domingo, 17 de maio de 2020


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos.  Parte II.
     Continuando nosso texto sobre a aquisição da capacidade de sentir afetos, transcrevo aqui uma parte de um capítulo escrito por mim, do livro Cuidado e Afetividade, publicado em parceria Brasil-Portugal, por duas Universidades Públicas de Direito, em colaboração com um time de autores das duas nacionalidades. São muitos os autores que se debruçam sobre o afeto. No referido artigo, escrevo:
     Harlow, fisiologista, estudando a relação afetiva mãe-bebê, e suas repercussões, experimentou com bebês chipanzés a importância da necessidade de apego na falta da mãe. Bebês chipanzés, que têm comportamento de cuidado e afeto com filhotes semelhante ao comportamento dos humanos, que haviam perdido suas mães por ocasião do nascimento, após período de privação de alimento, eram expostos a duas “mães” diferentes. Uma mãe era montada de arame e tinha uma mamadeira com leite onde era possível o bebê saciar sua fome. Outra mãe era confeccionada de trapos e lãs, tinha um colo aconchegante, mas não tinha nenhum alimento. As duas “mães” ficavam em um ambiente onde os bebês chipanzés órfãos podiam escolher qual mãe iam buscar. O que foi observado na pesquisa foi que a grande maioria dos bebês procurava a “mãe” de arame que fornecia leite, e saciada a fome, eles iam se alojar no colo da “mãe” de panos. No entanto, o que a pesquisa evidenciou é que havia um número considerável de bebês chipanzés que se aconchegavam no colo da macaca de panos, e, contrariando o instinto de preservação da espécie, chegavam a morrer de inanição por não suportarem o leite no arame, sem aconchego. Esta experiência corrobora a descoberta de Spitz sobre o conceito do hospitalismo.
       Todos os autores da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicanálise escreveram teorias tendo como ponto central o afeto. Freud, Anna Freud, Klein, Winnicott, Mahler, Spitz, Piaget, Bion, Lacan, Kohut, Soulé, Bergès, Bergeret, todos deram ênfase ao afeto como a condição que permeia os vetores do desenvolvimento.
       É o afeto que faz a diferença entre curvas de desenvolvimento díspares. E não só a presença ou ausência, mas, na presença, é a qualidade do afeto que importa para estimular o crescimento e garantir a saúde psíquica da criança. Temos evidências desta importância quando verificamos os quadros psicossomáticos da Psicopatologia da 1ª infância reativos à qualidade ou ausência do afeto recebido pelo bebê e pela criança.
       Pela troca de afeto mãe-bebê o desenvolvimento vai se processando. A maturação neurológica que se da no sentido céfalo-caudal, permite a progressão de competências musculares que se iniciam com a sustentação da cabeça até atingir a marcha e seu controle, incluindo a aquisição da preensão em pinça fina pela oposição do polegar ao indicador, a garantia da escrita alguns anos mais tarde. O nascimento da inteligência ocorre quando surge o movimento com intencionalidade, transformando movimentos de espasmos reflexos em movimento com um objetivo de obter alguma sensação auditiva, visual ou tátil.
     Spitz elencou 3 momentos como Organizadores do desenvolvimento afetivo: o sorriso, a angústia, a contestação do “não”. Sorrir, chorar, e enfrentar. Spitz define o aparecimento do sorriso, por volta dos 2/3 meses, como a primeira resposta social da criança. O rosto da mãe é reconhecido em figura triangular formada pelos olhos e boca, uma captação da forma, como entende a Escola de Psicologia da Gestalt. Estimulado pelo sorriso da mãe, o bebê espelha este sorriso. O jogo de satisfação recíproca que se estabelece na dupla mãe-bebê, transborda para outras pessoas próximas, e torna-se uma resposta social. A primeira.
     Mas o bebê muda sua percepção do mundo entorno quando adquire a competência motora do sentar. Seu olhar passa a captar um mundo de gigantes. Ele tem uma possibilidade de ter um parâmetro mais confiável, o chão como ponto zero, e adquire também a capacidade de girar sobre seu próprio eixo, seu corpo, o que lhe permite dimensionar o espaço muito maior. Isto se torna assustador para ele. E, no reconhecimento já bem mais estruturado do rosto da mãe, ele passa a sentir medo do “estranho”, medo de todos os rostos que não são a mãe. Entenda-se aqui que há a possibilidade de substituição materna, ele aceita. Mas a primazia da segurança que a mãe lhe oferece, é única. E este medo faz com que ele tenha aquele conhecido comportamento do estranhamento aos adultos não-mãe.  A necessidade de incluí-la no seu entorno imediato produz uma dependência de sua presença. Assim, ao se dar conta que a mãe não está perceptível no ambiente em que ele está, o bebê sente medo de tê-la perdido. A existência só acontece enquanto sua visão atesta concretamente. Este é o organizador que Spitz denominou como a angústia do 8º mês. Seu choro é de angústia ao perceber que a mãe não consta no ambiente, e, como não possui ainda os recursos cognitivos para metrizar o tempo e o espaço, ele sofre como se vivesse um abandono.
     Em torno dos 18 meses, Spitz descreve o terceiro organizador: o “não”. O bebê já se põe de pé, e seu desenvolvimento cognitivo estimula, sobremaneira, a sua curiosidade. Quer mexer em tudo ao seu alcance. Corre perigos, e está sempre escutando um sonoro “não”. Trava-se aí um processo de identificação com o adulto, aquele que fica a lhe cercear, por proteção dele. Ele passa a repetir este não para todas as propostas que lhe são ofertadas. E mesmo ao realizar uma ação já repreendida, ele a executa dizendo não e olhando para o adulto, como se contestasse e se tornasse “grande” neste momento que espelha a atitude de limite do adulto. Esta primeira contestação, ou oposição vai se seguir da resistência maior ou menor à educação esfincteriana, o tirar as fraldas, que vem a ser proposta, alguns meses depois. O comportamento de oposição é saudável desde que não o aprisione nas primeiras oportunidades da busca pelo Poder. Aceitar ou negar a regra social de fazer xixi e cocô em lugar específico, o banheiro, é uma possibilidade de experimentar o Poder.
*continuamos na próxima semana.

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