quinta-feira, 12 de maio de 2022

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade e a tolerância. Parte III

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade e a tolerância. Parte III A vulnerabilidade de uma Criança para ser submetida a algum tipo de tortura, a lista é infinita, advém de sua quase total incapacidade de defesa diante de um adulto. E, consequente disso, a tolerância é do tamanho da vulnerabilidade. Mas, não consigo ver com clareza a tolerância dos outros adultos em relação à tortura de uma Criança. Se ela é muito escancarada e aparece com um tom, ou um som, de crueldade, a tortura se torna objeto de repugnância, de revolta popular, alimentada pela mídia em seu tempo de “audiência”. Mas, não raro, ocorre uma espécie de identificação com o agressor, com a imposição praticada por ele de uma dominação, e a culpa passa a ser da mãe que não estava cuidando bem. E mais, na dúvida, “deve ser bobagem da minha cabeça”, “uma mãe não faz isso”, “um pai não faz isso”. Há uns 10 anos atrás, Paloma morreu de espancamento aos 8 meses. Era a 9ª vez que a mãe a levava num Serviço de Urgência Pediátrica, porque “caiu do berço”. A mãe de Paloma, solo, não repetia o Hospital. Mas 9 profissionais, pelo menos, constataram machucados na bebê. As Faculdades de Medicina não têm em sua grade curricular essa especificidade, a violência física e sexual contra a Criança. E, pelo lobby dos agressores, os médicos pensam que vão arranjar problema, que vão ser chamados pela justiça toda hora, e que serão alvo de retaliação do agressor. Então fazem de conta que não viram. O médico plantonista que atendeu Paloma na 9ª entrada em Urgência, desconfiou e internou a Criança, para fazer outros exames. Mas, já era tarde, ela morreu poucas horas depois. Estava com uma hemorragia cerebral por contusão. Há alguns meses, tomamos conhecimento de caso semelhante com um menino de 4 anos. Na Pediatria há conhecimento de tipos e idades de fraturas, de hematomas, de cicatrizações diversas, característicos de resultado de violência sofrida, que poderiam interromper uma tortura continuada. Mas não se ensina, por exemplo, que a fratura do fêmur em criança de 2 anos fica na altura do chute do adulto, ou as fraturas da tíbia e do perônio de Criança de 4 anos ficam na altura desses chutes. Não se ensina, por exemplo que as fraturas de base de crânio em bebês de meses, são resultado da parede onde eles foram arremessados por um adulto irritado com o seu choro. A ruptura de órgãos maciços, como fígado e baço, também tem ocorrência frequente nas torturas intrafamiliares de Crianças. Na Cartilha Maus-tratos contra Crianças e Adolescentes – Proteção e Prevenção, Guia de Orientação para Profissionais de Saúde, da ABRAPIA, 1997, encontramos: “As lesões do crânio são reconhecidas como principal causa de morbidade e mortalidade. Os lactentes somam o maior risco, com 90% das lesões identificadas antes dos 2 anos de idade.” Além da tortura intrafamiliar praticada por mãe e pais, principalmente, escondida em falso discurso de disciplina, a Criança sofre a tortura institucional, praticada por substitutos parentais, em especial, substitutas da mãe, como no caso da creche que veio à tona há algumas semanas, ainda sob a falsa desculpa disciplinar. Por vezes, toma-se a forma de Tortura Vicária. Uma nova forma de tortura de Crianças pequenas está embutida na afirmação, já circulante, como se fundamentada fosse, de que o bebê de 6 meses já pode pernoitar com o pai separado. A pseudo justificativa é que aos 6 meses o leite materno pode ser substituído por leite artificial na mamadeira. Essa enorme e desastrosa redução da amamentação materna como um simplório “nutriente”, cancelando o todo do ato de acolhimento e de troca de olhares, escuta do batimento cardíaco da mãe, contato pele a pele, pousar a mãozinha no peito da mãe ou agarrar o dedo indicador dela enquanto suga, detalhes que compõem o conjunto essencial ao desenvolvimento saudável, garantido pela Recomendação da Organização Mundial da Saúde. O aleitamento materno está sendo desqualificado porque meia dúzia de advogados vê nessa afirmação sem fundamentação e nociva à Criança, uma monetização, com vistas às alegações de alienação parental. Difícil supor que seria genuíno o desejo de pernoitar com um bebê que vai chorar, vai fazer xixi e cocô durante a madrugada, que não vai conversar, nem trocar ideias, e que isso seria a “felicidade” para o pai. Por que ele não teria se disponibilizado durante o casamento para que a mãe tivesse um fôlego de tranquilidade? Para além do leite materno e todo seu conjunto de benefícios, ou da mamadeira-nutriente, a Criança aos 6 meses está numa fase de dependência absoluta da mãe, que nesses meses se torna a sua referência de mundo. Segundo René Spitz, teórico do desenvolvimento infantil, a Criança nessa fase começa a sofrer a angústia de separação da mãe, angústia que vai acompanha-la por mais alguns meses. O mundo de referência para a Criança é constituído não só pelo cuidado e contato com a mãe, mas pelos estímulos sonoros, pela voz da mãe, pelos cheiros do quarto, incluindo a roupa de berço, da casa e do corpo da mãe, pela luminosidade do ambiente, quarto e casa, pelos barulhos do ambiente, enfim, tudo fornece um elemento tranquilizador de localização para o bebê, que sente como segurança. É desorganizador da mente infantil a mudança de ambiente nessa idade. Desorganizador. E, portanto, enlouquecedor. Irresponsável, inconsequente, insalubre promover a ruptura da Relação Mãe-Bebê para satisfazer um adulto, atropelando a saúde mental da Criança. Com a frase “vai chorar no começo, mas depois acostuma” é operacionalizada uma tortura para o bebê. Curioso que, no Seminário do Pacto Nacional pela Primeira Infância, Resultados e Avanços do Projeto Justiça Começa na Infância, foram exibidos projetos em operação sobre a permanência da Criança de Zero a 6 anos junto às mães apernadas, condenadas como homicidas, traficantes, etc, que a Justiça se compromete com a manutenção do, indispensável, vínculo materno. Mas se a mãe é alcunhada de “alienadora”, a Criança de zero a 6 anos é arrancada da mãe. É violado seu Direito. Tortura praticada pelo Estado. Seria a “alienadora” muito mais perigosa que a homicida?

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