sexta-feira, 13 de abril de 2018


6 | ENTREVISTA março/abril | 2018 |
 VIDA JUDICIÁRIA

CLARA SOTTOMAYOR

“O Direito da Família e das Crianças é uma área altamente permeável às conceções pessoais, ideologias e idiossincrasias de quem decide” A magistrada judicial tem-se distinguido no panorama judiciário por um envolvimento muito grande na área do Direito da Família, Crianças e Jovens, sobre a qual já publicou várias obras, como “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio” – obra esgotada e que vai para a 7.ª Edição -, “Temas de Direito das Crianças” ou “E Foram Felizes para Sempre...? Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio”, entre outros. Maria Clara Sottomayor é Juíza Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça mas está em comissão de serviço no Tribunal Constitucional, para o qual foi eleita pela Assembleia da República em 2016. Foi ainda juíza social no Tribunal de Família e Menores do Porto. Sobre quem tem a responsabilidade de decidir é perentória: “a neutralidade na visão dos casos está muito condicionada pela experiência e opiniões de cada magistrado ou magistrada” Criou na Universidade Católica do Porto uma disciplina de Mestrado, “Direito das Crianças”, única no panorama universitário português, e cujos estudos estão publicados no livro “Temas de Direito das Crianças”. Que objetivos tem a disciplina? Conforme consta das fichas da unidade curricular e do requerimento dirigido ao Conselho Científico quando propus a criação da disciplina, em 2009, os seus objetivos são: um contributo para uma melhor aplicação do direito e para a qualidade das decisões administrativas e judiciais que dizem respeito às crianças; a consciencialização social do valor e da dignidade humana das crianças, como pessoas, titulares de direitos fundamentais; mudança da mentalidade dos/as futuros/as profissionais do direito; criação de uma nova cultura da infância na sociedade e nos tribunais. Qual a avaliação que faz da implementação do novo Regime Geral do Processo Tutelar Civil (RGPTC)? Ainda é cedo para se ter a certeza do impacto desta nova legislação. Em Direito da Família, as alterações legislativas demoram algum tempo a ser postas em prática, uma vez que a tendência para se repetir práxis e reproduzir mentalidades é normalmente elevada. Refiro-me, por exemplo, a uma alteração muito importante que foi a que diz respeito aos processos crime de violência doméstica contra um dos progenitores, com aplicação de medida de coação. Nestes casos, diz o RGPTC (Lei n.º 141/2015) que se presume contrária ao interesse das crianças qualquer solução de guarda partilhada ou de exercício conjunto das responsabilidades parentais e que o direito de visita do progenitor, indiciado por crime contra o outro, “pode” ser suspenso. O Ministério Público (MP), no Tribunal Criminal, após conceder o estatuto de vítima, deve comunicar de imediato ao MP, junto do Tribunal de Família, a abertura de inquérito para que no Tribunal de Família seja instaurado um processo urgente de regulação das responsabilidades parentais. Este processo destina-se a que a guarda das crianças e os alimentos sejam imediatamente regulados para proteger as mulheres e as crianças das ameaças do agressor, que não paga alimentos nem sai da casa de morada de família e usa os filhos para pressionar a mulher, vítima de violência doméstica, a não romper a relação. Tenho conhecimento que, antes de esta legislação entrar em vigor, havia casos em que um progenitor indiciado ou condenado por violência doméstica recebia a guarda dos seus filhos ou em que a mãe, vítima de violência, tinha de se encontrar com o agressor para lhe entregar os filhos a fim de ser cumprido um regime de visitas. O que levanta problemas gravíssimos de risco para as mulheres de voltarem a ser agredidas ou de serem acusadas de incumprimento do regime de visitas. Desconheço se esta situação se alterou. Mas as mulheres vítimas de violência doméstica continuam a aparecer nas associações de mulheres a relatar arbitrariedades cometidas pelos tribunais de família, pela segurança social e pelas comissões de proteção de crianças e jovens. Algumas experiências estão relatadas num livro da autoria da jornalista Rita Montez, editado pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, intitulado “Vidas Suspensas”, disponível on-line para o público. Considera que os Tribunais e respetivos Juízes/as estão preparados para julgar bem as matérias relacionadas com Família, Crianças e Jovens? O facto de termos tribunais de competência especializada não significa que os juízes destes tribunais tenham uma formação especializada em Direito da Família, Crianças e Jovens. Os magistrados, quando concorrem para estes Tribunais, não apresentam uma formação pré- via nesta área do Direito, nem tal formação é requisito obrigatório do concurso. Penso que o Direito da Família e das Crianças é uma área do Direito altamente permeável às conceções pessoais, ideologias e idiossincrasias de quem decide e em que a neutralidade na visão dos casos está muito condicionada pela experiência e opiniões de cada magistrado ou magistrada. Por isso, é essencial a formação especializada. É tradição pensar-se na magistratura e nas faculdades que esta área do Direito Em Direito da Família, as alterações legislativas demoram algum tempo a ser postas em prática, uma vez que a tendência para se repetir práxis e reproduzir mentalidades é normalmente elevada é fácil, por não levantar problemas técnico-jurídicos complicados. Mas na verdade é muito difícil, por exigir uma formação interdisciplinar que os cursos de Direito não fornecem e uma capacidade de empatia com as crianças, culturalmente muito difícil para as pessoas adultas, formatadas na ideia de que as crianças devem obediência aos mais velhos, que detêm autoridade sobre elas. Temos de ter em conta que as conceções dominantes na sociedade também se refletem entre os juízes que aplicam o direito e os profissionais que coadjuvam esse processo de aplicação. O primeiro passo da formação especializada devia ser a desconstrução dos preconceitos que a sociedade tem em relação às mulheres e às crianças. Foram as protagonistas da Reforma de 1977, que reconheceu, pela primeira vez na história do direito, um estatuto jurídico de igualdade às mulheres e direitos de participação às crianças e aos jovens, mas o espírito desta Reforma ainda não foi posto em prática. A alteração de mentalidades é sempre um processo muito mais lento do que as alterações legislativas. A constituição de advogado nos processos desta natureza é essencial? O RGPTC veio introduzir a obrigatoriedade de constituição de advogado/a para a criança, nos processos em que haja conflitos de interesses entre a criança e os pais ou quando a criança, dotada de maturidade suficiente, o requeira, o que pode suceder nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais. A jurisprudência tem tido uma visão restritiva da figura, entendendo que a nomeação de advogado para a criança não é devida quando o interesse que a criança manifesta coincide com a posição assumida por um dos progenitores em conflito com o outro. Penso que para tornar esta figura do advogado da criança uma mais-valia, será necessário que a Ordem dos Advogados disponha de uma bolsa de advogados com formação especializada, caso contrário, corremos o risco que seja mais do mesmo: direito da família com ideias pré-concebidas… O incumprimento das responsabilidades parentais, designadamente de alimentos ou de visitas, tem, na prática, consequências relevantes para os incumpridores? Ou, pelo contrário, assiste-se a um sentimento geral de impunidade, qualquer que seja o grau ou intensidade do incumprimento? Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o incumprimento do regime de visitas e o incumprimento de alimentos se referem a realidades muito distintas e que não podem ser tratadas do mesmo modo: o convívio entre a criança e o progenitor não residente é uma realidade afetiva e relacional, dependendo a sua execução prática da vontade das pessoas envolvidas: as relações pessoais e afetivas não podem ser impostas pela força nem aos Tribunais compete impor afetos; o direito a alimentos, pelo contrário, é uma obrigação dos pais e um direito fundamental das crianças, que decorre do seu direito à vida e à integridade pessoal e que, por isso, tem como único limite a incapacidade financeira de o progenitor obrigado os prestar, não podendo o seu cumprimento ficar dependente da vontade deste, nem podendo o progenitor residente renunciar a estes alimentos. Quanto ao incumprimento das visitas e dos alimentos, a lei prevê sanções para os incumpridores: o progenitor que injustificadamente impede as visitas do outro progenitor aos filhos pode ser condenado ao pagamento de multas, indemnizações e até responder criminalmente por crime de subtração de menores; o progenitor que não paga a pensão de alimentos a que está obrigado pode ver os seus rendimentos ou bens serem penhorados e o valor da pensão deduzido Penso que o Direito da Família e das Crianças é uma área do Direito altamente permeável às conceções pessoais, ideologias e idiossincrasias de quem decide e em que a neutralidade na visão dos casos está muito condicionada pela experiência e opiniões de cada magistrado ou magistrada. Por isso, é essencial a formação especializada do seu salário, pela entidade empregadora, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora. O devedor pode ainda incorrer em responsabilidade criminal por violação da obrigação de alimentos. Em relação aos alimentos, penso que os processos de execução contra os incumpridores se fazem, mas o problema está a montante: as crianças ficam longos períodos de tempo sem receberem alimentos ou a receberem pensões de valor muito baixo, dada a relutância que os tribunais têm em decretar alimentos provisórios e os montantes muito reduzidos, manifestamente insuficientes, dessas pensões. Havendo ainda que contar com as demoras do processo de incumprimento e do processo em que o MP aciona a intervenção do Fundo de Garantia da Pensão de Alimentos, para se substituir ao devedor. Em relação às visitas, a percentagem de processos de incumprimento é elevada e tem-se caído num exagero de condenações de mães sem demonstração de culpa destas e mesmo quando os filhos já são adolescentes quase maiores de idade, entre os 15 e os 17 anos. Discordo destes processos de incumprimento porque as crianças são pessoas, não objetos sobre os quais os adultos têm direitos. A exposição da criança a conflitos e disputas de adultos poderá ter algumas consequências para a vida e o dia a dia dessa criança? Os estudos demostram que os conflitos entre os pais prejudicam a estabilidade psicológica da criança e criam angústia e depressão, prejudicando o seu sucesso escolar e a sua saúde. Acha que a solução para o conflito está na proposta de uma guarda partilhada entre o pai e mãe que permita às crianças o convívio com ambos em termos de igualdade? A guarda partilhada é uma figura que só funciona em prol dos interesses das crianças quando há acordo entre ambos os pais e se estes têm capacidade de cooperação para tomar decisões em conjunto e para comunicarem entre si sobre os problemas dos filhos, se cada um deles confia no outro como pai ou como mãe, e se ambos têm capacidade para educar os filhos e estar atentos às suas necessidades no quotidiano. Mas estes fatores são apenas aqueles que dizem respeito aos pais. É essencial que a criança seja ouvida sobre esta forma de organização de vida, pois bem pode acontecer que, tendo de viver em residência alternada, tal solução não seja do seu agrado e seja até prejudicial ao seu equilíbrio. Para crianças com menos de 4 anos de idade a solução não é adequada, pois enfraquece a sua vinculação à mãe em idades muito precoces, em que uma vinculação contínua, sem interrupções, com uma pessoa adulta que cuide si no quotidiano é o fator decisivo para que a criança ultrapasse com sucesso as várias etapas do seu desenvolvimento. Na prática, os bebés a viver em regime de alternância com ambos os pais não terão uma vinculação segura com nenhum deles. Estas conclusões são da teoria da vinculação de John Bowlby e Mary Ainsworth e nunca foram desmentidas até hoje pelos estudos que se seguiram. A guarda alternada é uma solução salomónica que o sistema judicial usa, em todo o mundo ocidental, para resolver conflitos e não ter de decidir a qual dos pais confia a guarda da criança. Os estudos que apresentam resultados positivos reportam-se a pais que estavam de acordo na aplicação da partilha da guarda. Quando se isolam os casos de conflito, verifica-se que a angústia das crianças aumenta nos casos de residência alternada. A guarda partilhada é uma figura que só funciona em prol dos interesses das crianças quando há acordo entre ambos os pais e se estes têm capacidade de cooperação para tomar decisões em conjunto e para comunicarem entre si. Tem-se mostrado contra a tese da Síndrome de Alienação Parental, tendo inclusive uma obra publicada sobre o assunto (“Uma análise crítica da síndrome de alienação parental e os riscos da sua utilização nos tribunais de família”). Havendo opiniões divergentes no campo judiciário sobre esta matéria, não existem consequências negativas que afetem as decisões judiciais? A tese da Síndrome de Alienação Parental (SAP) não foi aceite como científica nem pela psicologia nem pela psiquiatria, daí que não possa ser usada pelo Direito nem pelos Tribunais, contrariamente ao que tem sucedido, em que por aplicação desta malfadada tese têm sido entregues crianças a progenitores acusados de abuso sexual na pendência de processos crimes ou depois de terem sido arquivados por insuficiência de prova. É trágica esta situação para as crianças. Pois sabemos que o abuso sexual é um fenómeno subidentificado, que não deixa marcas físicas detetáveis nos exames de medicina legal, havendo como única prova o testemunho de uma criança, que pode ser muito pequena, com 3-4 anos de idade. Ora, esta tese da SAP, presumindo que as acusações de abuso sexual de crianças feitas no momento do divórcio ou em processos de guarda são falsas, desprotege completamente as crianças porque induz os tribunais a desvalorizar estas alegações, fazendo pender a convicção do juiz para o lado do progenitor acusado e não para o direito das crianças à proteção. Esta ligação da SAP à defesa dos interesses dos abusadores sexuais de crianças remonta ao próprio criador, o médico psiquiatra Richard Gardner, que fez a sua carreira profissional a defender, em tribunal, indivíduos acusados de abuso sexual, tendo ele próprio escrito um livro, em 1992, em que defende que a pedofilia é boa para a humanidade e que as crianças não sofrem, mas antes é a sociedade que as faz sofrer. Quais os mecanismos que a Lei apresenta para evitar que uma criança seja manipulada por um ou ambos os pais e de que forma são aplicados na prática? A ideia de que as crianças e os jovens são manipulados pelos pais em disputas de guarda ou de visitas é muito empolada. Temos que contar, para interpretar as situações em que a criança recusa conviver com um dos pais, com várias hipóteses, que nada têm a ver com manipulação: há jovens que por rebeldia recusam conviver com o pai depois do divórcio; crianças que tendem a unir-se ao progenitor que veem como o mais frágil, recusando o outro, que culpam pelo divórcio; crianças em que a rejeição de um dos pais surge como uma forma de adaptação à dor que lhes causa a separação dos pais; crianças que rejeitam um dos pais porque o viram agredir a mãe, em situações de violência doméstica. É essencial nesta matéria, em vez de presumir a manipulação, ouvir a criança e perceber os motivos que tem para esta rejeição. As crianças são pessoas e a ninguém pode ser imposta a liberdade de amar ou de não amar. Se o obstáculo à relação com o pai puder ser ultrapassado, é através de apoio psicológico à criança, com empatia e sensibilidade, que isso tem de ser feito, e investindo na capacidade parental do progenitor rejeitado, não perseguindo e punindo o progenitor que tem a guarda, nem coagindo a criança, executando o regime de visitas com intervenção policial. Qual o papel da audição das crianças no processo de regulação parental? E em outros casos mais graves, como de abusos sexuais? A audição das crianças foi muito valorizada pelo RGPTC, que estabeleceu o princípio da audição obrigatória da criança sem requisitos de idade, mas apenas de maturidade e capacidade de compreensão. O RGPTC estabeleceu também um conjunto de princípios, em transposição da Diretiva 2011/92/UE, para a audição da criança vítima de abuso sexual, afirmando expressamente uma solução cuja necessidade se fazia sentir na prática judiciária: a audição para A tese da Síndrome de Alienação Parental não foi aceite como científica nem pela psicologia nem pela psiquiatria, daí que não possa ser usada pelo Direito nem pelos Tribunais, contrariamente ao que tem sucedido memória futura nos processos crime de abuso sexual de crianças pode ser utilizada como meio de prova no processo tutelar cível em que se discute a guarda da criança. A investigação científica demonstra que a partir dos 3-4 anos de idade uma criança tem capacidade de discernimento para relatar os factos que integram um crime de abuso sexual de crianças, devendo ser ouvida uma única vez por profissionais altamente especializados, solução que não está ainda posta em prática em Portugal, pois as crianças são ouvidas várias vezes e a audição para memória futura, longe de respeitar o princípio legal da precocidade, faz-se tardiamente conforme ilustram as estatísticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Com a aplicação do “novo” regime tem-se implementado tal audição? Com que resultados práticos? Antes da entrada em vigor do RGPTC, a implementação da audição da criança variava de Tribunal para Tribunal. Havia tribunais em que a criança era ouvida e outros em que essa audição tinha uma natureza excecional. Com a nova lei, passa a ser obrigatória, só podendo ser dispensada nos casos em que se demonstre que a criança não tem maturidade ou que a audição se revela danosa psicologicamente para a criança. Não tenho muitas expetativas nos resultados práticos destas audições, pois a maior parte dos juízes não tem experiência nem formação para entrevistar crianças, correndo-se o risco de a criança, diante de uma figura de autoridade, dizer o que pensa que o juiz quer ouvir e não aquilo que ela realmente sente. Julgo ser decisivo que estas audições sejam acompanhadas por um profissional de psicologia da confiança da criança, e que possam mesmo ser estes profissionais a interrogar as crianças ou, pelo menos, a formular as perguntas. Discordo, como é prá- tica nalguns tribunais, que o juiz possa ouvir a criança sem a presença dos advogados dos pais e sem gravação da audição. É que esta solução põe em causa o princípio do contraditório e potencia que interpretações subjetivas do juiz acerca do que relata a criança possam contribuir para a decisão, sem que tal fique registado nos fundamentos da mesma nem possa ser controlado em sede de recurso. Considerando a existência, com frequência, de ambientes altamente conflituosos e litigantes por parte dos progenitores, será, em geral, possível chegar a um acordo entre os pais? Tal resolve mesmo os conflitos e tem efeitos sobre o processo? Na maior parte dos casos, os casais divorciam-se por mútuo consentimento e apresentam um acordo sobre regulação do exercício das responsabilidades parentais, seguindo os formulários fornecidos pelas conservatórias do registo civil ou adotando um acordo tipo elaborado por advogados. A existência de um acordo inicial não garante que não haja conflitos no futuro, que ocorrem, sobretudo, em relação às visitas e aos alimentos, sendo geralmente consensual nas famílias que as crianças ficam melhor a viver com a mãe por ser esta a solução que mantém a estabilidade na vida da criança e por corresponder à divisão de tarefas adotada pelos pais na constância do casamento. As situações de litígio em relação à guarda das crianças são raras, mas têm vindo a aumentar com o aumento dos divórcios. Os casos mais conflituosos, que duram em média 5-6 anos em tribunal, são aqueles em que existe um processo-crime de abuso sexual de crianças ou de violência doméstica contra um dos progenitores, em que as crianças são torturadas com experiências de guarda partilhada ou de visitas assistidas pela segurança social, tudo com o objetivo de não excluir o Discordo, como é prática nalguns tribunais, que o juiz possa ouvir a criança sem a presença dos advogados dos pais e sem gravação da audição. É que esta solução põe em causa o princípio do contraditório 12 | ENTREVISTA março/abril | 2018 | VIDA JUDICIÁRIA pai da vida das crianças, nem que se tenha que sujeitar estas, como já vi num processo, a mais de oitenta sessões de visitas assistidas. Nestes casos, também se tentava que os pais chegassem a um acordo, mas com o RGPTC devem acabar essas tentativas de acordo, pois a lei especifica expressamente que, nas situações de violência doméstica ou abuso sexual, as vítimas não podem estar sujeitas à mediação familiar ou a qualquer tentativa de acordo com o agressor. Os crimes violentos constituem violações graves dos direitos fundamentais das mulheres e das crianças – a maioria das vítimas – e as mulheres, nestas situações, não estão em condições de igualdade com o agressor para poderem chegar a acordos. O objetivo do sistema judicial, nestes casos, não deve ser proteger a relação da criança com um pai agressor ou suspeito de abusar sexualmente dos filhos, mas sim proteger as crianças do perigo em que se encontram. Parece óbvio, mas não está ainda assimilado pelo sistema que tem um cariz ainda patriarcal. A postura adequada dos Advogados dos dois progenitores passa pela tentativa de acordo ou de mediação? Nas situações em que não há violência doméstica nem suspeita de crime violento contra as crianças, deve tentar-se o acordo e os advogados têm um papel importante em criar nos pais uma predisposição para o consenso, podendo solicitar o auxílio da mediação familiar, serviços que o próprio tribunal pode oficiosamente sugerir aos pais, suspendendo o processo para o efeito. Já escreveu vários livros ligados ao Direito da Família e das Crianças e foi juíza social no Tribunal de Família e Menores do Porto. Tendo em conta a sua larga experiência neste campo, como avalia a atuação das instituições judiciárias portuguesas, assim como dos vários operadores, neste campo, em comparação com outros países europeus ou lusófonos? Considero que os problemas são os mesmos em todos os países europeus e lusófonos, e dizem respeito ao facto de o sistema judicial dar prevalência à relação da criança com ambos os pais - a chamada ideologia da coparentalidade - sobre a necessidade de proteção das crianças em casos de violência doméstica. O aumento do número de divórcios e a visibilidade da violência doméstica (que corresponde, segundo estudos norte-americanos cujos resultados são transponíveis para os países lusófonos e europeus, a cerca de 70% da litigância em torno de guarda de crianças) criaram necessidades novas nos tribunais de família que devem decidir-se de acordo com o paradigma da proteção da criança e não de acordo com a crença popular de que o interesse da criança passa sempre pela manutenção da relação da criança com ambos os pais. A Convenção do Conselho da Europa (designada por Convenção de IstamConsidero que os problemas são os mesmos em todos os países europeus e lusófonos, e dizem respeito ao facto de o sistema judicial dar prevalência à relação da criança com ambos os pais bul), ratificada pelo Estado português em 2013, veio chamar a atenção para esta questão. As sociedades antigamente idealizavam o casamento. Agora que o número de divórcios fez desaparecer essa crença, idealizam os divórcios e tratam a violência doméstica como um mero conflito... É este paradigma que é preciso alterar para que as crianças não sejam torturadas em processos que duram anos e em que se tenta reatar a relação com um progenitor que a agrediu ou agrediu a sua mãe. Esse panorama é com certeza ignorado pelos cidadãos que não têm contacto com o sistema judicial e pelo poder político. Mas é a dolorosa realidade das crianças que tiveram o azar de nascer em famílias com histórias de violência doméstica. Considera que os Direitos das Crianças sejam uma prioridade em Portugal? Acho que deviam ser uma prioridade, mas na prática não são. As crianças não têm voz no espaço social e político, e não votam. Vivemos numa cultura adultocêntrica. Por isso, os pontos de vista e interesses das crianças são ignorados na elaboração das leis e das políticas sociais, e as crianças são tratadas, pelos tribunais, como objetos dos direitos dos adultos e não como sujeitos de direitos. Neste campo do Direito da Família, Crianças e Jovens, o que é que Portugal tem a aprender com a atuação dos vários operadores judiciais de outros países lusófonos? O que mais poderia ser feito neste campo da Lusofonia? A constitucionalização do direito da família, nos países lusófonos, conduziu à adoção dos mesmos princípios de igualdade de género e de promoção dos direitos das crianças que caraterizam o direito da família português após a Constituição de 1976. Contudo, as regras costumeiras, de natureza patriarcal, continuam a ser aplicadas e as mulheres a viver num estatuto de subordinação, com altas taxas de violência doméstica, de casos de não reconhecimento da paternidade e de incumprimento da pensão de alimentos, o que acentua a pobreza das mulheres e das crianças. Por outro lado, os países africanos, de língua portuguesa, ainda não legalizaram as uniões e os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Participei recentemente sobre a discussão deste tema em Cabo Verde. O Brasil é o país cuja realidade conheço melhor. E posso afirmar que nalguns aspetos o direito brasileiro está mais avançado do que o português, por exemplo, na tutela judicial da parentalidade sócio-afetiva, no reconhecimento da multiparentalidade, nos efeitos das uniões estáveis, na atribuição judicial de direitos de indemnização aos filhos, contra os pais, por abandono afectivo, nos direitos das pessoas transexuais e transgénero. O Direito da Família brasileiro evolui pela criatividade da jurisprudência, enquanto Portugal evolui através da lei. Contudo, é também no Brasil que a tese da alienação parental tem tido mais força no judiciário, invalidando as declarações de crianças vítimas de abuso sexual e desprotegendo crianças negligenciadas ou maltratadas por um dos pais. A situação tende a agravar-se com a apresentação de um projeto lei que visa criminalizar a alienação parental, prevendo expressamente que os familiares da criança que acusem um pai de abuso sexual e os profissionais que apoiam a criança possam ser punidos em caso de falsas declarações. Ora, sabendo nós, pela investigação científica, que pode ser muito difícil reunir prova nestes casos, sobretudo quando a criança é muito pequena, esta ameaça sobre as famílias e sobre os profissionais induz as famílias ao silêncio, o que significa um retrocesso nos direitos das crianças.

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