sexta-feira, 13 de setembro de 2013

VIOLÊNCIA DA IMPUNIDADE: MAL-ESTAR OU ORGULHO NACIONAL?



VIOLÊNCIA DA IMPUNIDADE:
MAL-ESTAR    OU    ORGULHO    NACIONAL?
                                                                

                                                                     Ana Maria Iencarelli *


                   Reconhecemos com certa facilidade as imagens de exploração de mão de obra de crianças e adolescentes nos pequenos carvoeiros do serrado, ou nas meninas que vendem o corpo na orla de nossas cidades litorâneas, nas crianças dos sinais de trânsito vendendo balinhas açucaradas ou bolinhas acrobáticas. Mas, numa segunda versão, não enxergamos o trabalho de crianças e adolescentes no tráfico, nas passarelas, na publicidade, ou nas novelas. Quando na nossa sala, vemos na telinha crianças muito pequenas que nos emocionam chorando, se comunicando com a mãe que já morreu ou sendo intimidadas e assombradas por uma avó má, por exemplo, esquecemos que são crianças trabalhando, e quanto esta brilhante atuação vai custar, psicologicamente, para aquelas crianças.  
                   Por outro lado, como explicar, por exemplo, que uma garota de 14 anos, matriculada na 4ª série só consiga ler as letras das palavras sem juntá-las nem mesmo em fonemas, e que um menino de 13 anos, da 3ª série, não saiba ler ou fazer conta de diminuir por escrito, e se saia tão bem organizando e contabilizando o comércio de drogas?  O que aconteceu com aquela estatística que mostrava cerca de 40% de repetência na 1ª série? O ensino melhorou? Não. Hoje não é permitida reprovação, que foi substituída pela aprovação progressiva, “resolvendo” assim os tais 40%. Aliás, a matrícula da criança (em alguns casos apenas o carnê de vacinação) é moeda em bolsas sociais. A aprendizagem, não entra em questão, deixando claro assim, a desvalorização e insinuada inutilidade da escolaridade e da educação pelo próprio Estado. Mas ter os filhos matriculados se tornou rentável, assim como ter um filho a cada ano aumenta a renda de uma mãe desvalida. Parece-me que há aqui um indício de uma perversão social em que a criança passa a ser produto a ser vendido desde que nasce.
                   A entrada precocíssima no mercado de trabalho por todas estas vias indica a falência e o descrédito na proposta escolar e, mais tarde, nas profissões regulares e regulamentadas. É esperado que a Escola tenha o compromisso com a formação do caráter e com a transmissão de cultura e de conhecimento geral, enfim, a responsabilidade pelo processo de humanização. Em lugar disso, e do aprender a estudar, a se organizar, a prever usando o raciocínio lógico, observamos uma crescente tendência a se produzir neste período uma escola de violência psicológica que interrompe o desenvolvimento psicológico saudável, com a banalização da agressividade, a disseminação da prática do bullying, o culto e o cultivo da impunidade, presente no discurso social, através de uma espécie de adoração contemplativa. As leis, belíssimas, a de Responsabilidade Fiscal ou o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o seu cumprimento, esquecido ou negligenciado. Ficamos intrigados quando vemos que Magistrados e, mais recentemente, Ministros, assaltados ou recebidos à bala, não prestam queixa, dizendo que “isto é normal nas grandes cidades”. Se não sabemos por que isto acontece, temos a forte impressão de que as nossas Instituições não inspiram credibilidade suficiente para o exercício da cidadania nem mesmo para as pessoas que fazem parte e são pagas por estas Instituições. Para onde foi a autoridade?
                   Não gostaria de fazer deste precioso momento uma denúncia. Tenho a impressão que, em momentos de barbárie contra nossas crianças, temos gritado, temos vestido camisetas em atos numerosos, temos difundido e-mails, mas não temos sido ouvidos. Gostaria de acrescentar mais uma reflexão conseqüente, juntando-me, de novo, às vozes desta luta. Se preciso for, repetirei, incansavelmente, por mais um milhão de vezes até sermos ouvidos.
                   Observamos que todo o progresso de conhecimento do Homem não tem se convertido em progresso humano, mas sim em aumento de poder. O poder destrutivo está no nosso comportamento cotidiano. A premência da satisfação dos desejos individuais é a ordem que rege. A incapacidade de empatizar é uma espécie de lei básica que patrocina este comportamento egoísta vigente. Afinal, se colocar no lugar do outro tem sido considerado bobeira de quem quer arrumar problema. Em seu artigo, O Mal-estar na Civilização, podemos acompanhar o pensamento de Freud com a observação do que está se passando conosco. O desenvolvimento humano é resultante da boa satisfação do princípio do prazer submetido ao princípio da realidade, sob a regência do nosso superego. Nossa condição de humanização está submetida por sua vez a união com os outros humanos, a integração a uma comunidade humana ou adaptação a ela. O processo de desenvolvimento cultural, como o processo individual, nos impõe restrições. As regras de convivência e as leis fazem parte deste superego comunal. Sabemos que, se por um lado a premência da felicidade buscada pelo indivíduo, esbarra na interdição do grupo, o sentimento de frustração  advindo pode fazer com que este indivíduo rompa esta lei imposta e realize seu desejo. Espera-se que a desaprovação da comunidade e a punição por este ato, conduza aquele indivíduo à tomada de consciência e conseqüente formação de culpa e remorso. Ou seja, quando a autoridade interna (superego individual) falha, é a autoridade externa (superego da comunidade) que entra em cena. Disto depende o movimento  civilizatório, porquanto este movimento prevê todo o desenvolvimento do pensamento reflexivo que  produz abstração, nosso diferencial. Mas, como isto está ocorrendo em nossa sociedade? 
                   Da mesma maneira que já sabemos que a criança ouve mais do que lhe é dito, que ela é antenada, que ela tem em curso um processo identificatório onde os protagonistas são aquelas pessoas que lhe são especiais, sabemos que nossas crianças estão vivendo toda esta barbárie social: o menino que é estraçalhado pendurado pelo cinto de segurança, os 40 votos secretos, os 40 mensaleiros, a barbárie tributária, a do sistema de juros, a da educação, a da saúde, a da previdência, a empregada confundida com uma prostituta, o índio em chamas, a barbárie das drogas, etc., etc., etc. Podemos pensar que criança não entende destas coisas e, portanto, não é atingida por elas. Mas também sabemos que o que habita a mente de uma mãe e de um pai um tempo depois, é captado pela criança ainda bebê em forma de impressão e sensação agradável ou desagradável e assustadora. Além disso, pensar que só teve sangue na porta do carro é também uma tentativa de negação do sangue de milhares de crianças que escrevem esta nossa história de miséria violenta pela perversão social.
                   A violência narcísica, nova forma, é praticada contra nossas crianças quando são expostas precocemente para fins de venda. O seu corpo  se torna foco de olhares apreciativos e rentáveis ou depreciativos pelo critério atual de beleza da imagem visual. O sucesso a qualquer preço é o que importa porque este se tornou um sinal de “felicidade”. Assim, adultos acreditam que de “book” de suas filhas nas mãos a vida delas, e deles, claro, estará resolvida mesmo quando ela tem que ir para o Japão aos 14 anos. A competição pela disputa de um papel numa novela faz com que adultos sigam, religiosamente, instruções e horários de cursos preparatórios para testes, sem data de término. Poderíamos incluir aqui também a obrigação aprisionante do menino de se tornar um “Ronaldinho” nas escolinhas de futebol, vigiado de perto, geralmente, por uma mãe que deseja este sucesso para o filho, sucesso que virá acompanhado de uma mais garantida aposentadoria para ela. Modelo e atriz, e jogador de futebol, são os ideais de nossas crianças, alimentados pela comunidade.
                   A guerra urbana também tem violentado nossas crianças. Cada cadáver rompe a barreira do imaginário de milhares de crianças e instala uma concretude incompatível com a necessidade, própria e indispensável da infância, de fantasiar: a realidade brutalizada ocupa todo o espaço mental com imagens horrendas de morte violenta. É preciso se desviar destes corpos a caminho da escola, logo pela manhã, e fazer sumir o medo que ficou preso, sabendo que no dia seguinte tudo se repete. Invadir a mente com imagens violentas concretas danifica de maneira gravíssima a possibilidade de ter saúde mental e, conseqüentemente, social.
                   Também praticamos violência contra a criança quando assistimos o nascimento de cerca de 500 000 bebês/ano filhos de adolescentes, crianças  que ainda necessitam de cuidados que passam a cuidar de outras crianças.    Mas, também é de 500 000/ano o número de mortes violentas no Brasil. Ou quando temos cartazes que vão envelhecendo e amarelando as fotografias cada vez menores, porque o número é cada vez maior de crianças desaparecidas. As outras crianças, as que não desapareceram, também tem o conhecimento deste perigo que correm. 
                     Se o assistencialismo diminuiu a linha da miséria sócio-econômica em 5.9 milhões de brasileiros, é no mínimo preocupante, que os tire da miséria tendo como critério sua inclusão na linha de consumo, para passar a assistir televisão. Evidentemente, não desconsideramos a dor da fome e da falta de condição básica para a vida, igualmente intolerante, mas ilustrar o sucesso pelos números do IBGE, de um programa de Governo, pela aquisição de um aparelho de televisão, sugere a manutenção da miséria enquanto imposição de verdades absolutas, linguagem usada por este meio de comunicação.   Esta é uma das formas da miséria psicológica, alienante e dominadora, talvez a pior das misérias humanas.                 
                 Todas estas ameaças estão, permanentemente, presentes na mente das nossas crianças e dos nossos adolescentes. E, como modelos identificatórios, estamos fornecendo o material para a continuação deste violento e sombrio estado de coisas. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência, do desânimo que se converte em uma certa excitação pela barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Pertencemos a um grupo quando complementamos alguém que conta uma história escabrosa, com um caso nosso. Isto me parece também um mecanismo de defesa. Ao mitigar, estamos tentando minorar a ansiedade e o medo causados pela nova informação.
                   A falsificação e a pirataria não são mais exclusividade de certos artigos. Legitimamos a pirataria da fita de vídeo game quando, na saída do metrô depois da tarde de trabalho honesto e/ou institucional, compramos algumas no camelô pelo preço de uma na loja. A justificativa é que o Governo encarece muito com os impostos, e, além disso, a da loja ninguém garante que também não é pirateada, ou contrabandeada. Sem esquecer que para nosso filho, criança, tanto faz e ele pode quebrar ou largar para lá e não vai lhe dar tanta raiva porque foi baratinha. Estamos assim cometendo várias falhas educacionais, que são difíceis de serem levadas em consideração, tamanha é a tolerância e a banalização de pequenos desvios. No entanto, estes mesmos pequenos desvios estão sendo assimilados pelas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um critério claro de certo e errado, de pode e não pode, de limite, de lei, de punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que, por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa conceituado por M. Klein, a identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Vale lembrar aqui o depoimento da mãe de um jovem morto há algum tempo atrás por ter tentado ser solidário com uma senhora de 79 anos que estava sendo assaltada. Os comentários ouvidos pela mãe do rapaz insinuavam que era incompreensível ele ter sido “bonzinho”, por que? Então a culpa foi dele, tinha que ser esperto, quem mandou ser solidário!
                   Se não encontramos a atitude adequada nas pessoas com relação à prática das diversas formas de violência contra a criança e o adolescente, também não encontramos políticas públicas consistentes, conseqüentes e persistentes. Uns culpam os outros, mas todos temos responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica. Se relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os grandes, se negamos nossa participação, se nos identificamos com o agressor, negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o conteúdo, não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização social. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade.   
    

*Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Crianças e Adolescentes
V Jornada Internacional sobre Violência Contra Crianças.
Mesa: O estado atual da Sociedade.

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário