quinta-feira, 5 de setembro de 2013

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO – UERJ
XXII Seminário de Psicopedagogia

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO

               “Se você brincar com ela, eu não sou mais sua amiga!” Ou, “se você jogar bola com ele, não sou mais seu amigo”. Talvez esta seja uma das primeiras formas de exclusão. Presa à ameaça de ser rejeitada, a criança vai ceder à ordem, e efetuará a rejeição da outra amiga, sem se dar conta, que, para ter a sensação de ser querida, incluída no afeto do outro, está praticando uma exclusão. Excluir é sinônimo de rejeitar porque não presta, não merece nossa atenção, nosso afeto, deve ser descartado. Enquanto lembrança infantil, sabemos que, raramente causou um dano duradouro, pois logo aprendemos que este jogo de exclusão e inclusão vai fazer parte da vida de todos.  Além disso, também aprendemos a ter um critério de avaliação que decidirá a quem vamos excluir segundo a identificação empática que sentimos. Assim, vamos desenvolvendo um processo empático-responsável, que permitirá ao mesmo tempo a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, aquisição da condição, exclusivamente, humana de solidariedade, e o acesso à avaliação das conseqüências e sansões das decisões tomadas, a responsabilidade. Esta, nos parece ser, a principal condição de respeito às leis, desde as regras intra-familiares na infância até o código civil na vida adulta.
                No entanto, quando aumentamos nossa lente e pensamos a exclusão social praticada por todos nós a crianças que são, profundamente, “marcadas na pele” como excluídas, estamos julgando e condenando, precoce e indefinidamente, estas crianças a permanecerem à margem da sociedade, ou melhor, do processo de humanização. E, esta margem pode se encontrar, não na vizinhança, mas a grande distância do concentrado social. Temos assistido alguns resultados catastróficos desta exclusão nos noticiários de violências praticadas por excluídos que se tornaram seres sub-humanos, e, em alguns casos, seres sub-animais.
                Faz-se necessário explicitar neste momento o que entendemos por violência da exclusão. Sabemos que é fácil localizarmos excluídos pensando nas crianças de rua, nas crianças abrigadas, nas crianças de comunidades muito carentes, aliás, hoje, todas o são, nas crianças desaparecidas, ou ainda, nas crianças que não tem computador na escola. Gostaríamos de estender este conceito de exclusão às crianças discriminadas de várias formas na escola, às tituladas sem-terrinha, às excluídas dentro de casa, e às crianças “inexistentes”, as sem registro de nascimento.
                O  E.C.A.,  Estatuto da Criança e do Adolescente, diz:
                         “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da Lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” Art. 5º.

                   “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e a saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” Art. 7º.     
           Direitos fundamentais, o que estamos garantindo para nossas crianças?  Será que não estamos excluindo milhões delas do processo saudável de desenvolvimento? Políticas sociais públicas?
              O Art. 7º do E.C.A. se refere ao nascimento em condições dignas de existência. Estas condições dignas são inauguradas pelo registro civil, aquele primeiro documento que atesta a existência de alguém, em condições dignas ou indignas. A estimativa do I.B.G.E., Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, aponta para cerca de 800.000 bebês nascidos em 2002 não foram registrados, em 2003 foram 745.000, em 2004 foram 374.540 crianças, com um acréscimo de cerca de 200.000 nascidas nos meses de outubro a dezembro, o que chegaria a quase 600.000 crianças inexistentes. A A.N.D.I., Agência Nacional de Direitos da Infância, em 2007 eram mais de 375.000 sem registro, sendo que em algumas cidades do semi-árido o sub-registro alcançava 94% dos nascimentos. Segundo informação da Pastoral da Criança, “em 2002, 29,9% dos registros de nascimento feitos no Brasil foram tardios. Pelos dados do I.B.G.E., o registro tardio cresce nos anos em que há eleição. Isso, na análise dos especialistas, se deve ao fato de candidatos estimularem os eleitores a tirar o registro e, em seguida, o título de eleitor.” Os fatores que contribuem para o sub-registro no Brasil são de diversas ordens: sócio-econômicas, sócio-culturais, dificuldade de acesso aos cartórios, e político-institucionais com a ausência de fiscalização da Lei, a inexistência de rede de proteção à criança, a ausência de cartório em cerca de 400 municípios. Assim, o I.B.G.E.  não tem estimativa sobre o total da população que vive sem um documento sequer. O problema do sub-registro se repete nas estatísticas de mortalidade: no Nordeste, 36,2% dos óbitos não são registrados e, no Norte, 32,3%, 13,5% no Centro-oeste, 11% no Sudeste, e 7,5% no Sul. Nascer e morrer sem existir civilmente, e estas são estimativas, apenas.
               O Art. 5º do E.C.A. afirma que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação e exploração. Será adequado ao desenvolvimento saudável de uma criança participar de uma invasão de terra ou imóvel, mesmo que por direito a um pedaço de chão ou teto, presenciando cenas de vandalismo, de violência, enfim, toda a transgressão protagonizada pelas partes envolvidas? A Reforma Agrária, promessa de campanha de tantos políticos de lateralidade cada vez mais débil, parece ficar a serviço da manutenção da miséria, a econômica e a psicológica, como tantas outras coisas de faz de conta deste nosso país.  Não é nosso objetivo aqui, a questão da desigualdade, da perversa concentração nas mãos de poucos, etc., etc., etc. Queremos focalizar, à luz do Art. 5º do E.C.A., a criança filha do trabalhador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, já intitulada “Sem Terrinha”, que dorme em barraca de plástico em chão batido dividido com animais silvestres, marcha por estradas durante dias, vive na pele, cotidianamente, as tensões sociais do Movimento nas invasões, é separada dos pais ficando abrigada em instituições improvisadas, freqüenta com irregularidade a escola também improvisada do acampamento, e participa ativamente de marchas e passeatas políticas infantis em números altos.  São 160.000 crianças inscritas nas escolas do M.S.T. O Jornal do Movimento noticia: ...”cerca de 1200 crianças e adolescentes de 7 a 12 anos estão reunidas em Pernambuco”..., “os Sem Terrinha de 7 a 12 anos estão reunidos de 4ª a 6ª feira para o 7º Encontro Estadual na chácara do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Paraná. Após a marcha, as crianças apresentam uma pauta de reivindicações para a Secretaria Estadual de Educação”. Este é o cuidado e o afeto, hoje reconhecidos como valores jurídicos, que estamos, pais, família, sociedade, Conselhos Tutelares, Operadores de Educação, Operadores de Justiça e Estado, oferecendo a estes milhares de crianças? Onde ficaram a proteção e a promoção do desenvolvimento, os direitos fundamentais? A exploração do trabalho infantil é facilmente reconhecida nos pequenos carvoeiros, nos pequenos cortadores de cana, nas pequenas prostitutas das nossas cidades litorâneas. As estradas também estão repletas de meninas e meninos que se submetem a programas sexuais com caminhoneiros por até R$ 5,00. Aliás, o combate à prostituição infantil também foi promessa de campanha. Mas, temos fechado os olhos para a prestação de serviço político de crianças. Esta prática é também uma forma de exclusão. Marcadas pela cor-símbolo e discriminadas pelo “apelido”, elas estão “acampando na vida”.
                Talvez fosse esperado que tratássemos da exclusão digital. Este é um divisor de águas que, nos parece, divide todas as crianças em dois grupos: as que têm computador e as que não têm computador. Nossa preocupação é maior quando pensamos na exclusão do processo educacional. Em geral, o grupo que tem computador tem escola com professores e aulas, mas nem sempre tem aprendizagem. Antes de adquirir a noção de tempo e espaço, a criança experiencia o não-tempo e não-espaço do mundo virtual. Zygmunt Bauman, sociólogo que definiu nosso tempo como modernidade líquida, chama nossa atenção: “A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo. No universo do software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, “em tempo nenhum””. Assim, o sistema de ensino, agonizante, segue em linha paralela. O índice de analfabetismo, segundo o IPEA, caiu a quase 1%, não se mensura o índice de analfabetos funcionais, leitura das palavras sem nenhuma compreensão do que está sendo lido, que parece chegar a 70%. O “faz de conta” esquece a menina de 15 anos, cursando a 8ª série, que só consegue ler a seqüência das letras das palavras, sem juntá-las. O antigo problema da repetência da 2ª série, que beirava os 40%, não existe mais porque hoje é desaconselhado reprovar, independente dos resultados obtidos pelo aluno, passando a haver a aprovação, dita progressiva, por Conselho de Classe.  O I.B.G.E. constatou, recentemente, os números do analfabetismo brasileiro. Mais de 2,1 milhões de estudantes, com idade entre 7 e 14 anos, podem ser considerados analfabetos. Por outro lado, a pesquisa “Juventude e Políticas Sociais no Brasil”, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), destaca a distorção idade-série como um dos maiores problemas na área educacional. Quase 34% dos jovens de 15 a 17 anos ainda estão no ensino fundamental, quando pela idade deveriam estar cursando as séries do ensino médio. Na faixa etária de 18 a 24 anos, 88% dos jovens não estão no nível adequado, ou seja, o ensino superior. Nessa mesma faixa etária, chama a atenção o fato de que mais de 30% já se evadiu das escolas. Para combater estes números que vão para debaixo do tapete, prefeituras e ONGs combatem a exclusão digital com a abertura de tele-centros. E esta é mais uma forma de exclusão violenta. Muitas ONGs passaram a ser conexão de verbas públicas e bolsos particulares, sem nenhum compromisso com o “projeto laranja”. Mas, e as crianças e adolescentes que precisavam daquele projeto?
               A corrupção está sendo ensinada por todos os lados para nossas crianças e adolescentes. O Decreto nº 28462, publicado em Diário Oficial em 21/09/2007, intitula como “Mérito Escolar” um prêmio em dinheiro para alunos com melhores notas, nas escolas municipais. Primeiro a aprovação compulsória, ou seja, a desqualificação da aprendizagem e, portanto do trabalho do professor. Juntou-se a esta aberração perversa, estudar ou não estudar tem igual resultado, nova aberração perversa introduzindo-se dinheiro para “pagar” a menores que obtiveram as melhores notas. Isto tudo, dentro de um sistema dito de Educação. Mas, que Educação? O que estamos ensinando com a aprovação obrigatória ou com este “mérito escolar”? Novamente é desqualificado o professor, seu trabalho e toda a sua representação na formação e no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Os salários, as condições de trabalho, os investimentos na qualidade da escola, etc.,etc.,etc., não tem nenhum espaço político.      
               Retornamos ao comportamento empático-responsável. Indiferentes e imunes ao sofrimento do outro, incapazes de empatizar com as necessidades do outro, não conseguimos nos responsabilizar pelo que estamos praticando. Esfriamos cada vez mais. Afinal, você não tem nada a haver com isso, serve de consolo para os que ainda se mobilizam um pouco. Esta é a perversão da exclusão que estamos todos permitindo e praticando. A ausência de cuidado e afeto que implica em maus-tratos, agressões físicas, psicológicas e sexuais, humilhações, indiferença e desafeto, acontece dentro das famílias, e tem sido nocivamente tolerada. A falta de responsabilidade pública faz com que a negligência de hoje, rapidamente, se torne exclusão amanhã. Uma escola que continua a ser chamada de escola, sem  professores, sem material didático, sem poder reprovar os resultados insuficientes, premiando aluno com dinheiro maior que salário de professor, sem instalações, sem higiene, sem segurança para os alunos e professores, e que nada acontece até o final do ano letivo, quando apresentará “resultados”, é a promoção da mais violenta exclusão, porquanto esta falsificação será sentida por todas as crianças e adolescentes como o lixo que lhe cabe.
               Sendo aluno-vítima, aluno-agressor, e aluno-testemunha omisso na prática do bullying, sendo sem-terrinha, sendo inexistente sem-registro civil, sendo analfabeto promovido nas séries escolares, sendo moeda de tráfico, de prostituição ou de mérito escolar, nossa criança e adolescente estão sendo excluídos do processo de desenvolvimento saudável que permitirá uma vida digna. A negligência social cometida pelos nossos governantes, representantes e operadores de justiça está sendo corroborada por todos nós, pela conivência com este estado perverso. É preciso cuidar com responsabilidade de nossas crianças. Precisamos excluir a exclusão.  

Ana Maria Iencarelli  anaiencarelli@gmail.com
XXII Seminário de Psicopedagogia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

05 de novembro de 2008.

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