segunda-feira, 27 de julho de 2015

ABUSO SEXUAL
Uma tatuagem na alma de meninos e meninas

Pensamento Mali:
“o melhor caminho entre um ponto A e um ponto B não é
uma reta, é um sonho”

     O infanticídio foi tolerado até o Século XVII. Os pais podiam, se assim decidissem, colocar seus filhos acorrentados, em masmorras, espancá-los também em público, e até matá-los, sem precisar dar satisfação a ninguém, porque aqueles filhos haviam desobedecido, ou eram portadores de alguma característica insuportável para eles pais. Tinham a posse e o destino dos filhos dependentes. Hoje, o infanticídio não é mais tolerado, mas continua a ser praticado. Isabela, Joana e Bernardo são emblemáticos. E continuará. A perversão com as crias só acontece em humanos.
     A interdição ao incesto é o marco do processo civilizatório da humanidade. Mas, prosseguimos sendo sub-animais.
     Richard Gardner, criador do conceito de Alienação Parental, era um psiquiatra que fazia trabalho não pago na Universidade de Columbia, como voluntário. Seus pareceres para processos judiciais, ele assinava como Professor, título que lhe foi ofertado, em cortesia, pela própria Universidade.
     Gardner criou as suas teses para defender acusados de violência contra mulheres e/ou de abuso sexual de filhos e filhas. Fez sua carreira profissional, como perito, defendendo homens acusados de abusar sexualmente de crianças, através da estratégia de desacreditar as vítimas, para inverter as posições, transformando o acusado em vítima. ( Barea Payueta/ Sônia Vaccaro, “El Pretendido Síndrome de Alienatión Parental, Editoria Desclée de Brouwer, 2009, p. 168 ).
     Em seu livro “True and False Accusation of Child Sex Abuse”, 19992, pp. 24-25, Gardner escreve: “as at’ividades sexuais entre adultos e crianças são parte do repertório natural da atividade sexual humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada e a faz ansiar pelas experiências sexuais que redundarão num aumento de procriação”.
     Assim, se o incesto é normalizado, não é visto como abuso sexual, sendo até recomendado por ele como benéfico para a criança, para o adulto, para a humanidade, a Alienação Parental justificada, ou seja, aquela que advém da situação da descoberta do abuso e consequente indignação e busca de afastamento para proteção da criança, se tornou também entre nós, “prova de alienação praticada pela mãe”. Hoje, com o incentivo à denúncia, o número de mães denunciantes se aproxima do número da mães que descobrem e se calam para sempre. Este grupo, a mim me parece, será sempre maior pelo uso de mecanismos típicos dos processos de identificação, e não se ttem a possibilidade de sabê-lo numericamente.
     A busca de proteção pelo afastamento do pai abusador, uma tentativa da mãe de evitar o contato sexual do pai com a filha que, segundo a tese de Gardner dos benefícios do abuso sexual incestuoso, está lesando a sobrevivência da espécie. (Jennifer Hoult, “The Evidentiary Admissibility of Parental Alienation Syndrome, Science, Law and Policy, 2006, p.19). Assim, a mãe é que está cometendo o crime, Lei 12.380/2010. Esclareço, escrevi apenas com a filha porque até o momento os meninos não se beneficiariam porque ainda não podem engravidar e práticas sexuais entre dois indivíduos do mesmo gênero masculino não conseguem implicar em procriação. Fica evidente o caráter sexista em modelo de supremacia do macho, dono da família. A estratégia de Gardner vem patrocinando um aumento vertiginoso de criminalização de mães protetoras pela falsa acusação de Alienação Parental feita por pais abusadores.
     “É enorme o aumento de Processos de denúncias de abuso sexual de crianças, todas mães, que atribuem a autoria ao pai. Graças a Deus, 100% é alienação parental das mães. Nenhuma é abuso sexual.” Afirmação de Juíza de Vara de Família.
     As falsas alegações de Alienação Parental feitas por pais abusadores, tem se proliferado em escalas assustadoras, se considerarmos as vítimas. Criminalizada, a Alienação Parental tem poucas possibilidades de prova, e hoje, como “pérola da vez”, se baseia tão somente na auto vitimizada alegação sem averiguação, apesar de haver criteriosa listagem de condutas bem elencadas por Rolf Madaleno, entre nós. Para transformar uma falsa alegação em “uma verdade”, os pais abusadores engendram a autoalienação com manobras, calculadamente, arquitetadas. Abusadores são perversos, são exímios manipuladores e fingidores. Muito fácil para eles montar esta inversão. Estes falsos comportamentos tem sido um sucesso judicial. Os Operadores de Justiça não estão habilitados a reconhecer esta ardilosa psicopatologia. Que, a nós, especialistas em doenças mentais, eles também enganam.
      É claro que Alienação Parental existe, por parte da mãe e do pai, e é nociva ao desenvolvimento saudável da criança. As mágoas e ressentimentos, justificados ou enquanto sintomas narcísicos,  acontecem após o término de uma relação amorosa. É um processo de luto, e como tal, tem seu tempo para ser processado naturalmente. Maria Clara Sottomayor em seu “Temas de Direito das Crianças”, considera um erro a criminalização da Alienação Parental, que, para ela, só traz o acirramento de afetos ressentidos, porque não espera o tempo do luto. Essa criminalização deste comportamento inadequado, mas natural, empurra as famílias para a falsificação, acrescida da obrigatoriedade da Guarda Compartilhada, Lei 13.058/2014, obrigatória até nos processos de separação litigiosa, engendrando  assim a produção do falso self.

A tatuagem na alma de meninos e meninas.

     A revelação ou a descoberta, quase sempre ocorre por acaso porque este crime não deixa nenhum rastro. A ocultação das práticas sexuais é objeto de cuidado meticuloso e calculado do abusador. O núcleo familiar sofre um tissunami que não tem fim. A primeira atitude, que parte de algum ou de alguns membros da família, incluindo a mãe, é duvidar da criança ou adolescente. A culpa da invasão de lama e destroços é da criança que revela. Mesmo quando não é dita uma frase que indaga por que ela resolveu falar agora, estragar tudo, há esta cobrança implícita. Como se ao vitimado coubesse a missão de guardar para sempre este segredo que combinou com seu agressor. Este golpe é muito danoso e fere profundamente. Depois de vários adiamentos, de vários ensaios de como falar, rasgando por dentro o túmulo do segredo, eis que apenas duvidam, reduzindo a pó todo o seu esforço de quebrar o pesadelo do segredo. A culpa transborda e a almejada paz não é alcançada. Ao contrário, a aflição aumenta, além do tormento da permanente lembrança torturante do abuso, a revelação traz ao vivo todo um sistema de insegurança pelo descrédito que paira sobre aquele que revela. Agora, são duas as dores: a culpa multiplicada e o descrédito do entorno.
“eu tenho pena do meu pai e me sinto traindo ele porque falei prá ele e prá minha mãe do abuso, Ele só tinha a mim para dar aquele amor agora eu quebrei o que prometi prá ele”. Mulher de 28 anos que revelou para os pais sobre os abusos dele na sua infância e adolescência.
     Pouco se sabe sobre as consequências do abuso na aprendizagem. Não é difícil refletir sobre o distúrbio da atenção, por exemplo. A concentração para manter secreto o abuso opera uma cisão com o mundo, uma equivalência de um quadro de autismo. A atividade escolar que pretende sempre aumentar o tempo de concentração da criança estimulando seu desenvolvimento cognitivo é uma sobrecarga de difícil coordenação nesta demanda de atenção. A criança ainda não tem os recursos suficientes para  organizar e administrar duas concentrações ao mesmo tempo.
     Além disso, toda a escolaridade fundamental está baseada no certo e no errado, no falso e no verdadeiro, e perde o sentido, mais que isso, se tornando esquizofrênica em seu caráter cindido. A criança sae que o errado é certo naquele segredo que mantem com o abusador. Mas fora da cena, ele mesmo a repreendem muitas vezes com rigor para manter sua intimidação e sua posição familiar e social de “correto”.
“passei minha infância sendo expulso da sala de aula, mas tirando notas altas, não era burro só não conseguia prestar atenção e bancava o engraçado para ser gostado, sempre me senti rejeitado por todos, meu pai dizia que fazia aquilo comigo porque ninguém gostava de mim, só ele”. Homem de 22 anos, abusado pelo pai na infância, cuja mãe foi afastada do filho e teve a inversão de guarda, foi acusada de falsidade ideológica pela denúncia de abuso que fez.
     A memória também é atingida. A criança tem que passar todo o seu tempo lembrando que tem que esquecer a lembrança, e lembrando que tem que lembrar para ocultar perfeitamente. O que sobra para a memorização da aprendizagem?
     A sensação de falsificação contínua, com a aprendizagem da mentira e sua culpa, afeta a formação da identidade. O segredo culposo que a criança carrega durante seu desenvolvimento, produzirá uma obstrução, maior ou menor, mas sempre presente, no processo de formação da identidade. Estas crianças crescem sem saber quem elas são. Encontramos os adultos tatuados pelo abuso com a personalidade “como se”, o falso self, sem capacidade de se reconhecer, de saber quem são.
“Eu não sei quem sou eu, tenho sempre dúvida a meu respeito. E abandono tudo que começo, porque estou sempre achando que não é para mim, que não vou ser capaz, até no trabalho isso fica muito claro, tenho uma especialidade, mas se chega alguém eu deixo a pessoa fazer o que é de minha competência, mesmo que ela nem saiba fazer.” Homem de 38 anos que foi abusado pelo pai na infância e desacreditado pela mãe quando revelou o abuso.
     O tempo, sua noção, sua função, são também atingidos. As sequências de ausência quase autística, das noites, manhãs ou tardes de espera pelo momento pleno de adrenalina em que o abusador ia dar início a suas práticas libidinosas, aquele vazio transbordante, o silêncio ensurdecedor dentro da mente, causam um distúrbio de boa utilização do tempo.
     Escutar uma criança que está contando que está sendo abusada por alguém da família, não é tarefa nem um pouco fácil. As crianças costumam “falar” de diversas maneiras, encenar na brincadeira, e algumas vezes, quando tem uma pessoa de referência de muita confiança até contar em palavras. No entanto, a dificuldade do adulto de escutar uma revelação é enorme, estendendo-se esta surdez até aos profissionais especializados. Poucos conseguem transpor a desorganização interna que, imediatamente, se instala, causada por uma informação desta. Assim, até hoje, com todos os estudos e as evidências da necessidade da Escuta Especial, ou das Salas de Depoimento Sem Dano, as Salas de D.S.D., continuamos encontrando profissionais referendados pela Justiça, que pensam possuir um “olhômetro” de alta precisão, e praticam a pré-histórica e traumática Acareação, tão usada nos fundos de delegacias quando há um psicopata negando um crime, praticada por pessoas que se acreditam possuidoras de detectores de mentira. A Acareação de uma criança com seu suposto/denunciado abusador é uma violência sexual, uma revitimização, que tem sido cometida em pretensas perícias psicológicas.
     A estimulação por carícias, manipulações, ou penetrações, estas muito menos frequentes, no entanto, mostrando um aumento de ocorrência que atribuo à crescente cultura da transgressão sem punição, e às novas coberturas judiciais deferidas a favor dos abusadores, esta estimulação rompe a infância e promove um desenvolvimento sexual precoce. A perversão da sexualidade infantilizada de um adulto abusador, imposta, precocemente, à criança, opera uma bifurcação em seu desenvolvimento: a hipossexualidade, e a hipersexualidade. Pelo teor traumático, para evitar a morte psíquica, são acionados mecanismos de defesa do ego que tentam minimizar a sexualidade brutal naquele momento. Negar, ou, ao contrário, banalizar e minimizar, são posturas psicológicas buscadas para a proteção da mente.
     A hipossexualidade pode lançar mão de alterações corporais para excluir atrativos estéticos externos. A obesidade e a anorexia estariam nesta categoria. O objetivo por trás da deformação e feiura do corpo  é obstruir a possibilidade do olhar de desejo do outro.
     A hipersexualidade teria a função de banalizar, de esvaziar a importância sexual do terror do abuso. Os comportamentos de promiscuidade, a prostituição, e os comportamentos de predadores e predadoras sexuais, são exemplo deste mecanismo de defesa, que, por vezes traz em seu bojo a equivalência de vingança desejada e reprimida, então deslocada e generalizada para todos, homens e mulheres, praticada, indiscriminadamente, sem nenhuma culpa. È a descrença afetiva no outro, outra sequela da vítima de abuso.
     O corpo pode se tornar palco de sexualidade ou de não sexualidade, mas também pode se tornar arena de ataques de vingança, mais precisamente, de autovingança. É muito frequente que a negligência se faça neste corpo violado, afinal, ele não vale mais nada porque sujo. Para além da negligência expressa em várias formas, também os comportamentos de pequeno, médio e alto risco tem o corpo como alvo. Acidentes frequentes, e até a morte por suicídio voluntário ou “acidental”, são a expressão da tentativa de se livrar do corpo maldito, como é vivido. Às vezes, é preciso matar este corpo para se livrar da dor permanente insuportável que ele causa à mente.  
     O medo é uma característica em crianças e adolescentes abusados, e adultos sobreviventes do abuso incestuoso. Pela sensação de sujeira, pela culpa, pelo sistema de humilhação estabelecido, pela intimidação feita pelo abusador, a vítima de abuso permanece neste ponto de estresse basal, acompanhado sempre pelo distúrbio da autoestima. A dúvida plantada em sua mente, por vários fatores decorrentes da falta de prova, sobre a veracidade do fato do abuso, se derrama por todas as áreas psíquicas, tornando-se a dúvida generalizada de todas as capacidades cognitivas e afetivas. Assim, crianças e adolescentes vítimas, e adultos sobreviventes, são inseguros. A vulnerabilidade infantil inicial se cristaliza, a dependência ao outro é intensa como na infância. A autonomia psicológica fica impedida de se desenvolver.
     A imposição familiar, social, e hoje, judicial, de convívio com o abusador é responsável pela manutenção de todas as sequelas causadas pelo abuso. Assim, é banida a possibilidade de regeneração do tecido psíquico dilacerado pela continuidade da exposição à situação traumática nesta exigência equivocada de convívio. É como se vítimas do holocausto tivessem que morar para sempre no campo de concentração em que foram torturadas. O desânimo, a desesperança, são as únicas sensações na mente ressecada. E, acontece a desistência que tudo inunda.
“Meu pai frequentou minha cama desde que eu era pequena,não sei quantos anos eu tinha, parece que sempre. Nada adiantava. Casei duas vezes, não deu certo. Voltava. Depois que me separei, desisti, e deixava ele fazer o que quisesse com meu corpo, até dormia, e no outro dia via na minha vagina que ele tinha tido prazer sexual”. Mulher de 28 anos falando de sua desistência.
     O medo de enlouquecer. Segredos de abuso, quando revelados após muitos anos, desencadeiam uma sequência no pacto da cisão que foi rompida com esta revelação. Sedimentada pelo tempo e pelo aprimoramento permanente desta ocultação, o abuso sexual intrafamiliar, a revelação tardia opera nova fenda na mente: a cena do abuso passa a ser apenas a sequência das palavras reveladoras, descoladas da emoção das cenas abusivas. Agora adulto, o sobrevivente do abuso se vê olhando um filme do que relata, e as palavras são repetidas e duvidadas da sua veracidade. Este é um fenômeno psíquico de graves consequências, pois resta como forte sensação de enlouquecimento. As palavras são vazias de emoção e as imagens fogem da mente e ficam muito difíceis de serem resgatadas. O resultado é que a emoção ressurge em intensos ataques de apreensão, angústia, medo, agonia, desespero. Intensidade extrema e ausência total de algum mínimo sentido aparente. O vazio pleno da situação traumática do abuso reaparece nestas crises que se assemelham ao estado de pré-surto psicótico.
“o incrível é que os ataques de ansiedade que me invadem, aparecem quando acontecem coisas boas, vem um pânico horrível, com coisa ruim nunca tive”. Mulher de 51 anos, abusada pelo pai durante toda a infância, e que revelou para a mãe aos 12 anos, a mãe ouviu em silêncio e a levou para a psicóloga, mas nada mudou na casa que continuou mergulhada no silêncio do incesto.
     Talvez as sequelas possam ser pensadas em sua dimensão devastadora como montando um sistema familiar incestuoso fechado, ao qual a criança não tem acesso. Impresso em seu âmago, cristalizado, este sistema fica no modo de funcionamento automático, ou seja, toda nova possibilidade de relação cai no circuito fechado do sistema incestuoso: prazer com gosto de pecado, fidelidade à transgressão.
     Este sistema familiar incestuoso que abriga e acoberta o crime do abuso sexual dentro da família, tem hoje um correlato praticado pela Justiça. Operadores, ávidos por ampliar sua atuação para dentro da família, legislando as velhas e novas relações interpessoais e amorosas, tem se precipitado em novas modas sentenciais, a Alienação Parental neste momento, o que tem patrocinado a mumificação de mães que buscam proteção para um filho ou filha abusado/abusada pelo pai, jogando o manto da Justiça sobre o abusador que muito tem se beneficiado. Assim o sistema incestuoso, apesar de toda precisão e força da letra da Lei, vem se tornando inimputável na prática.
     Estas são algumas consequências nocivas, negligenciadas por quase todos nós, desta tatuagem na alma de meninos e meninas, que se torna uma sombra social.

Artigo apresentado no 1º Fórum Municipal Contra Violências - Prefeitura de Macaé -RJ

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