quarta-feira, 1 de junho de 2016

Não, não dói o útero, dói a alma

“Não, não dói o útero, dói a alma”

       Uma menina de 16 anos. Mais de 30 homens. O estrondoso estupro coletivo.
      
       Este ato sub- animal veio à mídia e logo teve a resposta da esperada indignação. A sub- notificação nos engana. A misoginia é avassaladora! Mas é preciso chegar mais perto da realidade dos fatos. Não são somente mulheres que são estupradas. Dos dados referentes aos pífios números de registros da violência sexual, abstrai-se que 72,69% dos casos acomete crianças e adolescentes. Dado sub- estimado pela sub notificação. E não são divulgados os dados dos estupros contra meninos e adolescentes, e contra jovens homossexuais. Estupros de deficientes mentais, de meninas portadoras de paralisia cerebral. O pensamento machista que reina em nossa sociedade cenográfica, quase tudo é de faz de conta, incluindo a observância às leis de garantia de direitos, não permite que conheçamos estes tristes números. Se considerarmos os estupros intrafamiliares, chegaremos a números estratosféricos.
       Se, é uma criança, a família teme que este estupro do menino determine uma escolha de gênero. Preconceito e equívoco. Se, é jovem, o medo da retaliação garante a omissão do episódio, e o acobertamento dos machões de plantão.
       Segue-se a este primeiro momento crítico, a vergonha, o medo e a culpa sentidos pela vítima, o despreparo das Instituições. A inadequação de verdadeiros inquéritos com a vítima, no lugar da escuta qualificada, o pensamento machista na defesa do algoz, aquele que praticou a violência sexual contra uma pessoa em situação de vulnerabilidade, permeia a postura de quem deveria proteger a vítima.
       Há mais de 30 anos, uma afilhada, 16 anos, foi estuprada por um bando de garotos, entre 15 e 18 anos, em Brasília. Eles eram filhos de parlamentares e ministros da época. Ela também filha de parlamentar. Ela negociou com eles que não iria fazer nenhuma resistência, e pediu que fosse um de cada vez. Eles atenderam. O pai dela fez questão que ela fosse atendida no melhor médico particular da cidade, que tratou de pequenas escoriações pelo atrito repetido das penetrações. À época não havia coquetel contra HIV, nem pílula do dia seguinte. Este pai negociou com ela a não denúncia. Um novo estupro que ela não chegou a dimensionar, e concordou que não valia a pena.
       Há alguns anos, no Pará, uma menina de 15 anos ficou detida numa cela masculina, com 20 homens, por 26 dias. Foi seviciada, torturada, com privação de alimento, de sono e queimaduras pelo corpo mal saído da infância. A prisão preventiva por ter tentado roubar um celular era assinada por uma Juíza, uma mulher. A Delegada, outra mulher, disse depois que não tinha notado que ele não era um menino, como pensou.
       Há algumas semanas, no Piauí, uma menina, de 14 anos, foi estuprada por 05 garotos, quase todos menores de idade.
       Há pouco tempo, em Uberlândia, um avô estuprou um bebê, e depois o matou.
       Um menino nigeriano, foi recentemente encontrado no freezer, foi seviciado, torturado e assassinado pelo pai e pela mãe. Em São Paulo. Este não vai chegar nunca à mídia, temos xenofobia também.
       Está acontecendo no Rio de Janeiro, dentro de um Colégio Público tradicional, um hábito de estupros praticados por garotos do 2º grau em meninas do 1º grau. Vem se repetindo com frequência. Muitos desses estupros são registrados em vídeo, troféus, e, por vezes, caem nas redes sociais.
       Em Olímpia, São Paulo, um Juiz absolveu um avô, delegado de Polícia, representante da Lei, por titularidade, que estuprou a própria neta com também 16 anos. Motivo: a menina não disse que não queria. O Juiz entendeu, portanto, que houve consentimento. Consentimento. Talvez este Juiz esperasse que este avô que teve relações sexuais com uma neta, para ele isto não teve nenhuma importância, fosse aceitar e respeitar a vontade desta neta, ou a recusa se dissesse que estava com dor de cabeça. Porque o fato de ser o avô da menina não entrou na compreensão deste Juiz. Esta menina estava tentando se matar por ter obedecido ao avô cumprindo o pacto do silêncio, quando foi impedida pelo pai de puxar o gatilho de uma arma. No entanto, a morte psíquica continua a ser uma ameaça com esta desoladora e enlouquecedora sentença.
       Uma estudante da Universidade Rural do Rio de Janeiro, no entanto, não teve o mesmo desfecho, e o suicídio não foi evitado. Após uma tentativa de estupro praticada por um colega de mesmo curso, entrou em depressão, trancou a matrícula e não suportou a dor. O estuprador teve uma repreensão verbal da direção, e não foi sequer expulso da Universidade. Talvez, teria sido preciso que ele tivesse dilacerado a colega, ou mesmo a matado para que os responsáveis pela Instituição de Ensino conseguissem cumprir a Lei.
       Como falou agora a menina, hoje emblemática, a humilhação e indignidade inerentes ao estupro não dói no útero dela, muito machucado, ao que falado, até por canos de armas. Dói na alma. E vai doer para sempre. É uma dor crônica. As sequelas são permanentes. A violência sexual é uma tatuagem na alma de meninos e meninas. E quando se trata de um ataque de violência, contra o qual não conseguimos nos defender, todos somos meninos e meninas, sem importar a nossa idade cronológica.
       O estupro coletivo é um fenômeno degradante para toda a sociedade, mulheres e homens. Fica evidente que a violência é banalizada pelos que, além de praticar a crueldade, ainda buscam aplausos, também encontrados, nas redes sociais, porque há a certeza da impunidade. Aqueles que ali se exibiam e os que praticaram explicitamente no grupo, evidentemente, viram abusos e estupros dentro de casa. Mas, se acostumaram à brutalidade e fizeram dela uma competição, com direito a um troféu na mídia. Esta é a pior das misérias. A miséria psicológica. E assim eles crescem, sem alma, buscando só um momento de exibicionismo perverso torturando uma menina. E então surge a misoginia que aporta no estupro social: ela deve ser culpada.
       Na Holanda, em 2015, foi concedida a autorização para um procedimento de eutanásia. Não está em questão aqui a eutanásia. A dor crônica e as doenças incuráveis advindas de uma história de abuso sexual intrafamiliar, perpetrado dos 05 aos 15 anos, que deixou sequelas, como acontece com toda forma de violência sexual, foi equiparada por uma junta médica à dor neoplásica, justificativa consagrada das autorizações neste país em que a eutanásia é legalizada.
       Nosso despreparo para lidar com esta perversão é enorme. Operadores de Justiça agem muitas vezes como coniventes com o crime. A discriminação se instala, discriminação da vítima. A indignação dura pouco, o tempo midiático. Não temos o exercício da Responsabilidade Empática pelos vulneráveis de qualquer tipo.
     Faz-se necessário respeitar a dor psicológica que é tão invalidante quanto a dor fisiológica. Urge que a Cultura da Misoginia tenha um combate consistente e consequente, não só neste momento de indignação aguda, mas permanente.
       Todos, somos responsáveis por esta tragédia social. Nós garantimos a impunidade. Nós alimentamos a cultura da transgressão. Somos nós que escrevemos estes finais infelizes. A sentença de morte biológica, de morte psíquica, ou de invalidez psicológica, tem sido aplicada aos vulneráveis que carregam para sempre a culpa do crime que sofreram. Mais do que uma tatuagem, uma cicatriz infeccionada na alma.

Ana Maria Brayner Iencarelli – Psicanalista de Crianças e Adolescentes.

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