quinta-feira, 24 de outubro de 2013

IMAGINA NA COPA

IMAGINA NA COPA

          Jargão, quase piada, tem lista longa. Usado por alguns, vistos como pessimistas. Outros o utilizam como abertura para crítica ou queixa atual de um serviço público, finalizado pelo “imagina na copa”. Segundo o Fórum Nacional de Prevenção o Trabalho Infantil, temos 3.7 milhões de crianças e adolescentes em situação de exploração de sua força de trabalho. Índice considerado como uma melhora. Deste montante, nada desprezível, mais de 90% é de meninas. E quantas, dentre este número, são exploradas por trabalho sexual? Alguém poderia responder isto? Acredito que, ninguém conseguiria. Está embaixo do tapete, também, como tantos índices referentes à criança. Senão, vejamos.
          Temos 04 grandes eventos a serem realizados em tempo próximo, somando, por coincidência, um número previsto de 3.6 milhões de turistas. São 03 megaeventos esportivos, dos quais dois de futebol, e um megaevento religioso. Também incluído aqui nesta questão. Para além do problema das vagas de hotel e acomodação, língua, placas, pergunto: prestou-se atenção no perfil da população de turistas que amam o futebol? E o perfil de parte dos religiosos?
          Os investimentos, bilionários. Os públicos e os privados recheados de incentivos. Estádios, hotéis, centrais de controle de segurança, helicópteros de guerra urbana, embelezamentos muitos. A mídia noticia os treinamentos especializados. As aulas de inglês estão por todo lado. De boas maneiras. Da segurança de grandes concentrações com a preocupação em ações terroristas à discrição dos funcionários dos hotéis para não incomodar as celebridades. O lixo tornou-se objeto de planejamento, com direito à multa para quem não obedecer e jogá-lo no chão.
          Mas, imagina na Copa, sim. E a primeira já chegou. Imagina se os pedófilos exploradores e os pedófilos consumidores vão ficar só vendo a bola rolar. Imagina se este comércio também milionário patrocinado pela miséria psicológica da vulnerabilidade de uma menina ou um menino, irá deixar passar uma oportunidade dessas. De um lado, homens sem suas famílias, bebendo e se divertindo. Do outro, uma legião, ninguém sabe quantos por falta de estudo e trabalho, de vulneráveis submersos em várias misérias, vivendo as frustrações de uma sociedade consumista.
          Terrorismo é oferecer a negligência, diria mesmo a conivência com a prostituição infantil já anunciada para quem quer ver. Podemos também desviar o olhar. Lixo é como estas meninas vão se sentir pelo resto da vida, lixo social. Com precária condição sócio-econômica a menina e o menino que já vivem de bolsa, vão viver de bolsinha. Para as meninas, um investimento suplementar será necessário nove meses depois de cada evento destes, para cada uma que passar a ser mãe adolescente de um filho sem pai. Mas ela fará parte do tão falado legado deixado. Um pós-guerra pós-moderno.
           Nenhuma campanha de prevenção e proteção de crianças e adolescentes contra a exploração sexual infanto-juvenil, como tinha sido prometido. Uma conferência para turistólogos ficou em fevereiro. Falava de um compromisso oficial. Confirma-se isto quando uma doutoranda de Administração Pública, com foco na eficiência de “Instrumentos Públicos”, brasileira estudando no Canadá, que vem buscar estas informações para sua tese, percorre pessoalmente SETUR, RIOTUR, SEBRAE, BITO, e C&V Bureau, este por telefone, e nada, nada encontrou sobre alguma campanha de “Turismo Sustentável e Infância”, nenhuma atitude política ou social. Ela nos contatou, trazendo na bagagem de sua pesquisa de campo este vazio da ação pública. Em branco. Há alguns anos, uns oito ou dez, houve uma campanha especial da EMBRATUR voltada para o combate do turismo sexual infantil. À época, em agências de viagem em países da Europa, havia cartazes que ofereciam pacote turístico para o Brasil com o bônus de uma virgem menina. Participamos deste trabalho.
          Perdemos mais uma vez uma oportunidade de exercer nossa cidadania. Perdemos mais alguns milhares de crianças e adolescentes para a pedofilia. Perdemos mais algumas décadas para a conivência com a transgressão e a perversão. Porque ela não termina quando acaba o último megaevento, ela é do legado. Será que seria muito difícil incluir nas aulas de inglês uma frase que mostrasse o nosso cuidado e a nossa responsabilidade com nossas crianças? Seria um começo. Imagina um pouco de verba para treinar a atenção do turistólogo receptivo sustentável. É insustentável oferecer os filhos menores para o prazer sexual de visitantes perversos. O tempo dos 90 milhões em ação já acabou. Ou deveria. Quando vemos que, novamente estamos nos enganando e desviando o olhar para cumprir o pão e futebol de cada dia, ficamos com a impressão de que não crescemos, só inchamos e dobramos de número. As crianças e adolescentes brasileiras precisam apenas de alguns, mas com compromisso, com envolvimento, com responsabilidade, com legítima vontade política.  
“don’t touch our children!”
“ne toucher pas nos enfants!”
“não toque nas nossas crianças!”
    
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Crianças e Adolescentes.

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