sexta-feira, 14 de março de 2014

Wood Allen VS. Soon-Yi e Dylan, ainda.

          O tempo midiático já consumiu a notícia, e, o conteúdo em questão, já se alojou em seu reino blindado do eterno e indesvendável segredo. Voltamos a associar, automaticamente, o nome aos seus geniais filmes.
          O título do artigo publicado na Revista de Domingo do O Globo, de 16 de fevereiro de 2014, é “Wood Allen VS. Mia Farrow, ainda”.

          Lamentável. Será que se lhe pedissem para escrever sobre a relação entre a inversão de sentido da rotação do astro sol e os desastres climáticos, você escreveria? Ou sobre a física quântica no nosso cotidiano, diria o que “acredita” ou “não acredita”? O comportamento humano e a psicopatologia não são apenas o que os olhos veem. Os pedófilos não exibem a sua perversão na testa em letras de neon intermitente. Posso lhe assegurar que você conhece vários pedófilos, quem sabe até algum necrófilo, enfim, perversos ocultos. Todos, conhecemos. São, como psicopatas que o são, médicos, advogados, professores, padres, pastores, prefeitos, atores, cantores, cineastas, técnicos desportistas, comunicadores, empresários, policiais, políticos, militares, dentistas, etc., etc., etc., muitos, de muito sucesso profissional, alguns ditos gênios no que fazem. São sedutores e manipuladores, ou seja, em geral inteligentes, são simpáticos, sociáveis, agradáveis, por vezes, engraçados, encantadores, porque é, exatamente assim, que escondem sua perversão. Pais e padrastos perfazem 85% dos casos de abuso sexual em crianças e adolescentes. O incesto é ingrediente importante para esta perversão.
          O prazer do abusador não é sexual, é o prazer secreto de enganar a todos. Enganar a você, a mim, a todos, até a criança de quem ele abusa, que é obrigada a fazer o pacto do segredo. Isto proporciona a eles uma intensa sensação narcísica de superioridade. Assim, os abusadores, gozando da proteção de sua vítima, da nossa cegueira, nosso descuidado, acumulam prestígio e respeitabilidade para se tornarem intocáveis. E, conseguem. 
          É inacreditável que ainda persista a fantasia, veiculada no artigo, de que se conhece alguém olhando nos olhos, pela sua produção, ou pelo seu comportamento social. Esta mágica de saber quem é o outro, alimenta a onipotência do pedófilo. Envolvente, driblar esta crença primária é uma atração para ele. Ninguém descobre quem ele é. Não nos cabe o julgamento pela “cara”, ou, a sentença “inocente”, baseados em aparência. Abusadores não são nunca condenados pela Justiça. O abuso sexual é um crime quase perfeito que imprime uma tatuagem na alma de meninos e meninas. É a palavra da criança desacreditada diante da palavra de um adulto “acima de qualquer suspeita”, como são vistos. Assim, fica na conta de uma tal “construção cognitiva” da criança, da alienação parental da mãe, da mentira da criança, etc. Em nenhuma destas alegações é levada em consideração a idade da criança, sua capacidade cognitiva, sua capacidade de mentir com conteúdos sexuais que ela ainda não teve acesso, os critérios de observância da alienação parental, o luto pela separação, por exemplo. Ao contrário, parte-se do princípio de que a mãe sempre ficou frustrada pela separação, negando sempre o evidente alívio que tantas vezes a separação traz. Acrescente-se que o desespero de uma mãe na procura da escuta e da proteção a um filho pequeno abusado é sempre interpretado como histeria, tornando-se prova de seu desequilíbrio, sem as devidas investigações psicológicas a este respeito. Crime às escuras cujos vestígios, nunca com materialidade, só são captados por especialistas com expertise verdadeira. Mas, raros são os que têm a coragem de afirmar ou, pelo menos, apontar os indícios, e assinar embaixo. O fenômeno do “backlash” é cada vez mais avassalador contra os técnicos, a omissão tem sido usada amplamente.
          A incapacidade de escuta da criança, ou pós-criança, que revela um abuso sexual é, totalmente, antagônica à escuta da criança consumidora ou indutora de consumo. Na letra da Lei, Sujeito de Direito, na realidade, desacreditada. Hoje, todas as crianças que quebram este pacto doentio do silêncio, são “definidas” como dominadas na infância e pela vida toda por uma poderosíssima mãe que pratica, para sempre, a consumida alienação parental. Parece até que ficam sem juízo de valor, sem critério de realidade para sempre.                                         
         O conceito de Modernidade Líquida, (Bauman), bem se aplica aqui. Impossibilitada de sentir uma responsabilidade empática pela criança numa situação de abuso, a articulista banaliza a psicopatologia, duvida de seu poder, coloca a arte acima da sociedade, das crianças, como se fossem comparáveis ou excludentes. Comportando-se como é o corrente atual, superficial e descompromissadamente, expele-se a angústia. Tem nos faltado o devido cuidado com um mecanismo de defesa usado pelo nosso ego ao se deparar com uma situação de impotência aguda, a identificação com o agressor.

Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Criança e Adolescente. Fev. 2014.


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