sexuais entre adultos e crianças”, pág. 593. Este é o autor  que copiamos e colamos, sem ler nem buscar de onde veio o conceito de Alienação Parental. Consumimos e já até criminalizamos, quando países recuaram na adoção deste conceito como verdade suprema. Também não tem prova concreta de Alienação Parental, mas este conceito, forjado por Richard Gardner que o lançou quando defendia pais agressores e abusadores sexuais, sua simples alegação, sentencia 100% dos processos de abuso, como declarou uma Juíza de Vara de Família. Todas as denúncias de abuso sexual são Alienação Parental. Todas? O abuso sexual acabou? Mágica?

       Que pessoas leigas usem o mecanismo de defesa da negação é compreensível. Diante da monstruosidade é plausível. Mas Operadores de Justiça e Profissionais da Saúde Psicológica da criança, por mais doloroso que seja, deveriam colocar o Princípio do Melhor Interesse da Criança antes de suas dificuldades pessoais e desconhecimentos técnicos. É mais fácil pensar que não existe uma coisa tão ruim como esta. Temos Leis, temos discurso de Criança Sujeito de Direito, mas não temos coragem nem responsabilidade para enfrentar a complexidade desta sombra social. Então, não nos comprometemos. Bernardo, Isabela, Paola, Joana, Sophia, e tantos outros, tiveram negados seus pedidos de proteção pela Justiça e pelo entorno familiar e social. A proteção foi conferida, judicialmente, aos pais, seus algozes.

       E seguimos fazendo de conta. Somos uma sociedade cenográfica que privilegia o parecer e se distancia cada vez mais do ser. Condenamos todos os dias milhares de crianças à submissão da tortura sexual de que são vítimas. Preferimos alimentar a fantasia da propaganda de margarina no café da manhã de sábado, a família feliz. Porque o calo social impera: pai é pai.

       Natal e Ano Novo! E as crianças que serão abusadas segurando o presente de Papai Noel e em muitos e muitos dias do Ana Novo?

segunda-feira, 27 de julho de 2015

ABUSO SEXUAL
Uma tatuagem na alma de meninos e meninas

Pensamento Mali:
“o melhor caminho entre um ponto A e um ponto B não é
uma reta, é um sonho”

     O infanticídio foi tolerado até o Século XVII. Os pais podiam, se assim decidissem, colocar seus filhos acorrentados, em masmorras, espancá-los também em público, e até matá-los, sem precisar dar satisfação a ninguém, porque aqueles filhos haviam desobedecido, ou eram portadores de alguma característica insuportável para eles pais. Tinham a posse e o destino dos filhos dependentes. Hoje, o infanticídio não é mais tolerado, mas continua a ser praticado. Isabela, Joana e Bernardo são emblemáticos. E continuará. A perversão com as crias só acontece em humanos.
     A interdição ao incesto é o marco do processo civilizatório da humanidade. Mas, prosseguimos sendo sub-animais.
     Richard Gardner, criador do conceito de Alienação Parental, era um psiquiatra que fazia trabalho não pago na Universidade de Columbia, como voluntário. Seus pareceres para processos judiciais, ele assinava como Professor, título que lhe foi ofertado, em cortesia, pela própria Universidade.
     Gardner criou as suas teses para defender acusados de violência contra mulheres e/ou de abuso sexual de filhos e filhas. Fez sua carreira profissional, como perito, defendendo homens acusados de abusar sexualmente de crianças, através da estratégia de desacreditar as vítimas, para inverter as posições, transformando o acusado em vítima. ( Barea Payueta/ Sônia Vaccaro, “El Pretendido Síndrome de Alienatión Parental, Editoria Desclée de Brouwer, 2009, p. 168 ).
     Em seu livro “True and False Accusation of Child Sex Abuse”, 19992, pp. 24-25, Gardner escreve: “as at’ividades sexuais entre adultos e crianças são parte do repertório natural da atividade sexual humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e a faz ansiar pelas experiências sexuais que redundarão num aumento de procriação”.
     Assim, se o incesto é normalizado, não é visto como abuso sexual, sendo até recomendado por ele como benéfico para a criança, para o adulto, para a humanidade, a Alienação Parental justificada, ou seja, aquela que advém da situação da descoberta do abuso e consequente indignação e busca de afastamento para proteção da criança, se tornou também entre nós, “prova de alienação praticada pela mãe”. Hoje, com o incentivo à denúncia, o número de mães denunciantes se aproxima do número da mães que descobrem e se calam para sempre. Este grupo, a mim me parece, será sempre maior pelo uso de mecanismos típicos dos processos de identificação, e não se ttem a possibilidade de sabê-lo numericamente.
     A busca de proteção pelo afastamento do pai abusador, uma tentativa da mãe de evitar o contato sexual do pai com a filha que, segundo a tese de Gardner dos benefícios do abuso sexual incestuoso, está lesando a sobrevivência da espécie. (Jennifer Hoult, “The Evidentiary Admissibility of Parental Alienation Syndrome, Science, Law and Policy, 2006, p.19). Assim, a mãe é que está cometendo o crime, Lei 12.380/2010. Esclareço, escrevi apenas com a filha porque até o momento os meninos não se beneficiariam porque ainda não podem engravidar e práticas sexuais entre dois indivíduos do mesmo gênero masculino não conseguem implicar em procriação. Fica evidente o caráter sexista em modelo de supremacia do macho, dono da família. A estratégia de Gardner vem patrocinando um aumento vertiginoso de criminalização de mães protetoras pela falsa acusação de Alienação Parental feita por pais abusadores.
     “É enorme o aumento de Processos de denúncias de abuso sexual de crianças, todas mães, que atribuem a autoria ao pai. Graças a Deus, 100% é alienação parental das mães. Nenhuma é abuso sexual.” Afirmação de Juíza de Vara de Família.
     As falsas alegações de Alienação Parental feitas por pais abusadores, tem se proliferado em escalas assustadoras, se considerarmos as vítimas. Criminalizada, a Alienação Parental tem poucas possibilidades de prova, e hoje, como “pérola da vez”, se baseia tão somente na auto vitimizada alegação sem averiguação, apesar de haver criteriosa listagem de condutas bem elencadas por Rolf Madaleno, entre nós. Para transformar uma falsa alegação em “uma verdade”, os pais abusadores engendram a autoalienação com manobras, calculadamente, arquitetadas. Abusadores são perversos, são exímios manipuladores e fingidores. Muito fácil para eles montar esta inversão. Estes falsos comportamentos tem sido um sucesso judicial. Os Operadores de Justiça não estão habilitados a reconhecer esta ardilosa psicopatologia. Que, a nós, especialistas em doenças mentais, eles também enganam.
      É claro que Alienação Parental existe, por parte da mãe e do pai, e é nociva ao desenvolvimento saudável da criança. As mágoas e ressentimentos, justificados ou enquanto sintomas narcísicos,  acontecem após o término de uma relação amorosa. É um processo de luto, e como tal, tem seu tempo para ser processado naturalmente. Maria Clara Sottomayor em seu “Temas de Direito das Crianças”, considera um erro a criminalização da Alienação Parental, que, para ela, só traz o acirramento de afetos ressentidos, porque não espera o tempo do luto. Essa criminalização deste comportamento inadequado, mas natural, empurra as famílias para a falsificação, acrescida da obrigatoriedade da Guarda Compartilhada, Lei 13.058/2014, obrigatória até nos processos de separação litigiosa, engendrando  assim a produção do falso self.

A tatuagem na alma de meninos e meninas.

     A revelação ou a descoberta, quase sempre ocorre por acaso porque este crime não deixa nenhum rastro. A ocultação das práticas sexuais é objeto de cuidado meticuloso e calculado do abusador. O núcleo familiar sofre um tissunami que não tem fim. A primeira atitude, que parte de algum ou de alguns membros da família, incluindo a mãe, é duvidar da criança ou adolescente. A culpa da invasão de lama e destroços é da criança que revela. Mesmo quando não é dita uma frase que indaga por que ela resolveu falar agora, estragar tudo, há esta cobrança implícita. Como se ao vitimado coubesse a missão de guardar para sempre este segredo que combinou com seu agressor. Este golpe é muito danoso e fere profundamente. Depois de vários adiamentos, de vários ensaios de como falar, rasgando por dentro o túmulo do segredo, eis que apenas duvidam, reduzindo a pó todo o seu esforço de quebrar o pesadelo do segredo. A culpa transborda e a almejada paz não é alcançada. Ao contrário, a aflição aumenta, além do tormento da permanente lembrança torturante do abuso, a revelação traz ao vivo todo um sistema de insegurança pelo descrédito que paira sobre aquele que revela. Agora, são duas as dores: a culpa multiplicada e o descrédito do entorno.
“eu tenho pena do meu pai e me sinto traindo ele porque falei prá ele e prá minha mãe do abuso, Ele só tinha a mim para dar aquele amor agora eu quebrei o que prometi prá ele”. Mulher de 28 anos que revelou para os pais sobre os abusos dele na sua infância e adolescência.
     Pouco se sabe sobre as consequências do abuso na aprendizagem. Não é difícil refletir sobre o distúrbio da atenção, por exemplo. A concentração para manter secreto o abuso opera uma cisão com o mundo, uma equivalência de um quadro de autismo. A atividade escolar que pretende sempre aumentar o tempo de concentração da criança estimulando seu desenvolvimento cognitivo é uma sobrecarga de difícil coordenação nesta demanda de atenção. A criança ainda não tem os recursos suficientes para  organizar e administrar duas concentrações ao mesmo tempo.
     Além disso, toda a escolaridade fundamental está baseada no certo e no errado, no falso e no verdadeiro, e perde o sentido, mais que isso, se tornando esquizofrênica em seu caráter cindido. A criança sae que o errado é certo naquele segredo que mantem com o abusador. Mas fora da cena, ele mesmo a repreendem muitas vezes com rigor para manter sua intimidação e sua posição familiar e social de “correto”.
“passei minha infância sendo expulso da sala de aula, mas tirando notas altas, não era burro só não conseguia prestar atenção e bancava o engraçado para ser gostado, sempre me senti rejeitado por todos, meu pai dizia que fazia aquilo comigo porque ninguém gostava de mim, só ele”. Homem de 22 anos, abusado pelo pai na infância, cuja mãe foi afastada do filho e teve a inversão de guarda, foi acusada de falsidade ideológica pela denúncia de abuso que fez.
     A memória também é atingida. A criança tem que passar todo o seu tempo lembrando que tem que esquecer a lembrança, e lembrando que tem que lembrar para ocultar perfeitamente. O que sobra para a memorização da aprendizagem?
     A sensação de falsificação contínua, com a aprendizagem da mentira e sua culpa, afeta a formação da identidade. O segredo culposo que a criança carrega durante seu desenvolvimento, produzirá uma obstrução, maior ou menor, mas sempre presente, no processo de formação da identidade. Estas crianças crescem sem saber quem elas são. Encontramos os adultos tatuados pelo abuso com a personalidade “como se”, o falso self, sem capacidade de se reconhecer, de saber quem são.
“Eu não sei quem sou eu, tenho sempre dúvida a meu respeito. E abandono tudo que começo, porque estou sempre achando que não é para mim, que não vou ser capaz, até no trabalho isso fica muito claro, tenho uma especialidade, mas se chega alguém eu deixo a pessoa fazer o que é de minha competência, mesmo que ela nem saiba fazer.” Homem de 38 anos que foi abusado pelo pai na infância e desacreditado pela mãe quando revelou o abuso.
     O tempo, sua noção, sua função, são também atingidos. As sequências de ausência quase autística, das noites, manhãs ou tardes de espera pelo momento pleno de adrenalina em que o abusador ia dar início a suas práticas libidinosas, aquele vazio transbordante, o silêncio ensurdecedor dentro da mente, causam um distúrbio de boa utilização do tempo.
     Escutar uma criança que está contando que está sendo abusada por alguém da família, não é tarefa nem um pouco fácil. As crianças costumam “falar” de diversas maneiras, encenar na brincadeira, e algumas vezes, quando tem uma pessoa de referência de muita confiança até contar em palavras. No entanto, a dificuldade do adulto de escutar uma revelação é enorme, estendendo-se esta surdez até aos profissionais especializados. Poucos conseguem transpor a desorganização interna que, imediatamente, se instala, causada por uma informação desta. Assim, até hoje, com todos os estudos e as evidências da necessidade da Escuta Especial, ou das Salas de Depoimento Sem Dano, as Salas de D.S.D., continuamos encontrando profissionais referendados pela Justiça, que pensam possuir um “olhômetro” de alta precisão, e praticam a pré-histórica e traumática Acareação, tão usada nos fundos de delegacias quando há um psicopata negando um crime, praticada por pessoas que se acreditam possuidoras de detectores de mentira. A Acareação de uma criança com seu suposto/denunciado abusador é uma violência sexual, uma revitimização, que tem sido cometida em pretensas perícias psicológicas.
     A estimulação por carícias, manipulações, ou penetrações, estas muito menos frequentes, no entanto, mostrando um aumento de ocorrência que atribuo à crescente cultura da transgressão sem punição, e às novas coberturas judiciais deferidas a favor dos abusadores, esta estimulação rompe a infância e promove um desenvolvimento sexual precoce. A perversão da sexualidade infantilizada de um adulto abusador, imposta, precocemente, à criança, opera uma bifurcação em seu desenvolvimento: a hipossexualidade, e a hipersexualidade. Pelo teor traumático, para evitar a morte psíquica, são acionados mecanismos de defesa do ego que tentam minimizar a sexualidade brutal naquele momento. Negar, ou, ao contrário, banalizar e minimizar, são posturas psicológicas buscadas para a proteção da mente.
     A hipossexualidade pode lançar mão de alterações corporais para excluir atrativos estéticos externos. A obesidade e a anorexia estariam nesta categoria. O objetivo por trás da deformação e feiura do corpo  é obstruir a possibilidade do olhar de desejo do outro.
     A hipersexualidade teria a função de banalizar, de esvaziar a importância sexual do terror do abuso. Os comportamentos de promiscuidade, a prostituição, e os comportamentos de predadores e predadoras sexuais, são exemplo deste mecanismo de defesa, que, por vezes traz em seu bojo a equivalência de vingança desejada e reprimida, então deslocada e generalizada para todos, homens e mulheres, praticada, indiscriminadamente, sem nenhuma culpa. È a descrença afetiva no outro, outra sequela da vítima de abuso.
     O corpo pode se tornar palco de sexualidade ou de não sexualidade, mas também pode se tornar arena de ataques de vingança, mais precisamente, de autovingança. É muito frequente que a negligência se faça neste corpo violado, afinal, ele não vale mais nada porque sujo. Para além da negligência expressa em várias formas, também os comportamentos de pequeno, médio e alto risco tem o corpo como alvo. Acidentes frequentes, e até a morte por suicídio voluntário ou “acidental”, são a expressão da tentativa de se livrar do corpo maldito, como é vivido. Às vezes, é preciso matar este corpo para se livrar da dor permanente insuportável que ele causa à mente.  
     O medo é uma característica em crianças e adolescentes abusados, e adultos sobreviventes do abuso incestuoso. Pela sensação de sujeira, pela culpa, pelo sistema de humilhação estabelecido, pela intimidação feita pelo abusador, a vítima de abuso permanece neste ponto de estresse basal, acompanhado sempre pelo distúrbio da autoestima. A dúvida plantada em sua mente, por vários fatores decorrentes da falta de prova, sobre a veracidade do fato do abuso, se derrama por todas as áreas psíquicas, tornando-se a dúvida generalizada de todas as capacidades cognitivas e afetivas. Assim, crianças e adolescentes vítimas, e adultos sobreviventes, são inseguros. A vulnerabilidade infantil inicial se cristaliza, a dependência ao outro é intensa como na infância. A autonomia psicológica fica impedida de se desenvolver.
     A imposição familiar, social, e hoje, judicial, de convívio com o abusador é responsável pela manutenção de todas as sequelas causadas pelo abuso. Assim, é banida a possibilidade de regeneração do tecido psíquico dilacerado pela continuidade da exposição à situação traumática nesta exigência equivocada de convívio. É como se vítimas do holocausto tivessem que morar para sempre no campo de concentração em que foram torturadas. O desânimo, a desesperança, são as únicas sensações na mente ressecada. E, acontece a desistência que tudo inunda.
“Meu pai frequentou minha cama desde que eu era pequena,não sei quantos anos eu tinha, parece que sempre. Nada adiantava. Casei duas vezes, não deu certo. Voltava. Depois que me separei, desisti, e deixava ele fazer o que quisesse com meu corpo, até dormia, e no outro dia via na minha vagina que ele tinha tido prazer sexual”. Mulher de 28 anos falando de sua desistência.
     O medo de enlouquecer. Segredos de abuso, quando revelados após muitos anos, desencadeiam uma sequência no pacto da cisão que foi rompida com esta revelação. Sedimentada pelo tempo e pelo aprimoramento permanente desta ocultação, o abuso sexual intrafamiliar, a revelação tardia opera nova fenda na mente: a cena do abuso passa a ser apenas a sequência das palavras reveladoras, descoladas da emoção das cenas abusivas. Agora adulto, o sobrevivente do abuso se vê olhando um filme do que relata, e as palavras são repetidas e duvidadas da sua veracidade. Este é um fenômeno psíquico de graves consequências, pois resta como forte sensação de enlouquecimento. As palavras são vazias de emoção e as imagens fogem da mente e ficam muito difíceis de serem resgatadas. O resultado é que a emoção ressurge em intensos ataques de apreensão, angústia, medo, agonia, desespero. Intensidade extrema e ausência total de algum mínimo sentido aparente. O vazio pleno da situação traumática do abuso reaparece nestas crises que se assemelham ao estado de pré-surto psicótico.
“o incrível é que os ataques de ansiedade que me invadem, aparecem quando acontecem coisas boas, vem um pânico horrível, com coisa ruim nunca tive”. Mulher de 51 anos, abusada pelo pai durante toda a infância, e que revelou para a mãe aos 12 anos, a mãe ouviu em silêncio e a levou para a psicóloga, mas nada mudou na casa que continuou mergulhada no silêncio do incesto.
     Talvez as sequelas possam ser pensadas em sua dimensão devastadora como montando um sistema familiar incestuoso fechado, ao qual a criança não tem acesso. Impresso em seu âmago, cristalizado, este sistema fica no modo de funcionamento automático, ou seja, toda nova possibilidade de relação cai no circuito fechado do sistema incestuoso: prazer com gosto de pecado, fidelidade à transgressão.
     Este sistema familiar incestuoso que abriga e acoberta o crime do abuso sexual dentro da família, tem hoje um correlato praticado pela Justiça. Operadores, ávidos por ampliar sua atuação para dentro da família, legislando as velhas e novas relações interpessoais e amorosas, tem se precipitado em novas modas sentenciais, a Alienação Parental neste momento, o que tem patrocinado a mumificação de mães que buscam proteção para um filho ou filha abusado/abusada pelo pai, jogando o manto da Justiça sobre o abusador que muito tem se beneficiado. Assim o sistema incestuoso, apesar de toda precisão e força da letra da Lei, vem se tornando inimputável na prática.
     Estas são algumas consequências nocivas, negligenciadas por quase todos nós, desta tatuagem na alma de meninos e meninas, que se torna uma sombra social.

Artigo apresentado no 1º Fórum Municipal Contra Violências - Prefeitura de Macaé -RJ

terça-feira, 14 de julho de 2015

Artigos –
O menino Bernardo e o juiz Fernando – Por Ana Maria Iencarelli

Artigos – <p>O menino Bernardo e o juiz Fernando – Por Ana Maria Iencarelli
Há um ano e quase três meses morria Bernardo Boldrini, aos 11 anos, assassinado por familiares próximos. Foi veiculado pela mídia que uma rua de sua cidade, Três Passos, no Rio Grande do Sul, iria receber seu nome. Homenagem justa, justíssima, apesar de inócua em todos os sentidos, principalmente em relação a sua vida, precocemente, ceifada.
Bernardo sobreviveu à tortura diária que era submetido pelas suas figuras de autoridade familiar e judicial, com a anuência do entorno social, resistindo o quanto pode. Continuaria sobrevivendo se não tivesse sido assassinado, seria mais um sobrevivente de violência e maus tratos intrafamiliares. São milhões de crianças que crescem no “seio da família”, sob este regime de tortura física, psicológica e sexual por causa da surdez das instituições que tem por objetivo escutá-las e protegê-las.
Aos 11 anos Bernardo foi, por iniciativa própria, sozinho ao Fórum de sua cidade buscar socorro. Não foi atendido, o Juiz Fernando Vieira dos Santos, da Vara da Infância e Juventude de Três Passos, chamou o seu pai e, em audiência por acareação, e, usando o instrumento mágico chamado “olhômetro” para ver “tudo” que se passava naquela família. Atendeu ao pai, dando-lhe uma “segunda chance”, e deu um prazo de 03 meses para que as relações em casa melhorassem. Esqueceu ou desconsiderou a investigação do Ministério Público, sobre o pai, aberta desde 2013, sobre negligência afetiva e abandono familiar, e que tinha ouvido o menino em janeiro de 2014. Bernardo, mesmo no inverno rigoroso de Três Passos, ficava sem agasalho na rua porque a porta de sua casa lhe era trancada, obrigando-o, por conta própria, a pedir abrigo na casa de amiguinhos. Dormia várias noites de favor, até que a porta lhe fosse destrancada pelos seus pais, pai e madrasta. Dentro deste prazo dado pelo MM Juiz Fernando, que confiou mais no calo social do que nas evidências já em investigação pelo Ministério Público, Bernardo foi assassinado pela família em menos de 01 mês.
Bernardo Boldrini foi visto vivo pela última vez em 04 de abril de 2014. Em 14 de abril, seu corpo foi encontrado enterrado em terreno a 80km de sua cidade. Uma injeção letal. A perícia diz que a receita do medicamento injetado era do pai, médico, a aplicação da injeção foi da madrasta, enfermeira, o sumiço do corpo em cova artesanal, teve ajuda da amiga e do irmão desta amiga do casal.
O Juiz Fernando Vieira dos Santos sentenciou Bernardo ao desqualificar seu pedido desesperado de ajuda, ao desacreditar no que falava, no seu limite, ao violar seus direitos fundamentais escritos no E.C.A. e na Constituição Federal. Seguindo o calo jurídico e social do estereótipo de que “pai é pai”, acrescido dos outros calos míticos de que “pai só quer o bem do filho”, ou “todo pai ama o filho”, ou “filho implica com madrasta por ciúme”, o Juiz Fernando não cumpriu sua função na Vara da Infância e Juventude, e condenou Bernardo a uma pena que não está escrita no nosso Código Penal. E que é rechaçada pela sociedade.
Calos sociais, crenças, ditados, lendas, são transportados em bruto para a esfera da Justiça, ignorâncias e incompetências travestidas de verdades, e tem patrocinado injustiças e violências perpetradas em mentes vulneráveis, porquanto em desenvolvimento ainda. A corrupção não se dá apenas na área financeira. Um calo social advindo de um ditado equivocado proferido por uma voz institucional é uma corrupção intelectual de grande irresponsabilidade. Denota a intencionalidade de se alojar em zona de conforto egoísta. Os calos sociais, em posse de Operadores de Justiça e de Operadoras de Perícias Psicológicas, tornam-se “verdades absolutas”, ou calos profissionais, e promovem aberrações que encobrem a preguiça profissional, o descompromisso, a inconsequência e a má-fé.
Acreditar que seu “olhômetro” lhe fornece a verdade em uma audiência ou em um laudo psicológico, é um ato de onipotência que desconsidera a enorme capacidade manipuladora dos psicopatas, perversos que se regozijam com o prazer do poder e da tortura sobre uma indefesa criança, física, psicológica ou sexualmente.
Sugiro, para que estes calos jurídicos e sociais míticos não matem, psíquica ou biologicamente, outras crianças, que o nome do Juiz Fernando Vieira dos Santos seja dado ao Fórum de Três Passos, cidade de Bernardo Boldrini. Não como homenagem, longe disso, mas como alerta para todos os Operadores de Justiça que ali trabalham. Como foram transformados em museus e pontos de visitação os campos de concentração do holocausto e cemitérios do massacre ocorrido para que não seja esquecida também esta sentença. O Fórum da cidade de Bernardo deve lembrar o erro fatal e letal.
Não se pode esquecer. A punição silenciosa da Corregedoria não contempla a ação preventiva contra este tipo de erro. Ao perguntarmos quem foi o Juiz Fernando Vieira dos Santos, nome escrito no Portal de entrada do Fórum de Três Passos, o que ele fez de importante, estaremos cumprindo uma homenagem à memória de Bernardo. Faz-se necessário que esta lembrança seja presentificada para evitar outras mortes de criança. Nem sempre “pai é pai” e acabou. O infanticídio foi tolerado até o século XVII, e ainda hoje vigoram “máximas” infundadas. A posse das crianças é referendada por todos. Confunde-se responsabilidade com posse, agravado pelo mito de que toda mãe, todo pai, ama o filho. A violência institucional contra crianças e adolescentes tem sido tão endêmica quanto a violência das ruas.
Ana Maria Iencarelli é psicanalista de criança e adolescente. (63)

quarta-feira, 24 de junho de 2015


                                  ABUSO SEXUAL, um passo à frente

       A inauguração no último dia 17/06 de um novo CAAC, Centro de Atendimento ao Adolescente e à Criança, dentro do Hospital Souza Aguiar no Centro do Rio, deve ser muito comemorado! Seguindo o melhor necessário, resultado de uma feliz e responsável parceria entre Polícia Civil, Ministério Público Estadual, Secretaria Municipal de Saúde, e Instituto Bola para Frente, o Serviço conta com cartório e salas especiais para gravação de depoimentos e para realização dos exames necessários.
       Foi na Pediatria do Hospital Souza Aguiar, no Serviço do Dr. Lauro Monteiro, que a ABRAPIA, ONG que buscava o combate e a proteção às diversas formas de violência contra criança e adolescente, teve sua pré-história. Ser levada após uma violência desta ordem ao hospital geral é da maior importância, porquanto evita mais um estigma.
       Vale ressaltar que esta estrutura, incluindo a gravação de depoimentos de crianças e adolescentes, que diminui a revitimização, reduzindo, portanto, o dano, é a efetivação do Princípio do Melhor Interesse da Criança, hoje tão negligenciado por várias instituições que deveriam zelar pela integridade e bom desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
       Curioso verificar que é o Executivo que, em parceria, tem a responsabilidade consequente de equipar um serviço tão, obviamente, necessário, mas que vem sofrendo questionamentos que só beneficiam os abusadores, deixando nossas crianças expostas e submetidas a práticas sexuais perversas.
       Em nome dos milhares de meninos e meninas, crianças e adolescentes que tem a tatuagem do abuso sexual, marcada a fogo e dor na alma, agradecemos a vontade política consistente deste ato. Obrigada Governador Pezão, obrigada a todos que participaram desta construção social, e muito obrigada ao Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, que teve a sensibilidade no olhar para além dos crimes por faca, bala, e viu os cotidianos assassinatos psíquicos que são cometidos pela prática do abuso sexual, esta sombra social de desastrosas consequências. São criminosos de alta periculosidade se, considerarmos o dano permanente, com risco de ser o nascedouro de mais um criminoso, um novo abusador incestuoso ou um possível serial killer. Mas afirmo, um transgressor. Iniciativas como esta devem ser apoiadas, divulgadas e persistentes.
       Cabe a todos nós o cuidado para garantia do funcionamento deste Serviço Essencial para a saúde mental e social destas crianças e adolescentes. E que a vontade política se mantenha na multiplicação desta ação fundamental, em mais Serviços e na manutenção da qualidade.

terça-feira, 23 de junho de 2015



                                                  VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA


         Temos mais e mais crianças mortas por violência doméstica intrafamiliar. Emblemáticos: Joana, tirada da mãe pela Justiça pela falsa alegação de Alienação Parental e entregue aos seus algozes, pai e madrasta, e Bernardo, que aos 10 anos foi à Promotoria pedir socorro, não foi escutado nem acreditado, e teve morte intrafamiliar. Ambos, vítimas de todos nós em erro técnico, em omissão, em negligência e em pró-atividade.
        Mas é a violência sexual que mais está devastando nossas crianças porque mata por dentro. O advento da Alienação Parental veio trazer mais um véu de “alívio” na difícil tarefa dos Operadores de Justiça de se aproximar da verdade oculta, diria um manto impermeável a este crime hediondo, mesmo que ainda não assim tipificado. Nas Varas de Família o abuso sexual acabou, só existe a Alienação Parental Sexista, porque querem fazer crer que todas as mães, ressentidas, por retaliação a praticam, desconsiderando que mulheres já não dependem mais de seus maridos como no início do século passado. Sem rastro, sem testemunhas, sem provas, este crime quase perfeito goza de privilégios cada vez maiores de pais que rasgam sua função paterna, rompem com a interdição do incesto, e marcam com uma tatuagem a alma de meninos e meninas, seus filhos e filhas, e permanecem protegidos pelo manto da impunidade. A escuta do relato da criança é sempre desqualificada. E seus direitos fundamentais violados por toda sua infância.         
         Esta é a pior das formas de violência contra crianças e adolescentes. O abuso sexual intrafamiliar tem como componente uma devastadora e permanente violência psicológica. Mesmo quando não há nenhum vestígio cutâneo, o abuso sexual fere e corta com carícias, humilha e desorganiza psicologicamente, e destrói a sexualidade em desenvolvimento. São inúmeros os prejuízos permanentes causados pelo abuso sexual intrafamiliar. Traumas relativos ao mecanismo psíquico do segredo, do prazer proibido, da transgressão, da impotência, da mentira, são, profundamente, enterrados, mas reaparecem ao longo da vida trazendo à tona emoções e dores em estado bruto, o que torna cada episódio deste de retorno do reprimido um desastre porque não é compatível com a situação do presente. Para citar apenas duas sequelas, pois elas são pouco estudadas, mas abrangem ampla área que vai desde os distúrbios de aprendizagem que prejudicam a vida adulta, até os graves desvios de caráter. A escolaridade em sua aquisição de conhecimentos é baseada na lógica, no certo e no errado, na discussão de argumentos. Como carregar todos os dias para a escola o segredo do abuso, o errado que aquele pai impõe como certo, proibido de discutir e de buscar a lógica de ato ilógico, mas praticado por aquele que a criança ama e obedece. Aprender a mentir, a fingir, a ser cúmplice em tão tenra idade, tendo como preceptor o modelo masculino pleno de afeto e autoridade, e que ensina outras coisas também, desestrutura a formação da personalidade. Esta obstrução pela violência praticada em carícias e prazeres sexuais precoces, para a qual a criança não tem resiliência possível, enquanto ser vulnerável por definição, dá lugar a desvios que podem levar, pelo jogo das identificações, à repetição deste comportamento perverso, equivalente à Síndrome de Estocolmo, ou pela contraidentificação à conduta de justiceiro com as próprias mãos, já que a crença na Justiça foi esmagada pelo descrédito em sua palavra, o sociopata, o “serial killer”. Esta sombra social que amputa cidadãos, nascida e abrigada por todos no âmago das famílias, é uma tatuagem na alma de meninos e meninas. O Princípio do Melhor Interesse da Criança tem sido esquecido.

terça-feira, 3 de março de 2015

Artigos
Guarda compartilhada? Guarda com partida! – Por Ana Maria Brayner Iencarelli

Artigos <p>Guarda compartilhada? Guarda com partida! – Por Ana Maria Brayner Iencarelli
Hoje temos uma profusão de novos “parentes”. Uma criança tem um meio-irmão, um meio-pai, ou, uma meia-mãe, uma meia-família. A Justiça de Família, mãos de tesoura, parece que quis fazer parte do mundo das cisões, e instituiu a meia-criança pela dita Guarda Compartilhada, que efetivou a Guarda Com Partida. Criança partida ao meio, uma semana na casa da mãe, uma semana na casa do pai, por exemplo, e seus cadernos e afetos perdidos pelo meio do caminho. Criança caramujo, que carrega seus pertences nas costas.
A lei da Guarda Compartilhada é um equívoco para o desenvolvimento saudável da criança. Esta Lei não contempla todas as crianças. Os Operadores de Justiça não tem escuta nem olhar para os sujeitos de direito que foram eleitos pelos legisladores. Espera-se que nós adultos, já não acreditemos mais em coelhinho da páscoa trazendo ovinhos de chocolate, ou seja, não podemos sacrificar uma criança obrigando a mãe e o pai a dividir suas vidas para atender a operacionalidade da dependência infantil, considerando que nosso modelo predominante de responsabilidade com os filhos não é este nem na vigência dos bons casamentos. Só no cotidiano, são os compromissos escolares e extraescolares, horários, responsabilidades, que tem que ser cumpridos. O caderno de história, onde ficou? Diriam alguns que dividir a vida da criança em duas do mesmo tamanho, seria ideal. Engano. Casais que se separam precisam fazer um processo de luto pelo término da relação, mesmo quando esta foi consensual. O luto é mais sofrido quando há litígio, é claro. Pensar que é possível deixar fora desta dor de muitas dores, a convivência e administração das atividades do filho comum, é pura ingenuidade. As pessoas sentem raiva, amor inacabado, frustração, tristeza, alívio, uma infinidade de sentimentos. É normal e saudável, e não pode ser trocado por um decreto lei de falsificação do estado emocional natural à ocasião. Decretar que os desentendimentos vão ficar fora dos momentos relativos ao filho é autenticar mais uma falsificação da nossa sociedade cenográfica. É mais um faz de conta. É mais um convite compulsório ao fingimento, com tolerância zero pelas dores e sentimentos.
Difícil entender o ponto de vista que passo a expor. Como Psicanalista Clínica de Criança, completando, daqui a três meses, 42 anos de formada, ouso dizer que para os filhos, principalmente para os mais novos, os pais não poderiam nunca se separar. Marido e mulher podem, sempre que assim o decidirem. As crianças não querem que seus pais se separem, mesmo quando, racionalmente, acham que eles brigam muito ou que seria melhor para ambos, enfim, quando já conseguem pensar e considerar o outro. Pai e mãe foram “feitos” para ficar juntos na mente infantil. Portanto, em quase nada satisfaz ter igualdade de tempo cronológico de mãe e pai pós-separados. O tempo importante para a criança é o tempo afetivo, o tempo da presença psicológica até na distância física, o tempo da responsabilidade empática que garante a proteção para a vulnerabilidade da criança. Seria maravilhoso se o tempo cronológico dividido em dois funcionasse para a mente da criança. Esta conta não fecha com a realidade.
A necessidade humana de pertinência a um grupo familiar que funcione como tal, mesmo que os papéis não sejam formalizados pelos seus títulos, é explicitada desde as primeiras aquisições do desenvolvimento psicológico, as primeiras palavras pronunciadas, as primeiras demonstrações de afeto quando ainda bebê. Observamos isto nos primatas, a organização do grupo segue uma modelo de pertencimento. É emblemático o simulacro de família em grupos de crianças de rua, com a formação familiar estabelecida nas funções pai, mãe, irmãos, até quando não houve experiência de família. Os laços consanguíneos não estão presentes, o que vigora são laços que contemplam esta necessidade de pertencimento a um grupo familiar com funções protetivas determinadas.
Estas mesmas crianças que vivem nas ruas, além desta demonstração da necessidade de um “território afetivo protetor”, nos oferecem ainda a necessidade de “território físico”. Mesmo vivendo sem paredes e portas, tendo a calçada como endereço, estas crianças costumam frequentar um mesmo espaço da polis. Isto significa que também é importante para o desenvolvimento de uma criança, mesmo em condições adversas, que haja uma referência, pessoa referência, espaço referência. É indispensável que seja respeitado este fundamento, referência, o princípio de pessoa referência, para amparar a demanda do processo de organização psíquica da criança. Como exercício, proponho que cada um se imagine nesta condição de ter a vida em duas casas. A mente da criança é muito espalhada, desorganizada, dispersa, de muita multiplicidade. Precisa de organização, no sentido amplo do conceito. É a contenção que estrutura a liberdade.
É, absolutamente, contrário à saúde mental da criança este regime de duplicidade: são dois sistemas de valores, de disciplina, de tolerância, de hábitos alimentares, etc. A criança não possui ainda recursos para enfrentar este duplo e administrá-lo sem prejuízos consequentes. Não há como ele viver como um aparelho de rádio, mudando de faixa, de AM para FM, impunemente, a economia psíquica não o permite. Portanto, afirmo, por estudo e constatação técnica, que ao contrário da visão rasa do achismo do ter duas casas, de ter dois tempos iguais com o pai e a mãe, este sistema que está sendo obrigatório nas visitações, é enlouquecedor para a criança. É a promoção avassaladora do falso self, conceito psicanalítico que define a personalidade “como se”com a vivência interna de imenso vazio, a personalidade “como se”, a personalidade que não se pretende ser, o que importa é, apenas, parecer. Além da produção desenfreada de falso self, a Guarda Com Partida pode ter uma atuação ainda mais grave se pensarmos no caráter divisório da mente que ela impõe. O duplo que se constitui na cisão é semelhante à cisão da mente nas psicoses. Não há produção da doença, mas há o estímulo para o desencadeamento da doença nas crianças que são portadoras. E também, neste sistema de duplicidade de vida, há um treinamento de comportamento psicótico. Falsos selfs e psicóticos serão numerosos. A possibilidade de cidadania, sombria.
A Guarda Compartilhada estabelecida em outros países tem sido reformulada. Canadá e Estados Unidos, e outros, já estão restringindo seu campo, antes ilimitado como foi promulgada no Brasil. A Austrália revogou em 2011 a lei da Guarda Compartilhada, que tinha entrado em vigor em 2006. Baseado em estudo científico, os danos consequentes foram apontados em sua nocividade, e em 05 anos ela morreu no seu nascedouro de ilusão de bondade de adultos feridos pela separação. Estudo científico, há que se produzir, para não cairmos nos achismos de técnicos que ditam afirmações rasas, porque, mal formados, neste enganoso mar de crenças em que afundamos cada vez mais. Sem ciência, não crescemos, rodamos em círculo ou regredimos.
Por acaso, alguém realizou um estudo para saber da operacionalidade desta Lei no Brasil? Ou, como em tempos que não gostamos de lembrar, a lei vem ditada de cima para baixo? Sem considerar nossa especificidade como nação mestiça de muitos, cultura de composição de várias tradições, de muitas importações, que entrou precocemente no consumo de máximas alheias, um pequeno grupo, por achismo, fez o lobby da fábula das pessoas maduras e frias que nada sentem quando se separam, e tem uma “enorme” preocupação com as crianças. Falta-nos conhecimento técnico, falta-nos sabedoria que vem com a experiência, falta-nos paciência, falta-nos bom senso. Não existe mágica quando se trata do humano. Não há família instantânea, nem separação twitada.
O princípio do melhor interesse da criança fica para depois. Afinal, até o século XVII o infanticídio foi tolerado legalmente. Até hoje temos Bernardos que, iludido pela esperança de ser escutado, buscou os órgãos da justiça para pedir proteção. Foi assassinado pelas pessoas que, timidamente, ele denunciava. A palavra da criança está sendo completamente desqualificada por grande parte dos Operadores da Instituição que lhe nomeou Sujeito de Direito. Continuaremos fingindo que está tudo bem com a fábula da família coração.
* Ana Maria Brayner Iencarelli é psicanalista de criança. (34)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

As crianças de Barueri e as outras – Por Ana Maria Iencarelli

Artigos <p>As crianças de Barueri e as outras – Por Ana Maria Iencarelli
Psicopatas conseguem, com facilidade, convencer muitas pessoas de sua inocência. Este traço de sua personalidade, a capacidade de manipulação, é um sintoma patognomônico. Infelizmente, entre estas muitas pessoas, estão muitas vezes incluídos Peritos Técnicos, ou aspirantes a, e, Operadores de Justiça. Aquela frase de nossas avós e bisavós é correta: as aparências enganam. A questão se torna grave quando se trata de crianças vítimas de abuso sexual por parte de um adulto perverso e convincente em sua auto vitimização.
A mídia sofre da ação do lobby dos abusadores sexuais de criança. É mais espetacular quando há comoção ou possibilidade disto. Mas, se ela é deixada em compasso de  espera, perdendo a possibilidade de promover a comoção social, então, parece que se deixa atrair pela promoção da dúvida, até quando as evidências são incontestáveis, e pela indução à manipulação da opinião pública na defesa do “pobre abusador”.
Felizmente, a Justiça no caso de Barueri cumpriu, rigorosamente, seu papel e sua função. Não se deixou seduzir pelas câmeras da mídia. É simples cumprir o dever. E faz bem para quem foi violado em seus direitos fundamentais, posto que, violentado em seu corpo e alma. Neste caso, temos que considerar que não era um abuso intrafamiliar, e que fazia parte da porcentagem mínima de casos que têm provas concretas. No entanto, se fosse abuso sexual intrafamiliar, tenho certeza, a fantasia do mito da família feliz teria prevalecido, da dita necessidade do pai para o desenvolvimento infantil, até quando ele comete crime sexual contra o filho/a, e assim, como é hoje de alta frequência, a imagem cenográfica da publicidade de margarina no café da manhã “feliz”, teria prevalecido. Sendo o abuso sexual intrafamiliar, porquanto incestuoso, um crime quase perfeito, que se garante na sedução e ameaça verbal, nada é comprovável, visto que apenas cerca de 5% dos casos envolvem penetração.
Infelizmente, esta resposta justa, como aconteceu com as crianças de Barueri, que considera os artigos do E.C.A. que rezam pela proteção de crianças e adolescentes, não tem acontecido com frequência. Crianças têm sido desprotegidas por Operadores de Justiça, que ordenam a entrega de crianças abusadas a seus abusadores, pela justificativa de que pai é importante para o desenvolvimento da criança. Claro que é. Mas quando um pai viola o corpo de seu filho ou sua filha, violando irremediavelmente a mente dele ou dela, este pai está rasgando seu certificado de paternidade. Família feliz, pai legal, permeado por abuso sexual, só nas campanhas publicitárias de marcas de margarina ou de seguro de vida. Na vida real as crianças vão sendo revitimizadas a cada “convivência”, judicialmente determinada.
O conceito de trauma, vulgarizado e pouco compreendido, inclui também o trauma cumulativo, este que ocorre quando a criança é obrigada à convivência com seu abusador. Basta um minuto, pela presença, pelo local ou proximidade, por uma palavra, um gesto, um olhar, para que se restabeleça na mente da criança a cena do abuso, e isto é equivalente a um novo abuso, mesmo que neste minuto ela não seja nem tocada pelo seu abusador. É a vivência psíquica do abuso.
Lamentavelmente, corrompem-se conhecimentos técnicos na prática de silogismos que tudo “provam” e induzem, e são produzidos laudos com pouquíssima decência quando colocados à luz do E.C.A., Estatuto da Criança e do Adolescente.
Lamentavelmente, as outras crianças, muitas, muitas, milhares, talvez milhões, não tem o mesmo tratamento respeitoso à sua palavra e à sua integridade que tiveram as Crianças de Barueri. Bernardo morreu assassinado por ter pedido ajuda e proteção à Justiça. Era seu direito fundamental.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

GUARDA COMPARTILHADA: o que não está sendo considerado

     Que os filhos não devem sofrer nenhum processo de afastamento quando da separação dos pais, todos concordamos é claro. Afinal, não há divórcio para filhos. Mas, há uma ilusão que perpassa a tese da Guarda Compartilhada Obrigatória, lei sancionada recentemente.
     Faz-se necessário considerar que uma Lei não muda um comportamento. Poucos, aliás, pouquíssimos são os homens que participam das operações diárias das crianças. Estas raras ações são, em geral, negociadas pelas mães, sendo seguidas nos casos de sucesso da negociação, por autoelogios, comparações com os maridos das amigas, assim como seguidos por uma busca de infindáveis recompensas junto à mãe da criança, configurando, claramente, o caráter de favor prestado.
     Os pais homens não dão uma passadinha no supermercado depois do trabalho, espontaneamente, porque lembraram que o leite ou a fruta da criança está acabando. Até quando lembrado, expressamente, pela mãe, eles podem esquecer. Não é por maldade, é por cultura.
     Os pais homens não internalizaram que o filho é responsabilidade da mãe e do pai, igualmente. Só que este “igualmente” não quer dizer que maternagem e paternagem sejam funções iguais. Ou que o tempo físico deve ser dividido no meio, como se a criança pudesse ser dividida no meio.
     É lamentável que os Operadores de Justiça estejam desconsiderando o comportamento masculino. Curioso é que estes mesmos Operadores que estão exultando com a sanção da Lei da Guarda Compartilhada, eles mesmos tenham o ranço do machismo e da misoginia. As mulheres estão pagando o pão que o diabo amassou por terem ousado a autonomia, o profissionalismo, os direitos legítimos como sujeito que são. São acusadas de vingativas porque não suportam serem trocadas por uma outra, são acusadas de uso de seus filhos crianças como moeda de troca, são acusadas de se fazerem de vítimas dos ex-maridos. Estes, uns fofos. Se assim fosse, a Lei Maria da Pena não estaria sendo tão desobedecida. É cotidiano, entre nós, o comportamento violento de homens contra suas mulheres, e não diminuiu o número de homicídios de mulheres por torpes motivos machistas e misóginos.
     Gostaria de saber por que só as mulheres ficam frustradas quando de um rompimento matrimonial? Os homens são muito resolvidos emocionalmente, e entendem muito bem quando são trocados por um outro homem? Neste momento da troca de amor da mãe, eles se referem à mãe só com adjetivos elogiosos para a criança?
     Gostaria de saber também se a nova Lei vai tirar o pai do sofá da televisão, do jogo de futebol, da cervejinha no boteco com os parceiros de copo, para ficar com o filhinho ou a filhinha brincando de carrinho ou de boneca, ou para dar a refeição ou fazer adormecer.
     Gostaria de saber se obrigando o pai a ter mais tempo físico, cronológico, sem considerar a mentalidade masculina e machista em vigor, aumentará o afeto entre pais e filhos?
     Sociedade cenográfica inspirada em publicidade de margarina no café da manhã garantindo pelo produto a família feliz, é arremessar as próximas gerações em direção ao aumento exorbitante de falso self, formação de personalidade “como se”. A imitação e a identificação são alicerces iniciais da formação da personalidade. Os adultos estão sendo obrigados a fazer de conta que está tudo bem, estão sendo proibidos de sentir o que sentem por dentro, dissimulando por decreto a saudável coerência entre dentro e fora deles. As crianças farão o mesmo, dissimularão.
     Lamentável também que a semântica de uma linha de um psicanalista, venha reger a nomenclatura que deve ter o rigor da Lei. Trocar o termo “Guarda Familiar” por “Convivência Familiar”, é pegar um significante, como é do uso da linguagem jurídica atual e minimizar, mitigar, fragmentar, a responsabilidade contida no conceito. Convivência se tem com vizinhos também e eles não tem responsabilidade com nossas crianças. “Guarda” tem o significante de objeto sim, mas de objeto de responsabilidade.  
     Lamentável que instituímos, mais uma vez, o faz de conta na nova Lei. Faz de conta que, por causa da Lei da Guarda Compartilhada, os pais homens vão se tornar extremamente devotados, que eles vão abrir mão de seus hábitos, não vão entregar suas crianças para suas novas namoradas ou para parentes e vizinhos para ir se divertir com suas novas namoradas, que estes ex-maridos não vão proferir que adjetivos elogiosos quando se referirem à mãe da criança, inclusos os divórcios litigiosos. Só entendimentos e afagos.
     Lamentável que não tenhamos a compreensão de que não há “gozo” e sim luto, um processo como toda perda afetiva, como bem define a autora jurista Maria Clara Sottomayor. Criminalizando, complicamos o que é delicado. Não é obrigando por uma Lei que iremos proporcionar o bem estar afetivo de sustentação para a criança. Não tem sido considerado, por exemplo, que as tais “duas casas” são, predominantemente, nocivas ao desenvolvimento psicológico e à saúde mental das crianças. Estamos patrocinando uma verdadeira obesidade de agravamentos de litígios entre adultos ex-casais e de adoecimento de crianças que sofrem com esta obesidade. Há muita fragilidade na formação teórico-técnica e nas especializações dos profissionais de psicologia, que deveriam prestar uma assessoria e um acompanhamento de qualidade, vide mídia, torna a situação ainda mais grave. Pensar que um casal em processo de divórcio litigioso, brigando com ou sem razão por qualquer coisa da partilha, por exemplo, “obedecerá” a lei de ótima convivência quando, no momento seguinte, for resolver sobre o rendimento escolar, se aula particular ou disciplina mais exigente de uma criança, é pura ilusão, puro faz de conta.
     Como já afirmamos uma lei não muda um comportamento. Ainda mais no reino da injustiça e da impunidade. Os países que tem a Guarda Compartilhada como procedimento comum tema prática do respeito às leis, do respeito aos direitos do outro, tem a prática de executar as devidas punições quando este respeito é violado. Querer pular etapas de desenvolvimento humano não traz o resultado sonhado porque não vamos ficar iguais a eles só porque temos uma lei igual no papel.
     A ditadura da lei imposta em sociedade despreparada pode ser desastrosa. Em meio ao clamor de pais homens, sedentos por igualdade de tempos de convivência com filho, abrigam-se, sob o manto da justiça, perversos que, com seus discursos vitimizados e de auto-alienação parental, não querem perder o tamanho do acesso que tinham ao corpo daquele filho ou filha, para usá-lo. A Justiça não tem o direito de ser ingênua. Já o foi no emblemático caso do Bernardo, que acabou sendo ouvido pela morte. Culpa ou dolo?
     Há que se entender que afeto não aparece por obrigação de estar junto. Os pais que estão tomando a cervejinha no botequim ou vendo o futebol na televisão amam seu filho ou filha sim! A obrigação de convivência não irá mudar estes hábitos, mas, certamente, deixará na criança o sentimento de desimportância, criando um problema para ela onde não havia. É o papel de pai que está sendo aumentado quantitativamente. Seria a função de pai que deveria estar sendo melhorada qualitativamente.
     Ditar por repressão que os sentimentos genuínos que advêm de uma separação, abortar o saudável processo de luto, que percorre do alívio inicial à tristeza das perdas subjetivas por um a dois anos, devem ser substituídos pela dissimulação desses sentimentos em prática de um falso self, fazer papel de, é construir no ar, comprometendo fatalmente a possibilidade de efetivação do compartilhamento das responsabilidades dos filhos. Se, a realidade mostra, com todas as letras, que não temos responsabilidade empática com as crianças, como vamos exercer a “Guarda Compartilhada”? O aumento da interferência da justiça dentro de nossos lares é uma evidência da imaturidade para gerir nossas famílias.

     Repressão autoritária, que nunca funcionou bem como método de evolução humana, tem em seus desdobramentos a indução à transgressão e à tortura, em suas diversas formas. Denuncia a precariedade de vivência de cidadania. Guarda Compartilhada é o melhor dos mundos para a criança. Mas, não há mágica, há processos de educação e amadurecimento, cultura, respeito ao outro e principalmente deveria haver à criança, e, o já monótono faz de conta pode nos custar muito caro.