sábado, 19 de setembro de 2020

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada – Parte II

 

A Cultura do Estupro de Criança e a Pedofilia Intrafamiliar Acobertada – Parte II

 

     Sob o intenso impacto do fato deplorável da gravidez resultante do estupro de uma menina de 10 anos, a revolta, por diferentes vértices, se exaltou. Vimos rachar a sociedade. A questão, rapidamente se mudou de lugar. Não mais era a dor daquela menina, abusada por mais de 4 anos, quando ainda tinha só 10 anos. Tornou-se briga, e briga religiosa, em nome de alguém que em nenhum momento se pronunciou. Alguém, aliás, que por vezes surpreendeu com respostas inesperadas.

     Embebidos desta revolta brotaram inúmeras idéias de campanhas. Mas não vi nenhuma que se referisse aos abusadores/estupradores. Faz-se necessário esclarecer aqui neste ponto que estupro de vulnerável é o nome do crime que abrange atos libidinosos contra criança e adolescente. Quais sejam: carícias, vouyerismo, exibicionismo, exposição a filme pornográfico, fotos e vídeos de cunho sexualizado, masturbação, sexo oral, penetração digital anal e vaginal, penetração peniana, etc., etc., etc,. Esses comportamentos têm como característica, comum a todos, a ausência de vestígio. Portanto, o Estupro de Vulnerável é também tipificado sem que o corpo da criança ou adolescente seja tocado. Ou que o seja, sem deixar marcas físicas. Nosso equívoco, em atribuir a nomenclatura de estupro apenas para os casos onde há violência, só beneficia o abusador que tem uma tolerância a mais. Outro equívoco diz respeito a obscurecer a incidência de estupro, em suas várias formas, em meninos. Eles são quase igualmente molestados que as meninas, mas são muito mais sub-notificados que elas.

     Estes números ocultos só favorecem os abusadores/estupradores. As Políticas Públicas, já muito escassas, tornam-se pífias para enfrentar o problema. Há uma campanha anual perto do carnaval sobre a pedofilia. Parece até que pedófilo só aparece no carnaval ou que gosta de carnaval. Na verdade, para o pedófilo, todo dia é dia de abusar da criança. Todo dia.

     Pensando sobre as várias intenções de campanha de prevenção da pedofilia, que circulam neste momento, uma coisa chama nossa atenção. Imagina-se que há abusos e estupros porque a criança não sabe dizer não. Este é um outro equívoco muito grave. A criança sabe dizer não ao seu abusador. Ele é que não sabe respeitar a criança, nem aceitar este não.

     Evidentemente, que ajuda dar conhecimento a uma criança sobre a restrição a suas partes íntimas. Mas isso não obstrui a sagacidade de um abusador. Com sua mistura de intimidação e sedução, ele irá fazer um novo arranjo para acessar estas suas partes íntimas. O resultado deste conhecimento pela criança será sentido na maior facilidade que ela terá em relatar para um adulto de sua confiança. O fato dela saber que os adultos têm este conhecimento, que estão a falar para ela, faz com que o pacto do segredo, estabelecido pelo abusador, sofra uma redução em seu resultado.

     Por outro lado, não posso deixar de remarcar que esta é uma atitude que sobrecarrega a criança. Uma vez que ela é instruída a “dizer não”, ela será cobrada sobre não ter dito não ou não ter parado o abusador com seu não. Sabemos que investir no auto-conhecimento, na auto-decisão de uma criança, lhe é benéfico. Mas imaginar que só pelas campanhas irá dirá não e teremos menos um problema, é muito ilusório. Há muito, todas as crianças, as que já adquiriram a linguagem, dizem não para seus abusadores.

     Fica sempre à mostra que queremos uma solução mágica para um problema que é sustentado estruturalmente. E mais, que temos uma tendência disfarçada e silenciosa de desresponsabilizar o pedófilo, hoje quase uma vítima, como dizia o Gardner. Ele, que goza de proteção da lei de alienação parental, seu grande e seguro esconderijo, está sempre saindo do foco da sociedade nos atos criminosos que pratica. Preferimos pensar que o abusador/estuprador é alguém que tem um olho só, é um monstro, é um estranho que vem seduzir a criança que está negligenciada pelos pais. Preferimos esquecer que, aproximadamente, 90% dos casos acontecem dentro de casa, que 85% dos casos são perpetrados pelos pais, padrastos que criam, avôs, tios, irmãos, (99% são homens), que os abusos são cotidianos, negando que ele está entre nós, é alguém acima de qualquer suspeita. Como escrevem nas sentenças juízes que os absolvem: “o pai é uma pessoa ilibada”.

     Precisamos ter mais cuidado, mais responsabilidade e responsabilizar mais quem comete crime contra a criança.          

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