segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O RISCO DE JUSTIÇA COM AS PRÓPIAS MÃOS
Gardner e a Síndrome de Estocolmo

       A matéria, no Jornal El Pais, sobre a agressividade e perversidade de mulheres/mães, traz a atitude da busca de restauração da justiça que fez do seu sofrimento causado pelo desaparecimento, tortura, morte e esquartejamento de sua irmã por um casal, Fred e Rosemary West. Marian Pertington, a irmã, escreveu uma carta de compaixão e empatia, segundo a matéria, perdoando Rosemary, que lhe pediu para não mais procurá-la. A menina, Lucy, foi vítima de violência sexual, sumiu na volta da escola, foi torturada por anos como outras vítimas, inclusive uma filha e uma enteada, encontradas nas mesmas condições, esquartejadas e enterradas no porão da casa, pelo casal perverso. Seu corpo só foi descoberto 20 anos depois deste dia. A compreensão de um serial killer é de dificílimo acesso, a compreensão de um casal que pratica um ritual macabro como este em pauta, repetido aleatoriamente, com tanto requinte e crueldade, com e sem nenhum motivo relacional entre os algozes e suas vítimas, confesso, nem me arrisco a qualquer tentativa de compreensão.  Existem comportamentos humanos que são sub-animais.  Assim também, a empatia de Marian e sua dedicação a mulheres criminosas cruéis, seu trabalho, escapam ao olhar superficial. O que teria acontecido em sua mente com a sombra do crime vivida por 20 anos,  a escuridão do sumiço de Lucy, é de igual dificuldade para compreensão.    
       A síndrome de Estocolmo é um conceito que se refere ao desejo de torturar o torturador, ou substitutos. A tortura é um jogo perverso onde só o torturador vence, e ela estimula o movimento das identificações: se identificando com o torturador o torturado sofre menos.
       Alimentando esta inversão de lugares, torturador/torturado, é desta identificação que nasce a força para aguentar mais porque, quando trocar de lugar, vai vencer o torturador porque aprendeu por dentro o que mais dói na tortura e fará com mais requinte ainda contra o torturador, chegando, então, à vitória suprema contra seu algoz.
       Este é o cerne da justiça com as próprias mãos. Movido por esta macabra competição, o torturado executa o que por muitas horas, dias, anos, planejou. Ou, num piscar de olhos, também pode imobilizar seu algoz e não perder tempo, como dita sua sobrevivência diante daquele que o mata aos pouquinhos com muito requinte e crueldade.
       É também desta identificação com o torturador que nascem as paixões pelo torturador, que vemos e, não entendemos, questão que intrigava os estudiosos do comportamento humano, e que resultou no conceito de Síndrome de Estocolmo. É pela desistência de fazer resistência contra o torturador, que aparece a admiração. Nesta inversão de lugares que Richard Gardner baseou sua tese, por isso, tão bem sucedida. Principalmente, entre os que a aplicam sem a leitura e o conhecimento de sua etiologia.
       Como os testemunhos, relatos, reproduções, lembranças, tatuagens na pele e na alma, dos campos de concentração nazista, a desistência ganha. Vemos isso, por exemplo, no choro dos dois meninos, no choro da menina, links dos vídeos disponíveis no facebook, crianças que estão sendo arrancadas do colo de suas mães, hoje aos milhares. Eles vão cansando e diminuindo o volume, as crianças desistem de lutar contra seu torturador/pai/abusador, e se adaptam ao abuso, alicerce da identificação com seu algoz e da repetição de comportamento na vida adulta. Ou nutriente para a justiça com as próprias mãos quando a força se igualar. Temos ocorrências que, infelizmente, crescem.
       Esta adaptação é de difícil acesso. Temos crianças que uma vez adaptadas, passam a praticar a retratação, a negação dos abusos, aquela que não foi reconhecida pelo Promotor que chegou, com anuência da Juíza, a ameaçar aquela adolescente que fez uma retratação sobre a sua gravidez de seu próprio pai, como atestava o exame de DNA, desconsiderado também pelo Operador de Justiça. Há que se fazer muita força para replantar alguma confiança no mundo adulto que lhe desqualificou a voz, a revelação. Elas perdem a esperança.
       Além disso, temos no entorno do abuso sexual intrafamiliar, a identificação com o agressor: quando o inimigo é forte demais, junte-se a ele. É outro mecanismo de defesa do ego que dita que, juntando-se ao poderoso, a pessoa acredita, inconscientemente, que se protege da fúria do agressor contra si. Este mecanismo é fácil se ver no bullying escolar, o aluno-autor faz maldade e os alunos testemunhas, não concordam, mas apoiam ou se calam.

       O risco de práticas de justiça com as próprias mãos, desastrosas, assim como a compulsão à repetição pela identificação com o torturador, abusado hoje, abusador amanhã, são tragédias que como sublinham Daniel Goleman em “Inteligência Emocional”, e Maria Clara Sottomayor, autora de vários títulos, entre eles, “Temas de Direto das Crianças”. Comungo também, não está sendo dimensionado pela nossa sociedade narcisista de faz de conta o desastre humano que estamos praticando ao punir uma criança com o descrédito, condenando-a à Privação Materna. 

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