quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os 18 anos do DECA no ECA: a violência doméstica sob a ótica interdisciplinar

“Os 18 anos do DECA no ECA: a violência doméstica
sob a ótica interdisciplinar”.



          O Projeto de Lei nº 2654/03, aprovado em 19 de janeiro de 2006 pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, lançou a interdição do castigo físico, e as questões relativas a sua prática estão em alta. Discussões, entrevistas, mesas redondas estão sendo promovidas pela mídia, dando amplo espaço a “achismos superficiais” que se contentam com adultos a dizer “levei palmada e estou aqui”! Ninguém ouviu uma só criança, um só adolescente sobre como se sentem quando são punidos fisicamente ou são agredidos pelos pais nos mais diferentes contextos. Talvez os adultos que estão lendo agora este texto, pensem que eles foram crianças e adolescentes e que se lembram como se sentiam. Considerando que nossa memória não é totalmente objetiva, ou seja, que nosso funcionamento mental é regido pelos princípios do prazer e da realidade, sob a administração do princípio econômico que busca o maior prazer com o menor custo psíquico adequado à realidade, veremos logo que não podemos confiar inteiramente nas nossas lembranças. Quando se faz necessário entra em ação o que chamamos de mecanismos de defesa que tem a função de proteger a mente. Submetidos aos mecanismos de defesa os fatos se distorcem, minimizamos nossas sensações e sentimentos, negamos o que aconteceu, projetamos, no outro, o que não nos agrada em nós mesmos, nos identificamos com o inimigo quando ele é muito assustador, etc., etc., etc., em busca de um arranjo suportável para determinado fato. Portanto, dando fé a nossas lembranças, não precisa nem perguntar às crianças e aos adolescentes porque eles não teriam capacidade de avaliação desta questão. Aqui reside o nascedouro do que está por trás do tema: o prazer profundo pelo poder da posse do corpo dos nossos filhos, crianças e adolescentes, no lugar da responsabilidade pelo corpo do outro, negligenciada ou mesmo inexistente. Esta distorção, posse ao invés de responsabilidade, patrocina a ação desgovernada de mentes patológicas, quando da prática de espancamentos que levam ao óbito de crianças e adolescentes, noticiário que tanto nos horroriza pelo desencaixe do mito do “amor de mãe”.  Encontramos as mães com maior fatia da estatística: 52% dos casos de violência física são praticados pela mãe, contra 24% praticados pelo pai, 8% por padrasto e madrasta e 13% por outros parentes, restando 3% por não parentes, segundo estudos estatísticos da Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência – ABRAPIA, 1999. Vale ressaltar que estes índices foram obtidos com base em denúncias acolhidas pelo Programa S.O.S.criança, portanto, se acrescentássemos as “palmadas moderadas educativas”, certamente, teríamos indicadores chegando aos 70 ou 80% de mães batendo em seus filhos. Este é um fator que evidencia esta distorção da maternidade: saiu do meu corpo, é meu.
          A violência é um componente da mente humana que a civilização e a cultura vem tentando reprimir. Muito já foi conseguido se olharmos através da nossa história.   Na Roma antiga, “o pai detem, durante toda a vida de seus filhos, o poder de jogá-los nas prisões, flagelá-los, mantê-los acorrentados para fazer trabalhos rústicos e pesados, e até de vendê-los”, Lallemand, em seu livro de 1885, “História das crianças abandonadas e largadas”, editado na França.  Encontramos no livro de J. Dehaussy,  “A Assistência Pública à Infância, as crianças abandonadas”, 1951, também editado na França, a referência a comportamentos de uso e abuso do corpo da criança: “mulheres sifilíticas que davam de mamar a bebês na crença de que assim se livravam da doença, os amantes da necrofilia que buscavam em crianças pequenas a prática de seus rituais de magia e maldades, assim como velhos que se banhavam com o sangue de crianças para rejuvenescer”. Entre nós, em 02 de março de 2006, em São Paulo, encontramos no noticiário a prisão da mãe e padrasto de um menino de 8 anos  encontrado nu com diversos hematomas e amarrado a um tronco, ao lado de uma espécie de altar de magia negra. Quantos bebês recém-nascidos afundaram em nossos rios antes de serem resgatados vivos ou mortos, pois esta é uma prática muito mais freqüente do que o que chega aos jornais. Segundo o Dr. Cid Pinheiro, coordenador do Serviço de Pediatria do Hospital e Maternidade São Luiz Unidade Morumbi e Itaim e professor assistente do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, os abusos contra crianças representam 1% dos atendimentos nos serviços de emergência médica, provocando milhares de óbitos anualmente, além de muitas seqüelas físicas e psicológicas graves. Ele acrescenta: “apanham mais as crianças que “dão trabalho”, as temperamentais, as choronas, as portadoras de doenças crônicas, as gêmeas e as nascidas prematuramente.” Estudos realizados pela ABRAPIA, publicados na Cartilha “Maus-tratos contra Crianças e Adolescentes – Proteção e Prevenção”, apontam as lesões mais freqüentes: em primeiro lugar vem a pele com escoriações, hematomas, queimaduras, em segundo lugar, o esqueleto, fratura de ossos longos, em terceiro lugar, o sistema nervoso central, com os lactentes somando 90% das lesões identificadas até 2 anos, em quarto lugar os órgãos intra-abdominais, com hematoma intramural de duodeno e ruptura de fígado e baço.  O infanticídio foi tolerado até o fim do século XVII. Poderíamos listar vários comportamentos que, ao longo da história, denunciam a posição de dominação e posse sobre os pequenos. Mas a linha predominante é a da evolução humana: já não aceitamos mais, por exemplo, nenhuma destas condutas, e nem mesmo a palmatória como instrumento da mesa da professora dos primeiros anos escolares. Mas, com toda a civilidade de 21 séculos, a humanidade ainda não adquiriu a competência suficiente para conter seu impulso destrutivo: guerra, terrorismo, corrupção, tortura, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer do exercício da opressão.
          Estarrecida, ouvi um educador falar em defesa da palmada dita “educativa” que esta lei seria uma interferência na vida familiar, “o Estado entrando em casa onde a supremacia tem que ser dos pais”. Se concordarmos com ele, estaremos legitimando o desrespeito ao corpo do outro visto como posse daquele que detém a razão: o pai/mãe que bate no filho/filha, o pai/mãe que abusa sexualmente do filho/filha, o marido que bate na mulher, ou seja, o mais forte exercendo o poder segundo sua arbitragem.  Aliás, é importante lembrar que os pais param de aplicar os castigos físicos em seus filhos quando estes crescem e deixa de ser assimétrica a relação das dimensões corporais entre eles. É preciso ter a garantia da impotência do outro para banir o insuportável medo de sua própria impotência que então cede lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência. É assim que fazem os pais com seus filhos, é assim que fazem estes filhos como autores de bullying na escola, é assim que continuam a fazer como pitboys nas festas e discotecas, e, prosseguindo na cadeia de transmissão transgeracional, é assim que passam a fazer de novo com seus filhos, numa compulsão à repetição monótona e adoecedora. No artigo “Bullying – comportamento agressivo entre estudantes”, publicado pelo Jornal de Pediatria Rio de Janeiro, 2005-81, o Dr. Aramis Lopes Neto, Coordenador do Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes – Projeto da ABRAPIA, descreve a cena composta de três elementos: o autor do bullying, designação do agressor, o alvo, a vítima da agressão, e as testemunhas, os alunos que observam ativa ou passivamente a agressão. Ele afirma que “algumas condições familiares adversas parecem favorecer o desenvolvimento da agressividade nas crianças. Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento afetivo pobre, o excesso de tolerância ou a permissividade, e, a prática de maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder dos pais.” E acrescenta: “ Alvos, autores e testemunhas enfrentam conseqüências físicas e emocionais de curto e longo prazo, as quais podem causar dificuldades acadêmicas, sociais, emocionais e legais.” Entre elas o abandono escolar e o suicídio na adolescência.
          Nestas últimas semanas assistimos a sucessão de notícias de crianças vítimas de maus-tratos físicos: Lucas tinha 2 anos,tinha queimaduras e hemorragia nasal; o bebê de Nova Iguaçu tinha o cordão umbilical  e, jogado no asfalto, foi atropelado;  a outra levou um chute e rolou uma escada; outra foi espancada pela mãe e padrasto até a morte; etc.etc.etc. Mas este foco vai passar e nos esqueceremos destas monstruosidades, como esquecemos de uma Paloma, 9 meses, que morreu de um traumatismo craniano quando deu entrada pela oitava vez em um hospital, há 4 anos atrás. Será que nós, pais instruídos e esclarecidos, que até usamos na linguagem o conceito de trauma psicológico, não fazemos parte disto aí, a nossa palmada é educativa?!
          Enquanto especialista em Saúde Mental de Criança e Adolescente, posso afirmar que bater, gritar e humilhar, causam dano permanente à mente em desenvolvimento. Sabemos todos que a violência é endêmica, portanto é preciso escutar melhor e, sobretudo, se responsabilizar, porque a violência nasce quando morre a palavra e o afeto.


          Este foi o artigo que escrevi em fevereiro de 2006, publicado com o título “Violência e Afeto” no Jornal “O Globo” de 20/02/2006.  Este Projeto de Lei, 2654/03, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, em 19/01/2006, foi engavetado, abandonado ou esquecido, pelas nossas parlamentares que o “carregavam como um bebê”, por ocasião de campanha em que iriam se candidatar em seus respectivos estados. Surge a campanha “Não bata, Eduque”, muito bem-vinda, com a mesma proposta, e logo depois, em julho de 2010, surge a alteração da Lei 8069/90, acrescida do art. 17-A, Parágrafo Único, incisos I, e II, e art. 17-B, e art. 70-A incisos I, II, III, IV, e V. Projeto de Lei assinado por Paulo de Tarso Vannuchi, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto e Márcia Helena Carvalho Lopes.
           Confesso aqui minha dificuldade em entender: festejado como inédito, é um novo trabalho, é o mesmo projeto de lei 2654/03 com algumas melhorias, é o velho vestido de novo, re-serviço?
          Depois das crianças citadas, assistimos a fila andando. Passou a morte da Isabela, da Joana, do Bernardo, a recém-nascida jogada na Lagoa da Pampulha, a outra jogada no coletor de entulhos, a internação do João Carlos, da “vaquinha” como a chamava sua mãe adotiva que marcava seu rosto com enormes hematomas resultado de socos, o espancamento letal e esquartejamento dos dois irmãos de 11 e 12 anos pelo pai e a madrasta, o espancamento brutal de dois meninos, executado pelo pai, e registrado no celular pelo irmão mais velho, o assassinato do Renan, 2 anos, pelo pai, o espancamento até a morte de Nicolas, 2 anos, pela mãe e o padrasto, e de todos os que ainda aparecerão, paulatinamente, na mídia, a fila vai andando. Vale ressaltar que alguns destes casos já tinham sido denunciados ao Conselho Tutelar, que os acompanhava. Além destas crianças sacrificadas, as crianças que ficam anônimas nas suas dores vão continuar sofrendo agressões e violência dentro de casa. Reside aqui uma questão complexa: a atualização dos conceitos de público e privado. Seria como argumentou aquele educador em 2006, e, continuo a ouvir este argumento, esta lei de interdição do castigo físico uma interferência, uma invasão aos lares e a suas leis próprias?
          Estas crianças emblemáticas nos evidenciam a característica humana: o prazer de exercer a opressão em vulnerável. E, quanto mais vulnerável, maior é a fonte de prazer para o agressor. Pais batem em seus filhos, que se tornam alunos-autores de bullying na escola, e continuam como pitboys a praticar a violência em festas, nas ruas, movidos a preconceitos, depois, como maridos, batem e humilham suas mulheres, e, repetindo a cadeia adoecedora, anos depois, aqueles filhos que foram espancados, passam a espancar seus filhos. A violência psicológica, incluindo aqui o abuso sexual, praticada contra crianças e adolescentes, não deixa marcas visíveis, mas marca a mente para sempre. Este é um ciclo que se repete, monotonamente. Espancado hoje, espancador amanhã. Abusado hoje, abusador amanhã. Humilhado hoje, promotor de humilhação amanhã.
          A Cultura da Transgressão e sua complementar Cultura da Perversão formam hoje a base do nosso comportamento, o privado e o público. Na nossa sociedade cenográfica é preciso apenas fazer de conta, ter uma fachada de funcionamento necessário, sem que seja necessário sê-lo. Os números, os programas, as falas, são bonitos. Mas não existem. Existem cerca de 02 milhões e meio de estudantes analfabetos cursando os anos escolares, até o 9º ano. Analfabeto para ler, escrever e fazer as 04 operações de aritmética, analfabetos sociais. Se uma criança não precisa aprender para ser aprovada, ela perde a noção de regra, de lei básica, e perde também a possibilidade de desenvolver sua capacidade de pensar. O nosso desenvolvimento cognitivo tem na escolaridade seu terreno promissor. É indispensável que a escola desperte a criança para o sistema de nutrição de sua característica epistemofílica. É perverso abandonar crianças empurrando-as para fora do mundo do conhecimento, assim como, é perverso institucionalizar um valor monetário pela criança. Transgressão e Perversão se misturam e se beneficiam uma da outra. Quanto mais transgressora uma sociedade, mais violenta ela é com suas crianças, seus idosos, seus doentes.
         Os pequenos desvios estão sendo assimilados pelas nossas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um critério claro de certo e errado, de limite, de lei, de conseqüente punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que, por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Não nos reconhecemos neste mecanismo de defesa? Falta-nos, a todos, vontade política consistente, conseqüente e persistente. Relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os grandes, quando negamos nossa participação, quando nos identificamos com o agressor, quando negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o conteúdo, nós não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização social. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência, do desânimo que se converte numa certa excitação pela barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Não paramos para pensar o conteúdo destas notícias, ficamos na superfície. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade. Alojamo-nos naquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com o agressor, para escapar do medo de enfrentar o agressor. Culpamo-nos uns aos outros, no entanto, todos, temos responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica.
          No VIII Congresso Brasileiro do Instituto Brasileiro de Direito da Família, IBDFAM, o Presidente Dr. Rodrigo Pereira Cunha ressaltou a importância do momento: a inversão do público e do privado. O Presidente do IBDFAM chamou a atenção para o aumento da importância crescente do público, quase um desafio, em inversão revolucionária ao privado. Disse ele: “Esta nova concepção de política, a partir das questões privadas, não significa desistir das antigas questões e ideologias que nos moveram até aqui. Significa apenas uma reformulação sob a perspectiva de um humanismo que tem a dignidade da pessoa humana como aspecto central”. E acrescenta: Os problemas aparentemente privados são os problemas politicos de hoje: a dívida pública, as questões ambientais etc, não teriam tanta importância política se o que estivesse por detrás não fosse o mundo melhor que queremos deixar aos nossos filhos e às gerações futuras”.
          Somos cada vez mais muitos, e cada vez menos um. Nossa identidade é grupal, mas, contraditoriamente, sentimos cada vez mais solidão em meio à multidão. E continuamos com dificuldade de sentir o público como nosso. A título de exemplo, é fácil reclamarmos com alguém que jogou uma latinha usada no nosso jardim, mas não sentimos a mesma coisa se vemos alguém jogando uma latinha na nossa praça. Nosso jardim. Nossa praça? E, quando se trata de tratamento dado à criança, é privado, ou público? Podemos bater quanto quisermos porque é nosso filho? As mães, que batem mais que os pais, justificam-se: “é meu, saiu de mim”.
          Assim, retomemos a lei, as leis. Somos copiados por outros países, o ECA é brilhante, o DECA, um olhar especializado. Mas nos comportamos na busca da vantagem egoísta, no vale-tudo para “ser feliz”, para nos livrarmos de uma raiva. Quando não internalizamos a noção de lei simples, o não pode, ficamos incapazes de empatizar com o outro e, conseqüentemente, de nos sentirmos responsáveis pelo que causamos ao outro. A dita medida disciplinar que serve de justificativa para o uso de castigo físico, tratamento cruel e degradante não se sustenta. Faz-se necessário o olhar de cuidado especial, necessidade da criança, que denuncia a patologia: a Síndrome do Pequeno Poder. A humanidade ainda não é competente diante de seu impulso agressivo e destrutivo. Violência doméstica, consumo e o tráfico de drogas, corrupção, milícias de vários tipos, as policialescas e as políticas, com leis próprias que incluem a pena de morte, pela ausência ou abuso dos serviços públicos, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer íntimo do exercício da opressão, que produz no agressor a ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência.  
               O comportamento empático-responsável intra-familiar é a possibilidade de estruturação e desenvolvimento saudáveis, e, conseqüentemente, a possibilidade da boa convivência humana. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e nos comprometermos com aquilo que vamos dar como resposta, pensando, o mais próximo possível, em como o outro vive aquele momento ou situação. O outro e não eu. Esta é uma capacitação, processual e não pontual, que deveria fazer parte do desenvolvimento saudável das nossas crianças. Nós a perdemos, completamente, para o egocentrismo com frieza afetiva, nos últimos tempos. A solidariedade, que é apenas a parte inicial da empatia, surge na tragédia. Muito bonita, é fundamental para o começo, mas, sabemos, ela se apaga com o apagar das câmeras. Trocamos de foco e esquecemos sem ajudar a resolver o problema do outro, que também é nosso. Vivemos um tempo regido por dois cultos. O primeiro, o culto ao egoísmo narcisista. Não é preciso ser, é indispensável ter e parecer ter, a qualquer custo. A passarela, o futebol, a mídia de imagem tem ido buscar na infância da cidade e do interior os seus trabalhadores, pequenos sonhadores explorados financeiramente pelas famílias e pelos agenciadores. Aqui, o público entrando nos lares e o publicado do que é intra-familiar, não tem importância. O segundo, o culto à impunidade que, de uma maneira ou de outra, todos nós nutrimos, e que retira um dos dois elementos da base da internalização da lei, a sanção e seu sentido. A sanção é registrada na mente como a conseqüência daquela falha na regra e na conseqüente responsabilidade. Assim, nossa sensação térmica de impunidade é cada mais intensa e, portanto, muito difícil de suportar.
          Tomemos como exemplo a Síndrome do Bebê Sacudido. Pouco conhecida e não detectada nos serviços de emergência ou nas anamneses, mas todos conhecemos a cena: um bebê de meses chora e a mãe, irritada o sacode com crescente rispidez até a brutalidade. O movimento de sacudir feito pela mãe, faz com que a cabeça do bebê seja jogada para frente e para trás, sem que ele consiga controlar. O cérebro esbarra sucessivamente na caixa craniana, fazendo com que ocorram inúmeras micro-hemorragias cerebrais. Logo o bebê cala, fica molinho, e adormece. Por muito tempo. Ou seja, seu sistema nervoso central tenta se proteger, e se recuperar reabsorvendo os pequeninos sangramentos, entrando para isso em estado semi-comatoso. Esta letargia do bebê dá à mãe a sensação de alívio da sua irritação, que, se questionada, se justifica dizendo que era manha mesmo, tanto que parou de chorar e dormiu. A síndrome do Bebê Sacudido é o exemplo mais ilustrativo que explicita bem a falsificação da justificativa de “educativa” da conduta agressiva contra a criança. A mãe experimenta uma extrema sensação de onipotência, de posse total, diante da mais absoluta vulnerabilidade do bebê. Qual teria sido a desobediência do bebê que precisava ser corrigida? Vale ressaltar que a metade das entradas hospitalares de bebês até 02 anos de idade, deve-se ao diagnóstico de traumatismo craniano. Os bebês não caem tanto dos berços como respondem mães e pais ao chegarem às emergências. Assim é também com as crianças queimadas, marcadas, com fraturas, abusadas sexualmente, humilhadas.
          Faz-se necessário explicar o funcionamento psicológico de uma mãe que sacode violentamente seu bebê para que pare de chorar. De pronto, somos levados a reagir com indignação. Mas o que acontece é que a conduta violenta desta mãe é movida pelo seu inconsciente. Ela acredita que está apenas ensinando para ele que ela é que sabe que ele não está sentindo nada para chorar, e que isto não é violento, é para ele aprender. Também não percebe que tipo de sono ele teve em seguida e a sua duração. Por outro lado, por menor que seja este bebê, ele vai “aprender”, ou seja, este comportamento da mãe será captado como sinal de alerta para que ele a proteja deste descontrole. Os bebês, muito precocemente, sentem o limite do descontrole da mãe, e o marcam com uma espécie de alerta laranja. Afinal, a sua sobrevivência depende disto. Assim, neste diálogo da relação mãe-bebê, é inserido um código rigoroso de sobrevivência, do lado do bebê, e de poder, do lado da mãe. A mente humana tem áreas, aparentemente, contraditórias, que se devem ao inconsciente. Muitas vezes, em tratamento, chegamos a situações antigas que foram enterradas e deletadas, sofridas por esta mãe, e que, como não foram tratadas, permaneceram como verdadeiros aprisionamentos a uma cena de violência. É a troca de lugar que sempre apontamos, agredido hoje, agressor amanhã. Inconscientemente, alguém tem que pagar pelo sofrido. A objetividade não contempla o funcionamento psíquico. Quando a lógica não explica, como é no caso do sintoma psicopatológico, entramos em terreno que tem razões inconscientes de difícil compreensão.              
          A miséria psicológica, esta forma de miséria que acomete os indivíduos de qualquer classe sócio-econômica, por adoecimento mental ou por embrutecimento social, se instala quando o processo de humanização fracassa. E, diante de alguns comportamentos que somos obrigados pela mídia a tomar conhecimento, a impressão que nos fica é a de que, por vezes, estamos nos tornando sub-animais. Não há mais espaço para estes erros. Urge trabalhar para acontecer, com qualidade e responsabilidade, para implantar uma nova cultura, a da cidadania, e não sucumbir ao desânimo, à desistência, porque existe uma criança que depende do que fazemos hoje, da nossa atitude hoje, que não pode ser negligenciada, abandonada e agredida na sua possibilidade de vir a ser um bom adulto para a sua futura criança, garantindo assim um crescente processo de humanização das próximas gerações, com a indispensável sustentabilidade psicológica.

              

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2011.
Ana Maria Brayner Iencarelli.

<anaiencarelli@gmail.com>         

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