domingo, 17 de maio de 2020


Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos – Parte V
     A ausência de afeto no início da vida traz um dano permanente. O alimento afeto deve ser doado de forma regular, com pequenas variações na frequência e na intensidade, pela pessoa preferencial para o bebê. Esta preferência é facilitada e promovida pelo reconhecimento do cheiro, da voz, do tônus ao segurar o bebê. A repetição destes dados trará para o bebê a segurança e confiança nesta pessoa preferencial. Como a mãe tem o privilégio da conexão visceral, esta condição é facilitadora para a dupla mãe-bebê. Mas, no caso da substituição materna, o bebê tem uma boa tolerância para refazer esta conexão, carregando sua expectativa da sua demanda de satisfação do colo, enquanto cuidados de sobrevivência, nutrição/higiene/sono/afeto, e a mãe substituta terá este espaço, podendo construir um vínculo materno genuíno. A tese da ligação biológica tem sua importância quando ela for continuada, mas não é impossível a realização desta substituição. Isto ocorre com as crianças que são adotadas sem que haja um abrigamento que quebre este provimento de afeto. Ou seja, crianças que têm seu vínculo víscero-afetivo materno rompido e que vão para um abrigo por meses ou anos. Quanto maior for o tempo de uma criança no sistema de abrigo, sem uma relação afetiva materna, maior será o dano do desenvolvimento afetivo. A possibilidade de ser capacitada para confiar no outro, e se comportar como humano, é diretamente proporcional ao afeto regular recebido sem interrupção.
     É preciso entender o que significa a carência afetiva, esta condição que aprisiona o indivíduo na busca incessante de relações de dependência. A carência não corresponde à ausência completa ou parcial de afeto. Por vezes há um descompasso entre o afeto ofertado e como é sentido este afeto pelo bebê. Assim, mesmo sendo alimentado afetivamente, por alguma razão, o bebê não é satisfeito em sua necessidade particular de afeto.
     Dependências. O afeto, ou melhor, o não-afeto, em qualquer grau, é um fator preponderante para os comportamentos de dependências diversas. Dependência afetiva, dependência química, passando pela dependência alimentar, a busca pelo afeto não alcançado leva a se submeter a relações abusivas, leva à busca da ilusão do prazer imediato, leva à sensação do conforto compulsivo no estômago. Estes comportamentos aparecem, socialmente, na juventude. Mas, o início de todos estes distúrbios de expressão por dependências reside na infância. É a ausência ou a precariedade, por intermitência, por instabilidade, ou por frieza e distanciamento, que desvia ou corrompe a possibilidade de um saudável desenvolvimento afetivo.
     Se a desconfiança afetiva pela instabilidade dos cuidados impede a confiança na construção de relações saudáveis, numa tormenta sem fim, o aniquilamento afetivo, resultado de afetos oriundos de violências, pode vir acompanhado de perversidade, de crueldade, mantendo o ciclo da repetição quase compulsória.
     O comportamento da imitação, por exemplo, faz parte dos processos de identificações, que trazem o conforto subjetivo da sensação de pertencimento. A pertinência a um grupo acalma a angústia de desamparo. Esta rede, abandono, desamparo, solidão, versus proteção, força, passa a fornecer uma garantia quando o estresse ameaça a mente. O funcionamento afetivo é muito dinâmico, sempre mistura várias emoções, até mesmo contraditórias, ganhando sentido, muitas vezes durante o percurso de cada experiência afetiva.          
     Entenda-se que, o alimento da geladeira para os obesos é a representação do afeto não recebido. Assim como a cocaína ou o álcool, ou as escolhas sucessivas de relações abusivas, também simbolizam o afeto que faltou ou foi agressivo. É preciso, pois, compreender que o afeto não saudável produzirá uma lacuna que fomentará uma busca incessante pelo nutriente afeto, deslocado, então, para novos objetos simbólicos.
     O conceito de saudável relativo ao afeto refere-se à adequação de necessidade x satisfação de saldo positivo. Ou seja, que a soma de acertos de satisfação seja bem maior que a soma de erros e frustrações, que, claro, existirão sempre. Não há problema em errar ou frustrar um bebê em sua demanda de afeto, caracteristicamente, de pedido imediato. O intervalo de tempo entre o pedido e a satisfação também ensina o esperar, tão importante para seu desenvolvimento. Também o equívoco na resposta materna pode ser um aprendizado de tolerância, essencial para a vida toda.
     No entanto, o problema dos efeitos nefastos das alterações do desenvolvimento afetivo está não só no abandono que é a expressão da ausência afetiva, mas, na presença de afetos agressivos continuados por muito tempo da infância. Afetos mal tratantes, afetos de violência física, sexual e psicológica, que imprimirão uma tatuagem na alma da criança, levando-a à condição de submissão nas relações com o outro. Há ainda a pior das possibilidades: a impossibilidade de se humanizar. Estas crianças, gravemente marcadas por afetos de violência, não serão obstruídas na sua aquisição da capacidade de empatia. Não conseguirão viver a cidadania, a solidariedade e a compaixão, até mesmo por aqueles que ela venha a prejudicar.
 “Se, ninguém sentiu compaixão por mim quando eu era criança e precisava de proteção, ninguém merece minha compaixão”.
     Abordaremos ainda este tema em suas consequências e patologias na próxima semana.

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