quinta-feira, 24 de outubro de 2013

FAMÍLIA E ESCOLA: PAPÉIS E FUNÇÕES

FAMÍLIA E ESCOLA: PAPÉIS E FUNÇÕES
                                                                                                
                                                                                                 Ana Maria Iencarelli.


          Pai, mãe, filho, filha. Formato simples, mas hoje quase inexistente. Professora, alunos, sala com carteiras para os alunos, diretora. Formato também simples, mas também quase inexistente. O formato da família mudou, se multiplicou em várias, se recriou, mas a família não acabou. Hoje temos mais de 100 tipos de família, e não mais o grupo que surge da união amorosa de um casal. Casal também mudou, pode ser homo-afetivo. As novas modalidades incluem o pedido judicial de um registro de filhos de duas mães e pai desconhecido. A sexualidade mudou. Temos na adolescência a virgindade como vergonhosa ou sendo leiloada pela internet.
          A escola também vem mudando. Dividiu-se o conceito “escola” em dois grupos: o que tem computador e o que não tem computador. O grupo que tem computador, instalações e tecnologia, incluindo câmeras que podem ser acessadas pelas mães à distância. Mesmo com todas estas ofertas, as crianças que estudam nestas escolas são verdadeiros mini-executivos: fazem cursos de inglês, alemão, natação, judô, futebol, balé, informática, komon, equitação, ginástica olímpica, preparação para comercial de televisão, e, na época das provas, aulas particulares. As aulas de artes e de música estão um pouco fora da moda.
          O grupo de escolas que não tem computador, muitas vezes, não tem as instalações mínimas necessárias. Nem banheiros usáveis, nem carteiras inteiras para sentar, e, às vezes, nem telhado em todos os lugares, e, muitas vezes, nem professores em todas as disciplinas. Uma parte das crianças, de 7 a 14 anos, matriculadas nestas escolas soma os mais de 2.1 milhões de analfabetos, não sabem ler nem escrever, do total de 2.4 milhões de brasileiros analfabetos.
           Papéis e funções se avizinham e se completam, quando cumpridos. Organizadores, eles orientam. Satisfazendo as necessidades, elas promovem o desenvolvimento psicológico saudável.
          Quando pensamos no conteúdo da família e da escola as dimensões crescem, assustadoramente. Tanto porque as funções destas duas micro-sociedades são complexas e extensas, quanto porque a seqüência família-escola é responsável pela qualidade do ser social que nos tornamos. Precisamos pensar em qualidade, e não em processo compulsório de crescimento, de acumulação. Não é suficiente matricular uma criança, e esperar que, no final das séries, quando diplomada ela será alguém que pensa, que produz, que tem autonomia, que é capaz de fazer suas escolhas, que, portanto, vai conviver bem com os outros, cumprindo seus papéis e funções na vida adulta. Qual será, por exemplo, a conseqüência psicológica da não aquisição da leitura e da escrita, tendo ido à escola para isto durante 9 anos? Qual será, por exemplo, a conseqüência das câmeras ligadas à internet das escolas para tranqüilizar as mães? E depois da tranqüilização? Este não pode ser o papel da mãe, de fiscal desconfiada, não pode ser o papel da escola, o de provar inocência antecipadamente, obstruindo assim a construção da relação escola-família.  A criança, aquela que deveria ser o ponto de promoção de autonomia, se dá conta que as novidades que, com esforço, vai contar para a mãe, ela já sabe e a corrige em alguns detalhes. Isto pode parecer irrelevante, mas nos serve de exemplo do atual estado de desmantelo dos papéis e das funções da família e da escola. Senão, vejamos: no momento em que a separação deve ser vivida em toda a sua dimensão de impotência e de processos de substituição das figuras parentais, tanto criança, quanto mãe, tem este difícil, mas necessário processo abortado. Uma mãe acredita que está cumprindo seu papel dando “escola” para o filho, e fica na impotente esperança que no próximo ano ele vai, com certeza, se alfabetizar. A outra mãe não precisa se preocupar em estabelecer uma relação com as pessoas que deveria ter escolhido para lhe substituir junto à criança. E, esta, alimenta a fantasia de onipotência da mãe, que tudo vê, tudo sabe e tudo pode, e faz seus arranjos mentais para negar a dificuldade saudável da separação. Para um grupo, a “escola”, enquanto representante institucional, esmagando qualquer tentativa de questionamento, confirmará, mais uma vez, a enorme impotência. Para o outro grupo, a não confiança, alimentada pela desconfiança forma a base desta distância que reduz a possibilidade de relação afetiva mãe-escola a uma relação utilitária. Esta sim, está muito em voga.  E, todos os itens da estruturação dos afetos, processo difícil, ficam esvaziados. A desvalorização da empatia no discurso do “cada um que se vire”, “você não tem nada com o outro”, e, o clássico, “não fale com ninguém”, empurra a criança no isolamento e no medo do outro, fazendo com que ela busque se acalmar alimentando o seu narcisismo. Há uma simplificação e uma redução que levam à deformação das relações afetivas. A defesa deste discurso se aloja sempre na questão da segurança, realística, claro, mas que não responde à amplitude da questão. No nosso tempo de modernidade líquida, como nos conceituou Bauman, os vínculos afetivos perderam sua consistência e foram liquidificados. Escorrem e se espalham superficialmente, tomam formas imediatas que também se desfazem em um segundo. Um adolescente tem no número de “amigos” adicionados no seu Orkut um bom exemplo deste fenômeno atual. Este mesmo veículo, o Orkut, pode ser uma arma que vai destruí-lo afetivamente. Tocamos um ponto muito atual que diz respeito aos papéis. Hoje, dispomos de várias formas de ocultamento de responsabilidade e, portanto, de várias formas de realizar nossas perversões, ou consentir, silenciosamente, que sejam realizadas. Esconder-se na virtualidade contrasta com o sucesso da programação das férias nacionais, cuja proposta é a exposição exaustiva de um grupo de pessoas que passam a ser julgadas e eliminadas pelo público, que passa a se sentir profundo conhecedor das personalidades expostas. Por um lado ensina-se às crianças que não devem se importar, não devem se solidarizar com os seus colegas, por outro lado, ensina-se que devem se importar e se solidarizar com desconhecidos que exibem e vendem sua intimidade.
          Assistimos impávidos à escalada progressiva da violência. Violência física, violência sexual, violência social, violência da mídia, violência do tráfico, violência política, violência institucional. A violência é endêmica. Mergulhadas no medo, nossas crianças sofrem e tentam se defender, se identificando com os violentos. A prática de bullying é minimizada, principalmente pelos adultos da escola, assim como os alunos-testemunhas são cada vez mais silenciosos e omissos, como é omissa aquela diretora que desencoraja e até ameaça a professora que, tendo sofrido bullying de um aluno, quer ir prestar queixa. Ela, a professora, acaba por também calar-se. O trabalho de redução do bullying é feito com o enfrentamento através da escuta e da comunicação de sensações e sentimentos, envolvendo o aluno-autor, (quando é um aluno), o aluno-alvo, alunos-testemunhas, professor, pais, coordenadores, funcionários, enfim aquele universo social implicado, porque é preciso conectar-se com todos. Mas, conexão hoje, só a digital.
          Dentro deste estado, que tem sido intenso e crescente, o mecanismo de defesa que, mais freqüentemente, é utilizado é a identificação com o agressor. Como o medo é insuportável, a desistência é crescente e inevitável. A desilusão chega antes mesmo da aquisição da capacidade de fantasiar e da saudável ilusão da infância. Não há lugar para a necessária fantasia e a brincadeira de faz de conta. Afinal a realidade violenta inunda o imaginário, esquecendo que, para a criança, o mais importante é fantasiar.
          A banalização da agressão tem produzido uma espécie de anestesia emocional. Também a banalização da transgressão, igualmente danosa, tem deixado a confirmação da impunidade, hoje, alçada a “orgulho nacional”. Internalizar limites, regras e leis neste estado de desordem é uma missão impossível, quando as funções de estruturar, organizar e promover o crescimento responsável não são exercidas pela família e pela escola.

          Papéis e funções estão, na melhor das hipóteses, em branco na família e na escola, porque, se considerarmos a “normalidade” dos comportamentos desviantes e perversos praticados, observaremos que a desejada estruturação saudável do desenvolvimento psicológico, não consegue acontecer. O desenvolvimento da criança está sendo deformado. Privada da aquisição da capacidade de empatia, proibida de fantasiar pela invasão de uma realidade violenta, encarcerada em seu narcisismo primitivo, incentivada em suas respostas agressivas, desconhecendo limites e regras sociais, a nossa criança é a maior vítima de enorme violência psicológica. Nesta mistura de miséria psicológica com as mais variadas formas de violência escorre um caldo, escuro e fétido, não apenas de sub-humanidade, mas de sub-animalidade.  

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