quinta-feira, 28 de julho de 2022

Como cresce uma Criança? Parte III

Como cresce uma Criança? Parte III O desenvolvimento cognitivo é de extrema riqueza. E vai acompanhando a evolução dos costumes. Se hoje a tecnologia tomou conta de uma vasta área na vida da Criança, ela aprende, por exemplo, uma sequência pelas fases do joguinho eletrônico. Os números são captados nessa brincadeira, no lugar dos concretos álbuns de figurinhas. Também a noção de tempo e espaço é adquirida, de maneira alternativa e precarizada, pelos joguinhos. Não há mais o relógio, que fazia parte de testes e provas escolares, com as questões que vinham com o desenho do reloginho para medir a aprendizagem das horas. A lateralidade, direita e esquerda, através dos controles de jogos eletrônicos, e o dar o laço no tênis foram abortadas pelo “prático” velcro. O desenvolvimento motor que acompanha essas aquisições perdeu espaço, como perdeu a importante aquisição da pinça fina da oposição do polegar ao indicador. Essa aquisição é o começo do uso do lápis e caneta para a escrita, do bisturi para as cirurgias, do pincel para a arte da pintura. A Cultura, a Arte, e a Saúde e sua manutenção, devem muito ao simples gesto do segurar um instrumento, lápis, pincel, bisturi e agulhas de sutura, pela preensão do polegar contra o indicador. Esse gesto tem sido esquecido e há um equívoco corrente que tenta sua substituição, o arrastar da ponta do dedinho indicador na telinha de um celular. Por ensaio e erro, a Criança pequena ou mesmo o bebê, descobre que assim, deslizando o dedinho, ela obtém os filminhos. Mas essa atitude não trará maior desenvolvimento para sua inteligência, como falam alguns. É um gesto que não requer destreza nem aprimoramento, só a repetição monótona traz um maior número de acertos. A noção de morte, a finitude da vida, foi banalizada pelo “morrer” dos joguinhos, levando ao equívoco que a vida só termina no “game over”, após várias vidas e várias mortes. Essa noção de morte virtual é paralela e pouco ajuda a aquisição da noção de morte necessária ao desenvolvimento cognitivo, e, principalmente, o afetivo. Há uma ilusão que permite apenas um adiamento da aquisição da noção de irreversibilidade, processo que se inicia por volta dos 7 anos, conteúdo constitutivo da ideia da morte humana. A morte é o irreversível por excelência. É preciso entender que a harmonia necessária para o pleno desenvolvimento saudável só tolera ser quebrada quando o quantum de obstáculo é suportável, para que não seja transformado em obstrução, o que aponta para uma situação traumática. Também se faz necessário entender que o mesmo fato traumático tem seus efeitos deletérios de acordo com a idade e a fase de desenvolvimento em que está a Criança. Portanto, a mesma quantidade excessiva de um episódio traumático terá repercussões diferentes em diferentes momentos da infância. Mas, terá sempre repercussões pelo fator excessivo à capacidade da mente suportar, que acionará sempre o Sistema de Mecanismo de Defesa do Ego. Há também que ser considerada a área atingida. Se a Criança se arrisca em manobra difícil para sua motricidade, e fracassa em sua ousadia, ou ela é empurrada por um adulto que imagina que isso seria uma brincadeira, o seu desenvolvimento motor pode sofrer um desvio ou um recuo de novas aquisições semelhantes àquela em que se machucou. Assim também se a Criança sofre um grande constrangimento, uma humilhação em sua tentativa de melhor se expressar verbalmente, pode haver uma inibição, temporária ou permanente, de seu desenvolvimento linguístico. Os traumas que têm como alvo o corpo da Criança por violência física ou sexual, não conseguem se alojar na mente da Criança, porque, pela intensidade, essas duas formas de violência são classificadas como o Impacto de Extremo Estresse, causador de sequelas muito prejudiciais e permanentes. O desenvolvimento da linguagem vai se entrelaçando ao vetor da motricidade, com a maturação neurológica que caminha na direção céfalo-caudal. A coordenação da deglutição que vai trazendo a capacidade de mastigação com o aparecimento dos dentes. Respirar e engolir é tarefa complexa para os pequeninos. Assim também a fala que surge quando do amadurecimento do aparelho fonador, e que vai substituindo o choro, linguagem inicial para comunicar as principais emoções sentidas pelo bebê. A primeira comunicação se opera pelo choro. A mãe que sintoniza bem com seu bebê é capaz de distinguir 4 choros diferentes na segunda ou terceira semana de vida dele. Fome, cólica, sono, frio/calor, são identificados pela mãe cuidadosa. O choro nessa fase inicial garante a vida, mas funda a capacidade de interação com o outro. Pela imaturidade neurológica, o choro é uma manifestação de corpo inteiro. O sorriso, que aparece em torno dos 2 meses, é a primeira resposta social do bebê. Espelhando o sorriso da mãe, o bebê, com esforço muscular e muita vontade de demonstrar e pedir afeto, copia a expressão facial de satisfação da mãe. À medida que vai adquirindo o controle dos músculos implicados no sorriso, o bebê passa a selecionar, por um critério rudimentar de auto segurança, os rostos que receberão seu sorriso. A articulação dos fonemas, que formam as palavras, vai se aprimorando para, com a ajuda do ambiente afetivo, progredir na capacidade de comunicação oral, num processo gradual de linguagem, a falada em seu ambiente familiar, chamada língua materna. A aquisição da linguagem e sua qualidade, são patrocinadas pelo conjunto formado pelo desenvolvimento motor, o cognitivo e o afetivo. Músculos, pensamento e amor. Em torno dos 8/9 meses, o bebê treinará a aquisição da linguagem pronunciando, aleatoriamente, quase todos os fonemas de todas as línguas humanas, selecionando por audição/repetição, em seguida, os fonemas da sua língua materna, passando a aprimorar os sons produzidos para a formação da primeira palavra. Continuamos na próxima semana.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Como cresce uma Criança? Parte II

Como cresce uma Criança? Parte II Quando chamamos a atenção para determinados momentos do desenvolvimento da Criança, como o aparecimento do sorriso, a primeira brincadeira de esconder, ou o sentar que quebra de paradigmas de percepção do mundo, estamos tentando trazer as dimensões paralelas, cruzadas, compartilhadas, sequenciadas. Tudo junto e misturado num caldo de organização crescente. Nenhuma aquisição do desenvolvimento, que seja motor, cognitivo, linguístico e afetivo, poderá acontecer isoladamente. E todas as repercussões dessas aquisições derramam estímulos a todos os setores, de maneira democrática, ou seja, todos os setores usufruem desse amadurecimento. Quando a Criança está deitadinha, chorando ou se mexendo em movimentos espásticos, característicos dessa fase, braços e pernas em movimentação com a amplitude possível, por acaso, o bebê esbarra em um chocalho pendurado à sua frente. A sensação tátil e o barulho lhe chama a atenção mas ele não tem a menor ideia de como tocou em alguma coisa que produziu aquele som. Mas ele, ao continuar aquela movimentação de braços e pernas, esbarra de novo e repete a sensação tátil e o barulho. Curiosos sim, somos, essencialmente, curiosos, epistemofílicos por natureza. Temos necessidade do saber, do conhecimento, desde o mais simples que acalma a tensão que surge diante do novo, do desconhecido, do estranho. Quando o bebê sente insegurança, medo ou ameaça diante de alguma situação, se assegurado pelo afeto de estímulo à exploração daquilo que o está assustando, ele recobra a confiança e busca conhecer aquela situação que trouxe aquela instabilidade. O barulho do chocalho ao toque será buscado, incessantemente. E por ensaio e erro ele acaba por descobrir o movimento que o leva a acertar numa grande incidência. Este é o que chamamos de nascimento da inteligência. Quando a intencionalidade guia o movimento para a obtenção de um objetivo, a inteligência inicia seu processo de desenvolvimento. O nascimento da inteligência, o aparecimento da intencionalidade, toca os movimentos, a linguagem, a afetividade, provocando sempre algum nível de amadurecimento, que se espalha na mente e no corpo. A intencionalidade caracteriza o perfil humano. Todo pensamento, toda ação, tem uma hipótese e uma meta. O uso da intencionalidade desenha o comportamento humano e nos afasta, suficientemente, da conduta instintiva, mais próxima do comportamento animal. Esse primeiro movimento que busca acertar de novo o objeto que produziu um barulho, vai se tornando cada vez mais preciso, e logo pode dar lugar à introdução de um segundo objeto que alcançará o objeto desejado. Ou seja, logo o bebê descobre que poderá chegar ao objeto desejado utilizando um outro objeto que fará essa extensão. Os chipanzés chegam até aí. São capazes de usar um graveto para alcançar o mel que está dentro do caule de uma árvore, por um orifício pequeno por onde não passa a mão deles. Mas o bebê humano prossegue em sua investida, organizando o pensamento de maneira científica. Toda experiência é guardada, cuidadosamente, na memória. Os primeiros pensamentos são muito simples, pensamento binário, onde apenas uma varável é testada. Durante toda a infância a Criança tem, somente, o raciocínio concreto. Tudo que a Criança consegue aferir se passa pela experiência. O mundo, muito complicado para a Criança, lhe chega através de suas percepções. Por isso, muitas vezes, ela se equivoca porque sua percepção é equivocada pela simplicidade de seu pensamento, mas, aos 3 anos ela sabe o que é fantasia e o que é realidade, e separa bem uma da outra. Esse é um dado da Childhood Brasil. Por outro lado, ela responderá que há mais pérolas no recipiente de vidro mais estreito e mais alto, mesmo que o examinador passe as pérolas do vidro largo e baixo para o mais alto e estreito. Ela só considera a variável vertical, e, mesmo vendo o examinador versando o conteúdo de um vidro para o outro, ela não consegue multiplicar altura x largura dos dois recipientes. Essa maneira de raciocinar pode estar, por exemplo, na compreensão de uma situação traumática que não é considerada como tal porque o agressor por ser seu pai, ele é visto por ela só como bom, todo pai é bom e faz coisas certas, e não vê o outro lado dele. No entanto, se ela relata uma prática libidinosa, este relato é fruto de seu raciocínio concreto, ou seja, está relatando a vivência de uma experiência, de suas sensações perceptivas, a que foi submetida. E, assim como seu raciocínio durante a infância é concreto, sua memória é, meticulosamente, organizada pelas experiências concretas. Não procede a acusação, hoje corrente, de que relatos difíceis de serem escutados, sejam falsas memórias. Sem comprovação científica, essa alegação só serve para desqualificar sua voz. Ela usa de muito rigor no armazenamento de suas imagens mnêmicas. O exercício permanente de memorização segue métodos e regras para garantir um armazenamento correto e um resgate rápido. A Criança investe muito bem na memória porque precisa acumular conhecimento correto sobre o que experimenta do mundo. As técnicas para isso, muitas vezes são personalizadas, como é também individualizado o desenvolvimento da inteligência. As fases da cognição vão do concreto em direção ao abstrato, início aos 11 anos, se tornando cada vez mais complexas, mais uma variável é admitida, é introduzida a relativização gradual, depois aparece a tendência a colecionar porque a inteligência entra numa fase de exercitar o sequenciar. Essas duas fases têm nas coleções e álbuns de figurinhas importantes aliados, uma aprendizagem lúdica. Colecionadores parecem manter uma ligação com o prazer de reter dessa fase. É possível que os criminosos em série, entre outros fatores, tenham algum tipo de fixação nessa fase, um aprisionamento ilógico. Isto é apenas uma tentativa de compreensão dinâmica, não uma justificativa, apenas para ilustrar a rica plasticidade do desenvolvimento cognitivo. É nossa responsabilidade, família, sociedade, Estado, zelar pela saúde integral da Criança, evitando produzir obstáculos e traumas, que mutilarão sua mente.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Como cresce uma Criança? Parte I

Como cresce uma Criança? Parte I De pronto, podemos até achar que alimentando e dando um pouco de ar livre para ela se movimentar, assim a Criança cresce. O crescimento de uma Criança é um processo complexo e de enormes dimensões, que está à nossa vista, mas, pouco é reparado. Elas crescem debaixo de nossos olhos e ouvidos, e não vemos nem ouvimos esse crescimento, tudo tão naturalizado que não chama nossa atenção. No entanto, é importante conhecer um pouco desse complexo processo que transporta um ser muito precário, muito inábil, muito dependente, para um ser que busca autonomia para viver em sociedade, condição, especificamente, humana. Nascemos com quase completa incompetência para garantirmos nossa sobrevivência. Apenas o choro, de corpo inteiro, imprime a comunicação com o entorno. É preciso decodificar todos os sinais que um recém-nascido emite. A interpretação da mãe é essencial nesta fase. Nada é garantido, é a intuição que orienta essa Mãe. O grau de dependência traz a evidência das diversas deficiências ao nascer. Não conseguimos nem mesmo buscar o alimento como se comportam os mamíferos herbívoros que se põem de pé e buscam por conta própria o aleitamento materno em menos de 20 minutos. Os bebês humanos demoram um ano para que possam se por de pé e mais alguns anos para que o alimento seja buscado por ele mesmo. Assim, as Crianças não são iguais entre elas, como também não sofrem igual nas diferentes etapas de seu desenvolvimento. Ou seja, um dado trauma atinge, diferentemente, em cada faixa etária, porquanto o nível de desenvolvimento, em seus diferentes vetores, danifica de maneira distinta tanto qualitativa, quanto quantitativamente. Se a Criança está no início da vida, suas aquisições são ainda reduzidas, o efeito de uma situação que transborda o suportável por sua mente naquele momento, trauma, irá depender da quantidade de capacidade de organização mental adquirida. Um bebê, com sua mente ainda desorganizada terá a marca difusa do traumatismo. Se esse bebê é submetido à dor repetida, causada por fator externo, da mesma maneira como ele chora com o corpo todo, essa dor infringida por alguém, ficará registrada como uma ameaça à sua integridade total. Precisamos também pensar que, para além da etapa de desenvolvimento da Criança, o terreno em que o episódio traumático ocorre vai imprimir ali, nesse mesmo terreno, a sua marca. Se uma criança, em meio à sua aquisição da marcha, sofre uma dor por uma imperícia sua isso irá bloquear, temporariamente, ou até, permanentemente, a sua atração pelo desafio, pelo risco que correu e não deu certo, acarretando assim uma impressão, uma tatuagem, de insegurança pela dor sofrida. O crescer é processo muito dinâmico em que vários sistemas estão em atividade contínua. Como uma orquestra, os eixos do desenvolvimento estão em constante busca de uma harmonia, nem sempre alcançada. O mais importante é que nenhum dos 4 eixos, motor, cognitivo, linguístico e afetivo, não seja obstruído, que haja uma comunicação livre entre eles. O desenvolvimento motor é um árduo trabalho que se processa segundo a maturação neuronal na direção céfalo-caudal. Sustentar a cabeça é a primeira aquisição e permite que comece a acontecer o primeiro controle motor. A maturação neuronal vai percorrendo a coluna vertebral, descendo, surge o sorriso, a coordenação óculo-manual, a preensão por pinça fina, o sentar, momento especial, o ficar em pé, a marcha, a corrida e as acrobacias. O aparecimento do sorriso, por volta dos 2 meses de idade, é um desses muitos momentos que implicam mais de um eixo de desenvolvimento. É motor enquanto coordena uma expressão facial, mas é também da ordem do desenvolvimento afetivo, enquanto primeira resposta social. O espelhamento do sorriso da mãe provoca em comportamento de imitação, muito satisfaz a mãe, que passa a repetir o estímulo com entusiasmo. Esse primeiro jogo de interação é logo seguido pelo segundo jogo que o bebê descobre, experimentando a interação e aprovação das pessoas próximas. Com a aquisição da coordenação óculo-manual, o bebê “se esconde” atrás de um paninho, e, repetindo várias vezes esse comportamento, sintonizando com as exclamações “cadê o neném” e “achou!” Sorrisos, muita movimentação de braços e pernas, é o corpo inteiro que sente prazer. Parece fácil. Mas é uma operação de grande esforço para o bebê. Brincar é uma atividade afetiva e social, e essa é a primeira brincadeira movida pelo bebê. E, pela vontade de realizar repetidas vezes, brincar de existir e inexistir, mesmo que seja sem saber do conceito de existência, é um ato cognitivo. Essa brincadeira traz também uma comunicação através da linguagem corporal. Está dito pelo bebê que ele está satisfeito, está alegre. Este pequeno comportamento, que contem os 4 eixos do desenvolvimento, parece fazer parte intrínseca do crescimento dos bebês, tamanha a sua incidência. O momento do sentar é outro ponto que quebra um paradigma do mundo da Criança até então. Ao se tornar capaz de sentar, o bebê tem sua percepção de mundo modificada. O bebê, pela primeira vez, usa o seu corpo colado ao chão como o ponto zero para olhar as dimensões do mundo que lhe cerca. Até então ele era carregado no colo de um adulto, ou empurrado num carrinho em movimento, sem a possibilidade de ele mesmo coordenar essas percepções do seu mundo. Os tamanhos gigantescos desse momento trazem medo, choros quando a mãe se ausenta do ambiente, movimentos em busca da pessoa asseguradora, é sua primeira experiência assustadora que tem repercussões afetivas. O sentar também é uma experiência dos vários eixos do desenvolvimento. Diferente do brincar de esconder com o paninho, momento de alegria, o sentar dói, momento de angústia. A primeira.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade, a tolerância. Parte X

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade, a tolerância. Parte X Tortura física, com marcas visíveis ou invisíveis, com sequelas visíveis ou invisíveis. Tortura psicológica que, geralmente, só mostra suas sequelas muitos anos depois, já cristalizadas como sintomas. Tortura Institucional, a judicialização da infância, fase do desenvolvimento que acaba e que os processos seguem, sem respeito ao tempo que foi perdido pela Criança. Nessa judicialização, em nome do sabor do exercício do Poder, Operadores de Justiça perdem a boa e velha noção básica do bom senso, das necessidades primordiais, e subvertem a ordem da natureza, obrigando Crianças a sufocarem afetos que seriam estruturantes da personalidade e princípios do caráter. Parece que o ato de torturar uma Criança está, diretamente, relacionado com a condição peculiar de dependência e fragilidade, tanto física quanto mental, que compõem o conceito de vulnerabilidade. Este estado provoca em mentes que sofrem de medo e insegurança, a sensação de Poder que auto engana o adulto que não conseguiu se libertar de seus próprios medos infantis, seus antigos sofrimentos em que estava nesse lugar do dominado, do oprimido. Acrescento aqui a hipótese de que a empatia com a dor da Criança foi bloqueada para que, ilusoriamente, não seja invadido pela própria dor, tão bem sepultada em nome da sobrevivência psíquica. Tornar-se seco, insensível, banalizador da dor alheia, é o mecanismo de defesa que sustenta a atitude institucional que viola Direitos Fundamentais de Criança, pretendendo estar a “proteger” de um inimigo imaginário, nestes casos, a mãe. A tolerância da Criança para suportar as mais diferentes situações torturantes está alojada em sua vulnerabilidade, em sua condição da permanente exigência de obediência aos adultos, ela sabe que não tem competência para ter autonomia, ela sabe de sua dependência física e, consequentemente, emocional por esses adultos. “Criança não tem querer”, mas Criança é Sujeito de Direito. O Cuidado é um valor jurídico, mas é o descuidado que frequenta as salas da justiça. Num momento de seu desenvolvimento cognitivo que o único código possível é o “pode” e o “não pode” para suas tentativas de exploração do mundo do seu entorno, a Criança é empurrada na direção de um código ético duplo de um adulto, nos casos de abuso intrafamiliar, grave crime que está cada vez mais acobertado e negado, cuja duplicidade atordoa a mente em formação da Criança. O “não pode” convive com o “pode” só comigo, ou seja, não pode ter comportamento libidinoso e sexualizado com ninguém nem em lugar nenhum, mas aquele adulto pode ter prazer sexual sigiloso com aquela Criança, dentro da casa da família, no ambiente que é de sua necessária referência. Pergunta-se, com frequência, por que a Criança não grita, não fala logo, na negação da condição de vulnerabilidade e de tolerância pela obediência ao adulto. Mas ela grita e não é escutada. Seu grito é silencioso, mas visível para quem tiver coragem de ver. Quantas vezes a Criança chora e grita desesperada, fala as claras palavras “eu não quero ir”, mas é obrigada por uma decisão judicial que nunca escutou esse desespero, e, por facilidade, prefere imaginar que é a mãe que “fez a cabeça do filho”. Em total discordância com o conhecimento científico que afirma que a Criança pensa com o raciocínio concreto, quando a experiência é seu modus operandi até os 12 anos, a mãe é acusada de “programar” a mente da Criança. Em contrapartida, surge uma nova especialidade entre psicólogos que se submetem a essas perversidades pseudocientíficas: Psicólogos Reprogramadores. Sob o olhar da coisificação do Ser Criança, essas pessoas passam a desmontar as lembranças dos abusos dando uma nova interpretação produzida na acusação à mãe. Esse é um projeto que ganha uma facilitação na coincidência do tempo do processo interno de Desistência e no Processo de Retratação que a Criança afastada da mãe e entregue a seu agressor. É essa a questão. A desistência pela repetição revitimizante e que não é escutada pelas pessoas que têm com propósito olhar a Criança Sujeito de Direito, à luz do Princípio do Melhor Interesse da Criança. Ao contrário disso, temos, por exemplo, uma afirmação que não se sabe de onde surgiu, em qual teoria científica de Desenvolvimento Infantil se sustenta, o início do pernoite com o pai a partir dos 6 meses. Totalmente inadequado, totalmente nocivo, porque aos 6 meses a Criança está passando por uma mudança de percepção de mundo que produz uma alteração emocional com uma agudização da dependência pela presença concreta da mãe. René Spitz conceituou essa fase do desenvolvimento motor que tem repercussão na esfera afetiva, mostra um aumento do medo como emoção predominante quando da ausência, mesmo que curta, da mãe no ambiente. A aquisição motora do sentar é de grande importância para a percepção, a mudança das dimensões e tamanhos que surgem a partir do eixo do corpo do bebê sentado ao chão, que passa a ser o ponto zero nessa percepção. Tirar esse bebê de seu ambiente neste momento é desastroso e pode patrocinar sintomas e alterações que podem vir a ser permanentes. Mas, parece, que a roda do ouro dos ganhos de profissionais que já fizeram dessas que, para a simplificação e desvio de corretos propósitos, são chamadas de “disputa de guarda”, em mais uma clara expressão da cleptoepistemologia que assola essa área. Disputa de guarda é quando há discordâncias quanto a posições educacionais, por exemplo. Crime de abuso sexual incestuoso não é disputa de guarda. É uma tentativa, hoje inócua, de proteção pretendida pela mãe cuidadosa. A Igualdade Parental, outra expressão de cleptoepistemologia que faz parte do romance jurídico, deveria estar voltada para a Igualdade de Responsabilidades Parentais, e não na pretensa divisão do tempo da Criança ao meio. Algum de nós suportaria viver em duas casas, carregando na mochila sua vida?