sábado, 11 de julho de 2020


Cuidado e Cidadania
Texto publicado como capítulo no livro “Cuidado e Cidadania”, que faz parte da Série sobre o Conceito do Cuidado de Vulnerável em seus diversos ângulos, Brasil/Portugal.
Introdução:
       O Cuidado, conceito psico-jurídico, embora amplo, refere-se à atitude amorosa e responsável que reza a Cidadania, neste tomo. Temos um vulnerável, a criança, que precisa receber o cuidado de qualidade para que ele aceda à cidadania na idade adulta. A Cidadania é um processo que é construído ao longo do desenvolvimento da criança, depois do adolescente, para assumir a forma jurídica do convívio em grupos, menores e maiores, para atingir a sociedade.
       O Cuidado é objeto de estudo na Psicanálise, porquanto como o bebê humano nasce muito incompleto e deficiente para sua sobrevivência, autores como Bolwby¹, Spitz², Winnicott³, Pâmela4, se debruçaram sobre a sua necessidade e a importância da sua qualidade.
       A vulnerabilidade da criança é um fator fundamental para este estudo e as consequências que a ausência de cuidado ou o maltrato, produzem. Assim, Teicher5 nos oferece pesquisas que demonstram sequelas que advêm de marcas de atrofias de estruturas cerebrais nobres por exposição ao impacto de estresse extremo, maltrato por abusos físicos e sexuais, e que são detectadas nas imagens de ressonância magnética, assim como no exame de Eletro Encéfalo Grama, que vem apontando para uma incidência de um tipo de epilepsia nestas crianças.
       E ainda, a vulnerabilidade da criança tem especificidades relativas às diversas fases do desenvolvimento cognitivo e linguístico. Assim o esboço de um código de convívio com o outro irá se completando à medida que os recursos cognitivos forem se desenvolvendo.
       O desenvolvimento será responsável pela aquisição da capacidade de empatia. É preciso que alguém, afetivamente, preferencial estimule o processo de aquisição da atitude de se colocar no lugar do outro. Sem esta aprendizagem a empatia consegue se desenvolver, suficientemente.
       No campo do Direito, Sormani, (6), quando escreve seu capítulo no livro “A invisibilidade de crianças e mulheres vítimas da perversidade da lei de alienação parental”, nos chama a atenção para “o crescente laxismo penal decorrente do falso determinismo sociológico” com a onda de explicações, em geral psicológicas, para o crime, como se o criminoso fosse sempre vítima de um sistema sociológico. Acrescento aqui que a Psicanálise ofertou esta linha de pensamento porque isto faz parte do trabalho terapêutico, levar o paciente à compreensão de comportamentos que lhe causam prejuízo de algum tipo. No entanto, isto não se aplica à criminologia, como tem sido aplicado.
Discussão:              Cuidado e Cidadania. Quando a cidadania será dificultada ou obstruída pela má qualidade do cuidado ou pela sua ausência, ou substituição por uma perversão perpetrada ao longo da infância?
       Precisamos refletir sobre as condições que preparam a mente da criança para o processo de aquisição de cidadania, que começa de maneira simples e adquire, gradativamente, complexidade.
        A 1ª lei é binária: pode ou não pode. E é sempre aprendida, majoritariamente pelo “não pode”: não pode bater no outro, não pode tomar o brinquedo do outro, não pode quebrar alguma coisa do outro. O “pode” vai sendo aos poucos descoberto, mas quase sempre como limite do “não pode”.  Apesar de muito simples, esta é a lei que vai reger a cidadania, e o sistema de leis de uma maneira geral.
       Mas, para que esta lei simples seja internalizada, faz-se necessário que todo um arcabouço de regras seja, ininterruptamente, experimentado. Não se consegue consistência se há variações de regras, de humores, de figuras parentais transgressoras. Sendo a infância, a fase em que o desenvolvimento cognitivo e o linguístico, os dois eixos que dizem respeito à futura cidadania, se fazem apenas e tão somente através da experiência, só através de um processo coerente de avanço em conceitos experimentais, levando ao pensamento por operação e não mais por percepção.       
       Como já assinalamos, o bebê-homem nasce com muitas incompletudes, que o impelem a ter necessidade de dois alimentos: o nutricional e o afetivo. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências de um adulto que lhe seja especial. O leite e o afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados básicos, são sua única possibilidade de continuar existindo. O afeto é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental saudável e da saúde como um todo. E o cuidado é a expressão deste afeto de qualidade. Por isto ele se apega a uma pessoa preferencial que o alimente nestes dois aspectos. A experiência afetiva com esta pessoa, que depois, gradativamente, vai sendo multiplicada, permitirá seu pleno desenvolvimento. O afeto como cuidado tecerá os alicerces de que precisa para crescer. Seu desenvolvimento cognitivo, pela precariedade de estruturas e suas funções, se dará pela experiência. Movimentos espasmódicos e repetitivos se selecionam na busca pela intencionalidade, se combinando de maneira cada vez mais ampla. Por ensaio e erro o bebê vai aprimorando seus movimentos e conseguindo cada vez mais o resultado que deseja. A experiência é a base de todo o desenvolvimento cognitivo.
       A primeira fase é o período sensório-motor, de 0 a 18 meses, o funcionamento é puramente empírico, as aquisições se sucedem por repetição e depois por combinação de movimentos. É a intencionalidade experimentada nos movimentos, originalmente, espasmódicos que atesta o nascimento da inteligência. Repetir o movimento para obter determinada sensação, tátil, auditiva ou visual. (7.PIAGET)
       A infância, portanto, é a fase do raciocínio concreto. Ou seja, até os 11 anos, mais ou menos, a criança só consegue raciocinar através da experiência, sempre usando a repetição como critério de qualidade na aquisição de qualquer conhecimento. O pensamento lógico se amplia com a possibilidade, a partir dos 11/12 anos, do período das operações abstratas, para se completar em torno dos 15/16 anos. Só então o adolescente é capaz de prescindir, totalmente, do estímulo concreto para raciocinar. (8. PIAGET).  
       O desenvolvimento linguístico também é embebido de afeto. Os sons se seguem ao choro, única comunicação inicial, e vão sendo selecionados pela audição dos fonemas da língua-mãe do bebê. As palavras são afetos ou estados. Palavra-frase, depois as combinações de mais de uma palavra, como no desenvolvimento cognitivo, são selecionadas por ensaio e erro. Mas todas as palavras são concretas, experienciais. (9. CHOMSKY).
       A memória tem um funcionamento que vai adquirindo organização ao longo da infância. Nos primeiros anos, dos 03 aos 10/12 anos, as operações mnêmicas vão se tornando cada vez mais precisas. Para isso a organização no armazenamento/resgate precisa ser repetida à exaustão. De par com o desenvolvimento cognitivo e linguístico, a memória se expande: pessoas, objetos, lugares e, por último, tempo. Por isto, uma criança de 3/4 anos é capaz de relatar um abuso sexual sofrido contando quem, como e onde. Durante toda a infância este processo é investido porque é preciso adquirir uma boa memória para as exigências da aprendizagem escolar e a aprendizagem experiencial para a vida. Por isso, a alegação de falsas memórias na infância, não tem também como se instalar se não há um conhecimento experimental. (10. MAZET/HOUZEL)
       O esquecimento, sob a forma de recalcamento, mecanismo de defesa do ego, entra em ação para evitar a morte psíquica quando o trauma é muito intenso. O esquecimento/recalcamento é grave, e muito comum quando a criança não é acreditada e permanece sofrendo um trauma cumulativo (continuado).
       Portanto, o desenvolvimento da criança está pautado na experiência, no seu mundo concreto que se amplia com a escolaridade, mas sempre necessitando do que passa pelos seus sentidos. A experiência de violência, de qualquer ordem, causa uma instabilidade no organismo em desenvolvimento, acionando o medo como sistema de alerta de sobrevivência.
       Considere-se ainda que em consonância com o desenvolvimento cognitivo, linguístico e da memória, a sua inserção social lhe demanda um sistema de regras e leis de convívio, que vai sendo adquirido ao longo da infância. Através do convívio, primeiro familiar e depois escolar, também pela experiência concreta, a criança aprende este conjunto de regras que formará aos poucos seu código de ética, seu código moral, simples como sua maneira de raciocinar.
       É neste terreno, ainda em desenvolvimento, que ela inicia sua concepção e experiência de Poder. A violência da transgressão pela violação de seu corpo, embaralha todos os rudimentos fundamentais de seu código de ética de convivência familiar. Este é um obstáculo para a boa formação de uma ética e uma moral adequadas à vida de cidadania. (5. TEICHER).              
       E o armazenamento de tudo que vai sendo adquirido por experimentação, vai construindo a memória. Cognição, linguagem, memória, são feitas das experiências concretas. É preciso pontuar aqui que esta necessidade de materialidade caminha de par com a enorme capacidade imaginativa, mas em vetores postos, ou seja, a cognição se amplia em oposição à capacidade imaginária. De tal maneira que a criança aprende muito cedo a distinguir o real do imaginário. Aos 3/4anos a criança é capaz de diferenciar a realidade da fantasia e responder a questões, “quem”, “o que”, “onde”, e aos 4 anos, além destas questões o “quando”,  sobre algo que lhe aconteceu. (11. RIBEIRO, Alves Júnior e Maciel).
       A Privação Materna é a primeira das condições que empurram a criança para a não aquisição da cidadania.
       Medo. Sistema de alerta à ameaça de ordem física, sexual e psicológica, de resposta sistêmica. A única das quatro angústias básicas do ser humano, desde a época das cavernas, que não foi solucionada. A fome, o frio, e a dor, angústias que tiveram solução, mesmo que em se considerando a desigualdade de sistemas econômicos que se instalaram ao longo dos séculos. No entanto, o medo é a angústia que permanece.
        Nós, humanos, nascemos muito incompletos, com vários sistemas ainda por amadurecer. Se considerarmos os mamíferos herbívoros como parâmetro, um bebê desta espécie já se põe de pé e dá os primeiros passos em menos de 20 minutos. Nos mesmos primeiros 20 minutos um caprino já busca e encontra por si só o alimento preferencial dos mamíferos, o leite materno.
       O medo, a angústia que não conseguimos “resolver” como as outras, é o mecanismo de alerta, em várias intensidades, que entra em ação quando se desenha uma ameaça à sobrevivência. Ele tem a função dupla de proteger a vida e de evitar a morte. Referimo-nos aqui à morte corporal e à morte psíquica. O medo como defesa tem rápida resposta por estar implicado na ameaça à vida. Busca a fuga, o enfrentamento com embate, ou a submissão, como última opção de sobrevivência psíquica.
       Mesmo convivendo, com os vários níveis atuais de morte apontados pela Ciência, que incluem até o que a Medicina denomina de zona cinzenta, estados de coma irreversíveis, com morte relativa a determinados conceitos de funções vitais, faz-se necessário refletir sobre a morte psíquica, e seus vários estados, por vezes, também irreversíveis, mesmo que a vida biológica se mantenha. A exposição continuada ao impacto do extremo estresse produz repercussões psicopatológicas da ordem do estresse pós-traumático deixado nos soldados que foram à guerra. Quando a guerra era, essencialmente, a exposição à morte e às mortes.  As conhecidas “neuroses de guerra”, que abrangiam desde uma leve irritabilidade com certos ruídos, até quadros persecutórios invalidantes, têm correspondência nas sequelas instaladas nas crianças que sofrem abuso sexual incestuoso. 
       O neologismo alienação parental, entre nós, transformado em lei, conjuga Violência, Poder e Medo. É a nova forma de violência contra a mulher e a criança, é a vivência do Poder que esmaga a vulnerabilidade, é a prática da exacerbação da sensação de medo agudo que se torna crônico. Cunhado com o propósito de defender pedófilos/ofensores, promovendo a perda de guarda da mãe e seu afastamento, com o rompimento da vida da criança, tem efeitos deletérios pela sua característica predadora de afeto, de continuidade, e, sobretudo, de adversidade nefasta da maturação de estruturas e funções cerebrais, desrespeitando assim o desenvolvimento infantil. Como preceito dogmático, a perda da guarda da mãe por alegação da prática de alienação parental, avançou sobre a advertência e a multa, previstas na lei, e se tornou protagonista, e, com celeridade espantosa.
       É do conhecimento de especialistas e também de leigos que maus tratos físicos, sexuais e emocionais, durante o desenvolvimento infantil, tenham relação com dificuldades emocionais e problemas psiquiátricos na vida adulta. O sistema límbico responde por esta função de processar as emoções. No entanto, estudos e pesquisas, (TEICHER, M. H.) evidenciam que não se restringe ao desenvolvimento psicológico apenas. Não muito difícil de entender, os abusos sexuais intrafamiliares perpetrados a uma criança, também danificam estruturas e funções cerebrais que estão em desenvolvimento.
       O ingrediente Medo, protagonista do impacto do extremo estresse que ocorre na vivência do abuso, é apontado como relacionado à atrofia de estruturas cerebrais, tais como o hemisfério esquerdo, o hipocampo e a amígdala, e a já conhecida relação com o sistema límbico, apontado como responsável pelo processamento das emoções. O hipocampo é tido como de importância na função da memória verbal e na memória emocional. A amígdala está relacionada ao conteúdo emocional da memória, principalmente sentimentos de medo e reações agressivas. Violência e medo parecem emanar da mesma estrutura cerebral. E, como o corpo da criança está em crescimento, faz-se necessário considerar que este crescimento sofre alterações de hipertrofia ou de atrofia fisiológica, o que acarreta alteração da função que esta estrutura exerce.
       Se, a principal função da amígdala é filtrar e interpretar informações relacionadas com a sobrevivência e necessidades emocionais prementes do indivíduo, o que desencadeia as reações agressivas por proteção e preservação da vida, temos o medo protagonizando a resposta ao impacto de extremo estresse. E, na sequência, a violência reativa.

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