quarta-feira, 31 de maio de 2023

As 1001 facetas da violência contra a mulher. Por Isabella Marcanth

As 1001 facetas da violência contra a mulher Isabella Marcanth * Ontem estava conversando com 2 amigas sobre amenidades durante o almoço. Papo vai, papo vem, me perguntaram sobre como havia sido minha experiência numa unidade de saúde na qual recentemente trabalhei. Como já tinha compartilhado sobre essa experiência com algumas colegas do mesmo grupo, eu respondi “ah, a parte do trabalho foi legal, a conexão com os pacientes, os desafios impostos pela falta de recursos... mas teve o problema do assediador, né.” Elas fizeram cara de surpresa, porque não sabiam ainda da história - cheguei a contar para algumas pessoas, não lembrava quais, achei que elas já soubessem. Contei sobre o que passei (minha 2a experiência de assédio em ambiente de trabalho em meus extensos 3 anos de formada), meus motivos por não ter levado nada disso a instâncias superiores, como lidei com isso, como resolvi proceder a partir do momento que o meu tempo na unidade se encerrou. Acabou que entramos nessa seara sobre assédio e derivados e, se você é mulher e já passou por isso e já falou sobre em um ambiente com outras mulheres, você sabe que praticamente todas nós temos alguma história para contar. Passamos um tempo compartilhando histórias, sempre chegando às mesmas conclusões - de que ser mulher só por já ser mulher é extremamente exaustivo. A maioria dos homens, até hoje, segue se sentindo no direito de nos assediar e nos agredir, verbalmente, emocionalmente ou fisicamente, em qualquer ambiente, com a certeza de impunidade. E falamos também sobre como é difícil pra nós levarmos isso adiante, prestarmos queixa, sabendo que, como sempre costuma acontecer, nossas queixas muito provavelmente serão subestimadas e menosprezadas, serão taxadas como exagero ou vistas como uma interpretação errônea, como sempre são. O homem sempre terá uma desculpa ou justificativa que será muito plausível aos olhos da sociedade machista que vivemos. Acaba sendo mais extenuante ainda tomar alguma atitude em relação a isso, e então simplesmente deixamos pra lá, avisamos as nossas para terem cuidado, e a vida segue correndo pra essas pessoas como sempre correu. Isso tudo já é tão claro na minha cabeça que é extremamente cansativo até pensar sobre isso e chegar a essa conclusão repetidas e repetidas vezes. Enfim, permanecemos nesse papo mais um tempo, lembrando e compartilhando histórias, de assédio e de outros tipos de violência que ocorreram conosco, com amigas e conhecidas nossas, todas sempre com scripts parecidos. Até que as histórias foram ficando mais cabeludas e eu acabei compartilhando sobre o abuso sexual que sofri na infância e falamos sobre como no mundo de hoje é extremamente difícil ter confiança em qualquer pessoa, haja vista todos os relatos que já ouvimos, já presenciamos e/ou vivemos. Desde que decidi falar abertamente sobre as coisas que aconteceram comigo nesse âmbito, já tinha falado sobre inúmeras vezes, para inúmeras pessoas, em redes sociais, ao vivo, mas por algum motivo específico essa conversa de ontem me bateu mal. Pra mim, tudo isso são coisas extensamente trabalhadas em terapia há tempos (e bota tempo nisso), mas às vezes a sensação de injustiça e de vulnerabilidade me arrebatam de maneira avassaladora. Nós, mulheres, somos constantemente violentadas em todas as fases da vida apenas por termos nascido mulheres. Confiamos em homens das mais diversas esferas da nossa vida - parentes, amigos, professores, namorados - ao longo de toda a nossa vida - infância, adolescência, vida adulta - para descobrir que no final, alguns deles, em vez de terem sido familiares amorosos, companheiros afetuosos, colegas amigáveis, amigos queridos, mentores, foram nossos agressores. Descobrimos, geralmente da pior maneira, que fomos enganadas com maestria. Com a bagagem enorme que a maioria de nós temos, como confiar em alguém sem suspeita, sem um grande sentimento de desconfiança envolvido? Somos obrigadas a viver em constante estado de atenção, não nos sentimos seguras em baixar a guarda. E isso é também uma forma de violência diária que vivemos. O nosso existir é por si só um fator de risco para sermos sujeitas a qualquer tipo de violência contra mulher, e viver alerta e com medo é uma agressão que infligimos a nós mesmas (pois o mundo machista nos obrigou a isso). E a cada agressão nova que vivemos, todo o resto que está no passado, que lutamos tanto para deixar adormecido, para seguirmos em frente, vem à tona novamente e parecemos voltar à estaca zero. Essas agressões podem vir em tantas formas... podem vir na piadinha machista “inócua”, podem vir na credibilidade/respeito maior que dão ao seu colega de trabalho homem, podem vir no simples ato de ignorar a opinião de uma mulher numa mesa de bar, de nos interromper quando falamos, podem vir na diferença salarial entre homens e mulheres, além das situações mais óbvias, como o assédio, como o abuso sexual, como o abuso/violência psicológica/emocional nos relacionamentos, como o estupro, como a violência doméstica... e, como isso tudo ainda não fosse suficiente, podem vir ainda pela culpabilização da mulher por parte do agressor e da sociedade por ter passado por alguma dessas situações. E não se enganem, todas essas micro e/ou macroagressões vão abrindo feridas em nós e cabe somente a nós cicatrizá-las, com a ajuda umas das outras. Estou num dia que precisava fazer esse desabafo e aproveito para dizer que, mulher, se não formos nós juntas por nós mesmas, ninguém será por nós. *Isabella Marcanth é uma jovem médica.

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