quinta-feira, 13 de março de 2014

UMA LEI NÃO MUDA UM COMPORTAMENTO
         Prova do autoritarismo que transita, silenciosamente, pelas nossas veias, as leis são sancionadas para gerar comportamentos. Esta contramão engorda nossos códigos, mas ela não traz mudança de comportamento, de crença social. Na passagem de um ano para o outro tivemos várias evidências da ineficácia de leis, tidas como pérolas de uma conquista, que, efetivamente, não se dá pela letra da lei. Um Adilson que enforcava a mulher em plena via pública, abordado por agentes policiais, que desconheciam ou desconsideravam a lei que tenta impedir agressão à mulher, se aproximaram na conduta do “deixa disso”. Uma arma foi alcançada pelo Adilson, que poderia ter matado algumas pessoas. Um ex-namorado que esfaqueou a ex-namorada, em público, na entrada de um shopping. Um ex-noivo que arrombou a vida da ex-noiva, e depois a jogou pela varanda. Ele tinha duas ocorrências do mesmo tipo, mas ainda sem o assassinato, mais do que previsto neste tipo de roteiro. Na seqüência, o prefeito abrigado pela floresta amazônica, pelo seu bando, e pela justiça em atitude, no mínimo, protelatória em relação a 70 processos de queixa de abuso sexual e exploração sexual de meninas de 09 a 15 anos.
          Temos agora o lançamento de nova campanha de denúncia de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Cartazes. O foco nas estradas. Quanto teria custado? Parece até, por um breve tempo, que nos preocupamos e cuidamos das nossas crianças. É o carnaval... E, parece que estes cartazes vão ser aproveitados para a Copa. Em que estradas serão distribuídos? Nas estradas da vida? Mais uma campanha inconsistente, não persistente e inconseqüente. Campanhas de denúncia não produzem comportamento adequado, cultura, nem tão pouco, cidadania. Longe de negar a importância da denúncia, mas sabendo o tamanho restrito e breve do denuncismo, que não traz responsabilidade pela criança. Denunciar é apenas se livrar de parte da culpa de saber, um momento de trocar um vômito social por um lapso de “cumprimento” da lei, que beira um pequeno exercício de poder sob o manto do anonimato, muitas vezes, banhado em narcisismo, - “eu fiz meu dever, agora não tenho mais nada a haver com isso”. Ninguém quer se envolver, ninguém tem responsabilidade empática.  Quem fez pela criança? O denunciante? O receptor da denúncia? Os Sistemas das várias Assistências? Qual Instituição vai se responsabilizar? O Estado? Quem irá proteger o vulnerável?
          A criança está escrita na lei como Sujeito de Direito, com voz. Com Voz. Na realidade, sua palavra é desqualificada, reduzida à mentira, mais recentemente, destituída de verdade porque conceituada como “construção cognitiva”, até mesmo quando, muito pequena, ainda não alcançou o desenvolvimento cognitivo para assim ser classificada. A criança que denuncia um abuso sexual é desacreditada. É mais fácil jogar para esta terminologia, jogar para suas fantasias, sem, sequer, se preocupar com o fato de que uma criança só fantasia em cima do que já conhece.
          O professor de economia continua a dar aulas na universidade, profissão, inclusive, formadora de opinião, enquanto a Maria da Penha que protagonizou a Lei dita de proteção à mulher, sentou para sempre na cadeira de rodas. Aliás, além das evidências midiáticas, já há estudo apontando para a não mudança da violência doméstica na vigência desta lei.
          O prefeito, emblemático na perversão, na inconsequência e impunidade, segue, sob os auspícios da justiça, afirmando que 70 mulheres e meninas mentiram. Só quando “deu no fantástico” as instituições da justiça se mexeram, e se debruçaram nos horrores das inúmeras meninas, prometendo até celeridade, o que é difícil nesta área. Talvez isto dure o tempo midiático, como acontece freqüentemente. Do alto de sua onipotência infantil, típica característica psicológica de abusadores, sem mexer um músculo do rosto frio, sorriso de Monalisa, afirma em rede nacional: “eu desafio quem conseguir uma prova contra mim”. Há 06 anos o descrédito nas meninas e a conivência com o estupro a vulnerável garantem sua impunidade.
          O depois é negligenciado. O que fazer com a criança que revela um abuso sexual intra-familiar? Muito comum é a negação da revelação por parte da mãe, assim como, na violência doméstica, o perdão pela agressão física e psicológica, atitude esperada e compreensiva, considerando-se o abandono e o medo em que são mergulhadas as vítimas. Recorrer a quem? Os processos duram anos e são quase, quase sempre inconclusivos, ninguém quer afirmar nada. Nem as pessoas envolvidas, nem as que, de alguma maneira, testemunham, nem os técnicos requisitados, nem os operadores de justiça. A criança vai seguir em sua solidão da tortura sexual que vai continuar acontecendo. Encarcerada nesta transgressão perversa, tatuada em sua alma, é possível que, como sabemos tecnicamente, venha a repetir este padrão o que seu inconsciente guarda, vindo a ser outro elo desta cadeia do abuso sexual.
           A Lei Maria da Penha, a lei do Estupro a Vulnerável, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, são avanços jurídicos, mas não são avanços humanos. Quando uma mulher, depois de recolher toda a sua coragem, chega a um balcão de denúncia e ouve da “autoridade” a pergunta se ela tem certeza do que está fazendo, porque depois não pode voltar atrás, ela, que já sofreu várias vezes agressões até maiores, aposta naquela aliança psicológica, de difícil compreensão, de que ele vai mudar, e recua. Assim também, o conceito de estupro a vulnerável, juridicamente correto, não tem ressonância para a grande maioria, não houve sangue, não houve rompimento, nem houve penetração, então não é grave. Leia-se: leigos e operadores de justiça de parte do nosso país. Ao invés de ampliar a importância do crime, restringiu sua identificação.
          Mas, vale ressaltar os contrastes de nosso país. No norte, aquela menina de 15 anos ficou confinada por 26 dias numa cela com mais de 20 homens, sendo estuprada 5 ou 6 vezes ao dia. Delegada e Juíza, duas mulheres arbitrando sobre uma menina, não tinham um exemplar do ECA à mão. Lá também, ouvimos de juízes a classificação de “essa besteira” em referência ao conceito jurídico ampliado de estupro a vulnerável, aos danos psicológicos causados à criança, e a canetada é leve para o abusador, e só se tiver muita prova concreta de um crime às escuras, um crime quase perfeito. No sul, um estado que instalou, em todas as suas Comarcas, as Salas de Depoimento Sem Dano, conhecidas como salas de DSD, raríssimas e obstaculizadas em outros cantos do país, procedimento simples que garante segurança e dignidade à criança e ao adolescente para a revelação em única vez dos abusos sexuais sofridos. Lá também, foi sancionada agora a lei de porte de tornozeleira eletrônica para monitorar agressores de mulheres e crianças, buscando melhor fiscalização do cumprimento das leis e medidas protetivas.  Hoje, no norte, hoje, no sul de um mesmo povo, do que deveria ser uma mesma Justiça.
          Mais uma campanha de denúncia é até um bom recomeço. Mas, não mais que isso. E depois? E depois de nove meses da Copa? As meninas pobres, muitas e bonitas tem sonho de príncipes louros, que falam línguas estrangeiras... Já escrevemos sobre isto, “Imagina na Copa”, em 2013, antes da Copa das Confederações, alertando para a ausência total de política de proteção de nossas meninas. Estes cartazes, agora, não conseguem cumprir o papel político de proteção, fiscalização, respaldo em estrutura de assistência de qualidade, solução para as diversas situações de exploração sexual de menores, meninas e meninos, durante um evento que congrega homens sozinhos, sem suas mulheres e famílias.
          Sabemos que este tipo de violência intra-familiar, 90%, causa medo, repulsa, destrói sonhos e projetos, dá muito trabalho até para quem está ao redor. Muito trabalho judicial e psicológico. Por isto mesmo, um dos maiores danos é a sequela do isolamento afetivo. Assim, por mais difícil que seja, há que se aproximar o olhar, o cuidado, o colo social para estas vítimas. Um cartaz é frio, dura a vida do papel utilizado, um anonimato é frio e acaba com o final da ligação telefônica, um fazer de conta que nada aconteceu ou que nada sabe, é cruel. É o final da campanha de cartazes, muito cruel.
          Alimentamos, orgulhosamente, uma cultura de transgressão em todos os níveis sociais, políticos, e até, em todos os nichos afetivos. Enquanto não construirmos uma cultura de cidadania, com consistência persistência e consequência, enquanto estas questões de violência sexual, física e psicológica contra criança, adolescentes e mulheres não forem ouvidas e tratadas olho no olho, pelo acolhimento do sofrimento destas vítimas de tortura cotidiana, os fatos de violência física psicológica e sexual contra este povo sitiado pelo medo e pela humilhação continuarão a ser a prova de que os comportamentos perversos seguem incólumes, pela nossa omissão, negligência e irresponsabilidade afetiva e social. É mais um indicador do déficit de cidadania.
Ana Maria Iencarelli. 25 de janeiro de 2014.  

Artigo publicado no Portal da Voz do Cidadão. 

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