segunda-feira, 9 de maio de 2022

Torturar uma Criança, vulnerabilidade e tolerância. Parte I.

Torturar uma Criança, vulnerabilidade e tolerância. Parte I A vulnerabilidade de uma Criança, sua fragilidade, sua dependência dos adultos, seu ainda precário desenvolvimento cognitivo, são facilitadores de submissão a mentes cruéis que se comprazem com a tortura. O termo “tortura” nos remete, facilmente, a situações de dores físicas causadas por espancamentos violentos em alguém amarrado que não consegue se defender, alicates a arrancar unhas, choques elétricos em órgãos genitais, práticas de produção de dor em meio à total impotência. Essas são práticas que deixam marcas. Mas nem sempre é assim que se tortura alguém. Existem as práticas invisíveis, aquelas que causam dores psicológicas, igualmente destrutivas. Há pouco tempo tivemos os noticiários invadidos pelo terror de vídeos que mostravam bebês amarrados num banheiro, dentro de uma creche. O objetivo dito era o de que teriam que parar de chorar. Mas, no entanto, o objetivo era o prazer de alguém que se deliciava com uma sensação de poder absoluto, incluindo a dissimulação da prática de tortura que não era detectada. Poder sobre os pequenos indefesos, poder de enganar aos grandes que acreditavam estarem comprando um serviço de cuidado e proteção de seus bebês. Amarrados por lençóis em cadeirinhas no chão de um banheiro da creche ao lado da sala da diretora, choravam até cansar, e, possivelmente, dormir de exaustão. Mas, no dia seguinte, eram novamente entregues, pelos pais ignorantes da situação, àquelas pessoas que os torturavam. Nenhuma referência à rejeição por parte dos bebês à creche ou às pessoas que os recebiam. E tudo se repetia, todo o ritual macabro, de maneira, tremendamente, monótona. Ninguém estranhou esse fato. As Crianças não expressavam repúdio nem rejeição pelo local da tortura, a creche. Porque são, facilmente, enganadas. Ou seja, uma criança pequena não tem ainda um código moral formado, sua compreensão cognitiva para ligar pontos e se antecipar ao perigo, ainda é precária, a confiança nos adultos é total, porque deles ela depende para viver. Mesmo que não saiba, intelectualmente, dessa dependência ela se comporta sempre de maneira a garantir sua sobrevivência, se entregando ao adulto que oferece um colo ou uma mão para guia-la. Essa, aliás, talvez seja a maior das sequelas que aquelas crianças vão carregar, sem nem localizar, exatamente, o foco do trauma: não terão confiança no outro. A vulnerabilidade parece ser um atrativo de muita força, porquanto facilitador da opressão buscada pelo adulto torturador. Ele não se nega a misturar a crueldade com uma sedução por mimos e privilégios que conseguem enganar os pequenos. Essa tática da mistura é muito usada com Crianças para fazê-las submissas. É, exatamente, a mesma usada entre adultos que têm relações abusivas. Não é por falta de memória, por ter esquecido o que aconteceu no dia anterior, que a Criança não se opõe frontalmente a entrar em sua “câmara de tortura”. Mas, antes de tudo, é porque acredita que não acontecerá hoje o que foi ontem. A Criança acredita que “acabou”, como quando chora pelo ralado do joelho ao cair e a mãe lhe ampara e diz “já passou”. A Criança vai operar um mecanismo de defesa, o recalcamento, para sua sobrevivência psíquica, sepultando o fato traumático. Mas ele não evaporará. Como ocorre com nossas imagens mnêmicas que se excederam ao razoável quantum de estímulo cabível na mente, essas memórias restarão soltas, flutuantes, em formato de marcas sensoriais do tipo de cores, luminosidade, cheiros, posições do corpo contido, formatos diversos do que ficará como registro de alerta para a chegada de uma nova situação de perigo, um novo possível trauma. Assim, um sistema de alarme é construído para tentar evitar nova ameaça e buscar proteção. Esse alarme passa a ser acionado cada vez que um estímulo se aproxima por contiguidade ou semelhança, ao registro mnêmico deixado pelo trauma. Essa é uma situação psicológica muito desgastante e, muitas vezes, produtora de adoecimento psicológico. Qualquer dos bebês, vítimas das práticas de tortura executadas naquela creche, tornariam a se entregar ao colo daquelas pessoas. Além de tortura-los, elas lhes davam comida, brincavam, prometiam proteção em seus gestos diante de seus pais, na entrada e na saída do horário. A invisibilidade das marcas, que foram tatuadas em suas mentes, colaborou apenas para a manutenção da desorganização de seus entendimentos de mundo. Para todos os bebês, o mundo é enigmático, é desconhecido, e, o esforço, que fazem para descobrir o mundo entorno, vem de par com o crescimento e desenvolvimento de suas capacidades, a motora, a linguística, a cognitiva e a afetiva. Por isso a acareação não serve como critério se aconteceu ou não aconteceu uma agressão a uma Criança. Ela fica apenas na ordem da revitimização. Tanto no caso das Crianças torturadas dessa creche, quanto no caso das Crianças torturadas por abusos incestuosos, o tipificado estupro de vulnerável, não se pode imaginar que ao ver uma Criança que aceita se sentar no colo do pai numa sala de uma psicóloga, dá a ela a possibilidade de, tornando o sentar no colo um critério, afirmar que não houve abuso. Essa é mais uma violência institucional, é mais um exemplo do conhecimento que se torna uma arma contra Crianças. Continuaremos nesse tema para evidenciar a leviandade profissional de pessoas inescrupulosas, que usam títulos como armamento. Tocaremos também em outro exemplo de irresponsabilidade que chegou, e já se espalha, da afirmação de que a partir dos 6 meses o bebê pode pernoitar com o pai, em outro ambiente, que não é o de sua referência. De onde teria saído tamanha inadequação com o Princípio do Melhor Interesse da Criança?

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