sexta-feira, 6 de outubro de 2023

A vulnerabilidade negada é a violência naturalizada. Parte I

A vulnerabilidade negada é a violência naturalizada. Parte I. Era noite, voltando do consultório trabalhado com cuidados redobrados pela prevenção da transmissão de uma virose, hoje é uma palavra banal mas que guarda uma ameaça bem maior que no passado, e apesar da autorização médica, uma preocupação a mais. Decidi então levar uma comida pronta para casa, não tinha condição de preparar nem um ovo, e precisava me alimentar para fazer frente à convalescência, fase que também requer atenção específica. Já de posse do meu alimento adequado à minha recuperação, sou chamada pelo oferecimento de alguma coisa que vinha de uma mulher que vinha em sentido contrário. Liguei o automático e agradeci enquanto a pessoa parava e seguia publicitando seus artigos. Desliguei o automático, e quando me virei ela tinha desistido de mim. Chamei-a, olhei para aquela mulher da 3ª ou 4ª idade, pequena, franzina, puxando um carrinho de feira repleto e um mostruário nas mãos, e perguntei quanto custava o que vendia. Ela me disse R$ 5,00. Eram canetinhas de vários modelos, bonitinhas, escolhi uma prateada, ela puxou um caderno, já cheio de riscos, e me fez experimentar para verificar se estava funcionando. Decidi não lhe perguntar sobre sua vida, sua condição de sobrevivência, nem sua idade. Estava tudo já respondido, eram explícitas as respostas. Não devo satisfazer minha curiosidade quando isso pode causar uma revitimização ao outro. Foi assim que percebi, ela precisava continuar seu caminho, talvez para defender algum salgado para comer antes de dormir um pouco, não sei onde e como. Assim continuei meu caminho. Mas não consegui parar meus pensamentos. Uma chuva de perguntas caía sem parar no meu pensamento. Mas, por que tinha me incomodado tanto? Afinal, essa cena é tão comum. Percebi que tinha sido atingida ao vivo pelo que falo tanto quando me refiro à Criança segregada pela Cidade Partida. Acreditamos que o Apartheid foi na África do Sul e que ficou para trás, foi resolvido por Mandela. O Apartheid está entre nós, mas, como na questão do preconceito racial, negamos, somo camaradas, amigos, e nos negamos a enxergar o que praticamos, disfarçadamente. Negando a existência dessa Cidade Partida, nos iludimos que somos bons uns com os outros. Claro que se esquecermos os cancelamentos que ocorrem nas redes sociais, sem dó nem piedade. Justiça com as próprias mãos. Vivi a confirmação do nosso Apartheid numa calçada de um bairro da zona sul do Rio de Janeiro. O que me diferencia daquela Senhorinha? Tínhamos muitos traços aparentes em comum. A cor da pele, o cabelo, a maneira polida de falar, a delicadeza e atenção com o outro, a força de trabalho, o olhar nos olhos. Em que ponto da vida aquela Senhorinha foi abandonada e apartada? Ou foi desde sempre que as oportunidades não chegaram para ela? Será que ela, como muitas Crianças, é vítima de exploração? Afinal ela agora tem uma condição etária que mobiliza, faz algumas pessoas se penalizarem por essa condição. Se não honramos a vulnerabilidade de grupos que precisam mais da ajuda do entorno, e da Responsabilidade do Estado, não seremos uma Sociedade saudável. E isso interessa porque cria bolsões para perversos praticarem a violência, porquanto o perverso necessita do fragilizado para se sentir Poderoso. Afinal, maltratar Crianças, Idosos, Gays, Pobres Pretos, Mulheres, principalmente as que se tornaram mães, é o Gozo do Perverso. Ele precisa do vulnerável para se sentir acima, para esmagar, para obter esse caldo de prazer, para ele o principal prazer. Era o dia seguinte ao Dia do Idoso. Homenagens, programas, produção audiovisual, memes, musiquinhas com brincadeiras, mas muita celebração enaltecendo o Idoso. Será que no Estatuto do Idoso, existe algum Artigo que corrobore o trabalho daquela Senhorinha? A invisibilidade acoberta a violência social com seus idosos. Enquanto nos omitirmos sem iluminar essa invisibilidade da vulnerabilidade da Criança e do Idoso, as duas pontas do ciclo de vida, a primeira porque ainda não adquiriu as habilidades necessárias para se defender de predadores sociais, “atletas da violência”, e o segundo porque está perdendo essas habilidades e o declínio corporal chega, não alcançaremos a Democracia Social. E, se não enxergamos a vulnerabilidade como da responsabilidade de cada um de nós, estaremos pavimentando a naturalização da violência, que passa a acontecer com a autorização de cada um de nós, sob justificativas as mais absurdas mas, aceitas como banais. Parece-me que há um sistema que sustenta esse ciclo, invisibilidade, violência, assistida por todos em uníssona cegueira deliberada. A vulnerabilidade invisibilizada é a violência naturalizada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário