quinta-feira, 24 de outubro de 2013

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

                                   VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

                                                                                   *Ana Maria Iencarelli     

               Hoje, a violência é endêmica. Violência contra os direitos fundamentais da criança, contra a mulher, contra a sociedade, violência da impunidade, a violência contra o futuro. E, contra a mulher, nosso tema, continua sendo lugar comum. Os números não mudaram. Mas, que números? Temos poucos estudos, poucos registros, poucas pesquisas e poucas estatísticas. Esta é também uma forma de violência que beneficia os seus praticantes, não sabemos ao certo o que está acontecendo, se medidas influenciaram ou não, como se comportam as curvas dos números, nem quantitativa e, menos ainda, qualitativamente. A lei Maria da Penha, Lei 11340/06, é emblemática neste ponto. Promulgada em 07/08/2006, em vigor a partir de setembro do mesmo ano, diminuiu ou não a incidência de agressão contra a mulher? Se, realmente, diminuiu a ocorrência, isto se deve ao respeito à lei e a sua implantação, ou à advertência que tem feito parte dos registros: “olhe, se a senhora fizer esta queixa ele vai ser preso, não tem mais como voltar atrás, tem certeza que quer mesmo?” E, naquele momento de extremo conflito, aquela mulher estampada de roxo pelo corpo e pela alma, levanta e diz que vai pensar, deixando ali mais um cúmplice da impunidade de seu agressor.  Este “alerta” vem de encontro à ambivalência vivida neste momento agudo. Ela, a mulher agredida, carrega todas as dúvidas e, sobretudo, o sentimento de fracasso em relação a aquele agressor, seu companheiro, na maioria das vezes, pai de seus filhos. E os vínculos afetivos?  Ela perdeu mais uma vez a batalha de “salvá-lo”, como acreditava que seria capaz. A promessa de proteção não a tranqüiliza o suficiente, pois, para ela, aquele homem é muito poderoso e vai achá-la. Esta fantasia infantil de onipotência da figura masculina é uma herança de um pai severo e também espancador na sua história. 
                Os roxos da superfície vão acastanhando e desbotando, e os internos vão se tornando o alimento do conformismo e da desistência, que devem impedi-la de vir a ter qualquer desejo na próxima agressão.
               As agressões físicas são visíveis e passíveis de exame de corpo de delito. Entretanto, as agressões psicológicas não deixam marcas objetivas, e as agressões sexuais acabam por se alojar na intimidade subjetiva, mesmo quando algo delas pode ser constatado objetivamente. Refiro-me aqui à dificuldade de tipificar a lesão causada por humilhações que destroem uma mulher, e muitas vezes, levam nesta destruição as filhas, e filhos também daquele casal. Estas humilhações acompanham sempre todos os tipos de agressão. A repetição de um comportamento ocorre com muito maior freqüência do que podemos ver a olho nu. Ou seja, a menina que cresce vendo a mãe ser humilhada e desvalorizada pelo pai, internaliza estes comportamentos como “normais”, e, na vida adulta buscará um parceiro “conhecido”, aquele que a tratará como sua mãe foi tratada. Estamos falando de um mecanismo psíquico que nos acompanha a todos no processo de desenvolvimento e estruturação mental, a identificação inconsciente e a compulsão à repetição. A cena da violência doméstica opera um isolamento da família do em torno social, promove a dissimulação, a negação dos fatos, a mentira, pelo constrangimento e vergonha causados, privilegiando assim o agressor que se mantém autorizado por todos a continuar o seu comportamento violento. Quando há um transbordamento deste muro de silêncio, erguido para acobertar esta cena, nos encontramos com um segundo muro, o do direito à preservação da privacidade. A mídia vem seca querendo a história real, a entrevista com a vítima, a opinião dos policiais e dos especialistas. Isto porque só assim este tema sai da gaveta. A publicação Mídia e Violência – Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no Brasil, organizada por Sílvia Ramos e Anabela Paiva, nos revela, nitidamente, uma linha de evolução da imprensa brasileira na cobertura da criminalidade, que deixou de ser “menor” e para jornalistas “menores”, e ganhou uma implicação com a cidadania. Nesta mesma publicação encontramos um artigo sobre algumas categorias de atos violentos que não tem espaço na imprensa. A pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, CESeC, constatou a publicação , em oito jornais do Rio de Janeiro em 2006, de notícias de 593 atos violentos, “apenas uma era de violência sexual (0,2%)”. A pesquisa sobre a publicação de textos sobre o tema, considerando nove jornais de três estados, em 2004, encontrou apenas seis textos, perfazendo 1,14% de 527 matérias. Enquanto isso, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, (Senasp), tem registros de 14.719 casos de estupro em 2004 e 15.268 em 2005. Baseada nos registros da Polícia Civil do Rio de Janeiro, pesquisa do CESeC encontrou o número de 3.608 estupros e 4.947 atentados violentos ao pudor entre os anos 2001 e 2003.  Mas, como disse Bruno Thys, Editor dos jornais “Extra” e “Diário de S. Paulo”, é muito difícil confirmar um estupro, e, portanto, para evitar enganos e suas conseqüências legais, e já que grande parte das situações ocorre dentro da privacidade da mulher, é de praxe manter o anonimato do acusado e são raras as publicações, pois que se tornam uma revitimização da mulher, como ressalta o repórter Mário Hugo Monken, da Folha de S. Paulo. Buscando diminuir esta dificuldade, o Instituto Patrícia Galvão, entendendo que a mídia tem grande importância na transformação social e política, incluindo os direitos da mulher, criou em 2000, um manual que orienta e recomenda os cuidados que devem ser seguidos por jornalistas que desejem fazer reportagens com vítimas de violência doméstica. Jacira Melo, fundadora do Instituto Patrícia Galvão, chama atenção para a descontinuidade da cobertura do tema pela imprensa, ressaltando que “se deixarmos de lado o período de aprovação no Congresso e a sansão da recente Lei Maria da Penha, dedicada à punição dos agressores, encontraremos uma presença muito reduzida do tema nos jornais”. No mesmo artigo sobre “O Movimento Social de Mulheres e a Imprensa: uma Cobertura Construída em Parceria”, Jacira Melo analisa o que ocorre nos jornais pernambucanos, onde o tema tem obtido visibilidade. Apoiada em projetos como o Observatório da Violência Contra a Mulher, da ONG SOS Corpo, a imprensa ao invés de noticiar casos isolados, escreve: “décima-quinta mulher morta este mês em Recife”, relacionando pontos das ocorrências dentro de um contexto maior, porquanto é parte de uma questão social, que é pertinente a todos nós. Bárbara Soares, Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, fala com pertinência do vazio do argumento quantitativo tão divulgado, “a cada 18 minutos uma mulher é espancada”, que nada acrescenta quando precisamos saber de modo profundo o funcionamento relacional e afetivo entre homens e mulheres e o fenômeno da violência doméstica. O que quer dizer um intervalo de 18 minutos para Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica, hoje com 61 anos, que lutou por quase 20 anos para se defender de seu marido, um professor universitário de economia, pai de suas três filhas. Em 1983, na época com 38 anos e suas filhas com idades entre 2 e 6 anos, seu marido atirou em suas costas enquanto ela dormia. Maria da Penha ficou internada por 4 meses e voltou para casa paraplégica. Na segunda vez ele a empurrou da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. O agressor, Marco Antônio Herredia Viveros, foi a júri duas vezes. A primeira, em 1991, seus advogados conseguiram anular o julgamento. Em 1996, foi novamente a júri, e condenado a 10 anos e 6 meses, mas recorreu da sentença. Maria da Penha, cansada da indefinição do seu caso, pediu ajuda à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele cumpriu menos de um terço da pena e foi colocado em liberdade. Maria da Penha transformou sua tragédia em sentido para sua vida, e hoje é Coordenadora de Estudos, Pesquisas e Publicações da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência, APAVV, no Ceará.
                Por outro lado, o Projeto de Lei 2654/03, que já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, propõe a interdição do castigo físico para crianças e adolescentes. Escrevemos sobre sua necessidade em fevereiro de 2006, artigo que foi publicado pelo Jornal O Globo. Por trás do tema e do argumento de “palmada educativa” está alojado o prazer profundo pelo poder da posse do corpo de nossos filhos, crianças e adolescentes, em lugar da responsabilidade, do cuidado e do afeto. Esta distorção patrocina mentes patológicas desgovernadas na prática de espancamentos que tanto nos custam a todos, e, em especial, às vítimas. Todo espancamento começou por uma palmada. A humanidade ainda não é competente diante de seu impulso destrutivo. Terrorismo, corrupção, violência doméstica, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer íntimo do exercício da opressão. 
                Considerando, pois a complexidade da questão, seu aspecto privado, os vínculos afetivos implicados, e, conseqüentemente, o conflito agudo da vítima e a dor psicológica, a escassez dos estudos, a pouquíssima visibilidade na mídia, a superficialidade do olhar social sobre o tema, gostaríamos de pensar o nosso momento à luz do conceito de modernidade líquida, proposto pelo sociólogo Zygmunt Bauman.
                 Bauman lançou um olhar sobre questões como a globalização e suas conseqüências humanas, a individualidade, tempo/espaço, a política, o amor, o trabalho, o capital, enfim, a passagem da modernidade “consistente” e “sólida” para uma modernidade “leve” e “líquida”, que se move à velocidade do sinal eletrônico, mudando de modo profundo as relações do homem com o mundo e do homem com o outro e com ele mesmo.  Bauman aponta com firmeza para a falta de garantias, a incerteza da continuação e estabilidade, a insegurança do corpo e do eu. A precariedade, a vulnerabilidade e a instabilidade cercam hoje a condição humana. Até quando teremos ar para respirar? Ou água? O que quer dizer a afirmação em “tempo real”? Nossa mente não está preparada para processar este tipo de ameaça porque não há uma instância maior para se dirigir, para encaminhar alguma questão. Segundo o autor, o capital não tem nenhuma dificuldade em “desarmar suas tendas”, executando por toques rápidos a destruição e o desmantelo de todas as relações de trabalho e suas extensões que ali existiam, em pouquíssimo tempo. Aliás, o tempo, que tempo? A sua medida vale para que coisas? Temos que nos ocupar na modernidade líquida com outro conceito qualitativamente diferente: o não-tempo assim como o não-espaço. “A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo. No universo do software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, “em tempo nenhum”;”, Bauman. Nas relações amorosas esta velocidade, acompanhada de desengajamento já é observável. Adolescentes se beijam íntima e loucamente sem, sequer, saber o nome do outro, adultos tem relações sexuais à primeira vista, sem pagamento. Existem também as relações sexuais virtuais. São o não-tempo e o não-espaço que permeiam todas estas modalidades relacionais atuais.
                 O Homem primitivo tinha quatro problemas cotidianos que lhe angustiavam: a fome, o frio, a dor e o medo. Deixando de ser nômade e cultivando a terra ele “resolveu” sua fome, usando a pele dos animais caçados ele deixou de morrer de frio. Pôde formar a família. Saía e retornava para o mesmo lugar, onde permanecia a mulher, cuidando dos filhos, agasalhos, ferramentas, utensílios, do que estavam juntando.  Mas a dor e o medo ele não resolveu, e continuaram lhe matando. Recentemente ele conseguiu abolir algumas dores físicas com a extirpação de conexões da rede transmissora neuronal. Entretanto a dor psíquica e o medo vão continuar presentes em sua vida.
                  Nos anos 60 o Movimento Feminista promoveu em todo o mundo passeatas, debates, ocupou um grande espaço na mídia. Pensadoras discursaram, escreveram livros, queimaram soutiens. A tolerância ao machismo e seus parentes era zero. Ao esforço revolucionário, repetido inúmeras vezes devemos parte do que temos hoje. Mas, como um furacão, chegou, desarrumou tudo e se foi, deixando marcas históricas.         
                 E, retornando à nossa mulher, aquela que foi para casa pensar, enquanto continua a cuidar dos filhos, dos agasalhos, das ferramentas, dos utensílios, e mais do supermercado, às vezes junto com a jornada de trabalho, ou seja, continua vivendo sua função feminina de agregar, como ela conciliará sozinha, estas duas tendências que se antagonizam com sua natureza agregadora? O corpo da mulher é o espaço, o primeiro, é o tempo, o primeiro, é o alimento, o primeiro, é o agasalho, o primeiro.
                  E ainda, esta nova formatação do nomadismo que se instalou na pós-modernidade é também incompatível com a função feminina de agregar, de tecer, de esperar, de fazer crescer.
                   Estamos diante de um momento extremamente difícil. Foi conquistada a etapa fundamental. Mas precisamos reconhecer que não consertamos um erro “garantindo” a uma mulher que ela pode reagir.   Provocar um movimento social para chegar a uma mudança é um processo longo, árduo e laborioso. E que prevê mudanças nas relações afetivas entre homens e mulheres, entre homens e suas crianças. Faz-se necessário capacitar o homem a ser pai e companheiro, a perceber quando uma mulher deve ser, adequadamente, ajudada, e não agredida porque ele, vendo-a fragilizada sente-se desamparado e se enfurece. Quando o ser humano sente medo ele ataca como defesa. Este mecanismo traz um alívio da tensão, uma negação da fragilidade, e uma ilusão de força e poder.  Portanto, a violência é um comportamento que se manifesta quando morrem a palavra e a capacidade de empatia, fundamentos do processo de humanização, e conseqüentemente, de cultura e civilidade. Há um Projeto de Lei 2654/03 que tramita no Congresso há alguns anos, e por lá vai “passear” por não se sabe quantos anos. Quantas crianças não teriam perdido a vida se já estivéssemos trabalhando por sua implementação e efetivação. Há uma Lei 11340/06 que, recém-nascida, já luta para sobreviver e continuar. Quando um homem espanca uma mulher, ele o faz dentro de casa, na presença dos filhos. Ele espanca a família, ele espanca as filhas e filhos das filhas e dos filhos. Esta é uma cadeia que se perpetua.    



Ana Maria Brayner Iencarelli <anaiencarelli@rionet.com.br>         
Psicanalista
ESCOLA DA MAGISTRTURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - EMERJ

PRIMEIRA JORNADA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, A CRIANÇA E O IDOSO - em 05 de junho de 2008                                     

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