“Os 18 anos do DECA no ECA:
a violência doméstica
sob a ótica
interdisciplinar”.
O Projeto de Lei nº 2654/03, aprovado
em 19 de janeiro de 2006 pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados, lançou a interdição do castigo físico, e as questões relativas a sua
prática estão em alta. Discussões, entrevistas, mesas redondas estão sendo
promovidas pela mídia, dando amplo espaço a “achismos superficiais” que se
contentam com adultos a dizer “levei palmada e estou aqui”! Ninguém ouviu uma
só criança, um só adolescente sobre como se sentem quando são punidos
fisicamente ou são agredidos pelos pais nos mais diferentes contextos. Talvez
os adultos que estão lendo agora este texto, pensem que eles foram crianças e
adolescentes e que se lembram como se sentiam. Considerando que nossa memória
não é totalmente objetiva, ou seja, que nosso funcionamento mental é regido
pelos princípios do prazer e da realidade, sob a administração do princípio
econômico que busca o maior prazer com o menor custo psíquico adequado à
realidade, veremos logo que não podemos confiar inteiramente nas nossas
lembranças. Quando se faz necessário entra em ação o que chamamos de mecanismos
de defesa que tem a função de proteger a mente. Submetidos aos mecanismos de defesa
os fatos se distorcem, minimizamos nossas sensações e sentimentos, negamos o
que aconteceu, projetamos, no outro, o que não nos agrada em nós mesmos, nos
identificamos com o inimigo quando ele é muito assustador, etc., etc., etc., em
busca de um arranjo suportável para determinado fato. Portanto, dando fé a
nossas lembranças, não precisa nem perguntar às crianças e aos adolescentes
porque eles não teriam capacidade de avaliação desta questão. Aqui reside o
nascedouro do que está por trás do tema: o prazer profundo pelo poder da posse
do corpo dos nossos filhos, crianças e adolescentes, no lugar da
responsabilidade pelo corpo do outro, negligenciada ou mesmo inexistente. Esta
distorção, posse ao invés de responsabilidade, patrocina a ação desgovernada de
mentes patológicas, quando da prática de espancamentos que levam ao óbito de
crianças e adolescentes, noticiário que tanto nos horroriza pelo desencaixe do
mito do “amor de mãe”. Encontramos as
mães com maior fatia da estatística: 52% dos casos de violência física são
praticados pela mãe, contra 24% praticados pelo pai, 8% por padrasto e madrasta
e 13% por outros parentes, restando 3% por não parentes, segundo estudos
estatísticos da Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência –
ABRAPIA, 1999. Vale ressaltar que estes índices foram obtidos com base em
denúncias acolhidas pelo Programa S.O.S.criança, portanto, se acrescentássemos
as “palmadas moderadas educativas”, certamente, teríamos indicadores chegando
aos 70 ou 80% de mães batendo em seus filhos. Este é um fator que evidencia
esta distorção da maternidade: saiu do meu corpo, é meu.
A violência é um componente da mente
humana que a civilização e a cultura vem tentando reprimir. Muito já foi
conseguido se olharmos através da nossa história. Na Roma antiga, “o pai detem, durante toda a
vida de seus filhos, o poder de jogá-los nas prisões, flagelá-los, mantê-los
acorrentados para fazer trabalhos rústicos e pesados, e até de vendê-los”,
Lallemand, em seu livro de 1885, “História das crianças abandonadas e
largadas”, editado na França.
Encontramos no livro de J. Dehaussy,
“A Assistência Pública à Infância, as crianças abandonadas”, 1951,
também editado na França, a referência a comportamentos de uso e abuso do corpo
da criança: “mulheres sifilíticas que davam de mamar a bebês na crença de que
assim se livravam da doença, os amantes da necrofilia que buscavam em crianças
pequenas a prática de seus rituais de magia e maldades, assim como velhos que
se banhavam com o sangue de crianças para rejuvenescer”. Entre nós, em 02 de
março de 2006, em São Paulo, encontramos no noticiário a prisão da mãe e
padrasto de um menino de 8 anos
encontrado nu com diversos hematomas e amarrado a um tronco, ao lado de
uma espécie de altar de magia negra. Quantos bebês recém-nascidos afundaram em
nossos rios antes de serem resgatados vivos ou mortos, pois esta é uma prática
muito mais freqüente do que o que chega aos jornais. Segundo o Dr. Cid
Pinheiro, coordenador do Serviço de Pediatria do Hospital e Maternidade São
Luiz Unidade Morumbi e Itaim e professor assistente do Departamento de
Pediatria da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, os abusos contra
crianças representam 1% dos atendimentos nos serviços de emergência médica,
provocando milhares de óbitos anualmente, além de muitas seqüelas físicas e
psicológicas graves. Ele acrescenta: “apanham mais as crianças que “dão
trabalho”, as temperamentais, as choronas, as portadoras de doenças crônicas,
as gêmeas e as nascidas prematuramente.” Estudos realizados pela ABRAPIA,
publicados na Cartilha “Maus-tratos contra Crianças e Adolescentes – Proteção e
Prevenção”, apontam as lesões mais freqüentes: em primeiro lugar vem a pele com
escoriações, hematomas, queimaduras, em segundo lugar, o esqueleto, fratura de
ossos longos, em terceiro lugar, o sistema nervoso central, com os lactentes
somando 90% das lesões identificadas até 2 anos, em quarto lugar os órgãos
intra-abdominais, com hematoma intramural de duodeno e ruptura de fígado e
baço. O infanticídio foi tolerado até o
fim do século XVII. Poderíamos listar vários comportamentos que, ao longo da
história, denunciam a posição de dominação e posse sobre os pequenos. Mas a
linha predominante é a da evolução humana: já não aceitamos mais, por exemplo, nenhuma
destas condutas, e nem mesmo a palmatória como instrumento da mesa da
professora dos primeiros anos escolares. Mas, com toda a civilidade de 21
séculos, a humanidade ainda não adquiriu a competência suficiente para conter
seu impulso destrutivo: guerra, terrorismo, corrupção, tortura, são perversões
humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre “fracos”, o prazer do exercício
da opressão.
Estarrecida, ouvi um educador falar
em defesa da palmada dita “educativa” que esta lei seria uma interferência na
vida familiar, “o Estado entrando em casa onde a supremacia tem que ser dos
pais”. Se concordarmos com ele, estaremos legitimando o desrespeito ao corpo do
outro visto como posse daquele que detém a razão: o pai/mãe que bate no
filho/filha, o pai/mãe que abusa sexualmente do filho/filha, o marido que bate
na mulher, ou seja, o mais forte exercendo o poder segundo sua arbitragem. Aliás, é importante lembrar que os pais param
de aplicar os castigos físicos em seus filhos quando estes crescem e deixa de
ser assimétrica a relação das dimensões corporais entre eles. É preciso ter a
garantia da impotência do outro para banir o insuportável medo de sua própria
impotência que então cede lugar a uma ilusória, mas prazerosa sensação de
onipotência. É assim que fazem os pais com seus filhos, é assim que fazem estes
filhos como autores de bullying na escola, é assim que continuam a fazer como
pitboys nas festas e discotecas, e, prosseguindo na cadeia de transmissão
transgeracional, é assim que passam a fazer de novo com seus filhos, numa
compulsão à repetição monótona e adoecedora. No artigo “Bullying –
comportamento agressivo entre estudantes”, publicado pelo Jornal de Pediatria
Rio de Janeiro, 2005-81, o Dr. Aramis Lopes Neto, Coordenador do Programa de
Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes – Projeto da ABRAPIA,
descreve a cena composta de três elementos: o autor do bullying, designação do
agressor, o alvo, a vítima da agressão, e as testemunhas, os alunos que
observam ativa ou passivamente a agressão. Ele afirma que “algumas condições
familiares adversas parecem favorecer o desenvolvimento da agressividade nas
crianças. Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento
afetivo pobre, o excesso de tolerância ou a permissividade, e, a prática de
maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder
dos pais.” E acrescenta: “ Alvos, autores e testemunhas enfrentam conseqüências
físicas e emocionais de curto e longo prazo, as quais podem causar dificuldades
acadêmicas, sociais, emocionais e legais.” Entre elas o abandono escolar e o
suicídio na adolescência.
Nestas últimas semanas assistimos a
sucessão de notícias de crianças vítimas de maus-tratos físicos: Lucas tinha 2
anos,tinha queimaduras e hemorragia nasal; o bebê de Nova Iguaçu tinha o cordão
umbilical e, jogado no asfalto, foi
atropelado; a outra levou um chute e
rolou uma escada; outra foi espancada pela mãe e padrasto até a morte;
etc.etc.etc. Mas este foco vai passar e nos esqueceremos destas monstruosidades,
como esquecemos de uma Paloma, 9 meses, que morreu de um traumatismo craniano
quando deu entrada pela oitava vez em um hospital, há 4 anos atrás. Será que
nós, pais instruídos e esclarecidos, que até usamos na linguagem o conceito de
trauma psicológico, não fazemos parte disto aí, a nossa palmada é educativa?!
Enquanto especialista em Saúde Mental
de Criança e Adolescente, posso afirmar que bater, gritar e humilhar, causam
dano permanente à mente em desenvolvimento. Sabemos todos que a violência é
endêmica, portanto é preciso escutar melhor e, sobretudo, se responsabilizar,
porque a violência nasce quando morre a palavra e o afeto.
Este foi o artigo que escrevi em
fevereiro de 2006, publicado com o título “Violência e Afeto” no Jornal “O
Globo” de 20/02/2006. Este Projeto de
Lei, 2654/03, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
Federal, em 19/01/2006, foi engavetado, abandonado ou esquecido, pelas nossas
parlamentares que o “carregavam como um bebê”, por ocasião de campanha em que
iriam se candidatar em seus respectivos estados. Surge a campanha “Não bata,
Eduque”, muito bem-vinda, com a mesma proposta, e logo depois, em julho de
2010, surge a alteração da Lei 8069/90, acrescida do art. 17-A, Parágrafo
Único, incisos I, e II, e art. 17-B, e art. 70-A incisos I, II, III, IV, e V. Projeto
de Lei assinado por Paulo de Tarso Vannuchi, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto
e Márcia Helena Carvalho Lopes.
Confesso aqui minha dificuldade em
entender: festejado como inédito, é um novo trabalho, é o mesmo projeto de lei
2654/03 com algumas melhorias, é o velho vestido de novo, re-serviço?
Depois das crianças citadas, assistimos
a fila andando. Passou a morte da Isabela, da Joana, do Bernardo, a recém-nascida
jogada na Lagoa da Pampulha, a outra jogada no coletor de entulhos, a
internação do João Carlos, da “vaquinha” como a chamava sua mãe adotiva que
marcava seu rosto com enormes hematomas resultado de socos, o espancamento
letal e esquartejamento dos dois irmãos de 11 e 12 anos pelo pai e a madrasta, o
espancamento brutal de dois meninos, executado pelo pai, e registrado no
celular pelo irmão mais velho, o assassinato do Renan, 2 anos, pelo pai, o
espancamento até a morte de Nicolas, 2 anos, pela mãe e o padrasto, e de todos
os que ainda aparecerão, paulatinamente, na mídia, a fila vai andando. Vale
ressaltar que alguns destes casos já tinham sido denunciados ao Conselho
Tutelar, que os acompanhava. Além destas crianças sacrificadas, as crianças que
ficam anônimas nas suas dores vão continuar sofrendo agressões e violência
dentro de casa. Reside aqui uma questão complexa: a atualização dos conceitos
de público e privado. Seria como argumentou aquele educador em 2006, e,
continuo a ouvir este argumento, esta lei de interdição do castigo físico uma
interferência, uma invasão aos lares e a suas leis próprias?
Estas crianças emblemáticas nos
evidenciam a característica humana: o prazer de exercer a opressão em
vulnerável. E, quanto mais vulnerável, maior é a fonte de prazer para o
agressor. Pais batem em seus filhos, que se tornam alunos-autores de bullying
na escola, e continuam como pitboys a praticar a violência em festas, nas ruas,
movidos a preconceitos, depois, como maridos, batem e humilham suas mulheres,
e, repetindo a cadeia adoecedora, anos depois, aqueles filhos que foram
espancados, passam a espancar seus filhos. A violência psicológica, incluindo
aqui o abuso sexual, praticada contra crianças e adolescentes, não deixa marcas
visíveis, mas marca a mente para sempre. Este é um ciclo que se repete,
monotonamente. Espancado hoje, espancador amanhã. Abusado hoje, abusador
amanhã. Humilhado hoje, promotor de humilhação amanhã.
A Cultura da Transgressão e sua
complementar Cultura da Perversão formam hoje a base do nosso comportamento, o
privado e o público. Na nossa sociedade cenográfica é preciso apenas fazer de
conta, ter uma fachada de funcionamento necessário, sem que seja necessário
sê-lo. Os números, os programas, as falas, são bonitos. Mas não existem. Existem
cerca de 02 milhões e meio de estudantes analfabetos cursando os anos
escolares, até o 9º ano. Analfabeto para ler, escrever e fazer as 04 operações
de aritmética, analfabetos sociais. Se uma criança não precisa aprender para
ser aprovada, ela perde a noção de regra, de lei básica, e perde também a
possibilidade de desenvolver sua capacidade de pensar. O nosso desenvolvimento
cognitivo tem na escolaridade seu terreno promissor. É indispensável que a
escola desperte a criança para o sistema de nutrição de sua característica
epistemofílica. É perverso abandonar crianças empurrando-as para fora do mundo
do conhecimento, assim como, é perverso institucionalizar um valor monetário
pela criança. Transgressão e Perversão se misturam e se beneficiam uma da
outra. Quanto mais transgressora uma sociedade, mais violenta ela é com suas
crianças, seus idosos, seus doentes.
Os pequenos desvios estão sendo assimilados pelas nossas crianças e adolescentes. Não
proporcionamos um critério claro de certo e errado, de limite, de lei, de conseqüente
punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que,
por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa do ego, a identificação com
o agressor. Justificando o comportamento agressivo e culpabilizando a vítima,
invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar o agressor. Não nos
reconhecemos neste mecanismo de defesa? Falta-nos,
a todos, vontade política consistente, conseqüente e persistente. Relativizamos
a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos quanto os
grandes, quando negamos nossa participação, quando nos identificamos com o
agressor, quando negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que
o conteúdo, nós não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e
adolescentes. Não há mágica quando estamos tratando de processos de
desenvolvimento. A permissividade e a tolerância elástica não produzem
estruturação e organização social. A impunidade é alimentada pelo discurso social
da impotência, do desânimo que se converte numa certa excitação pela
barbaridade da nova notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de
mídia dando importância à notícia enquanto notícia. Não paramos para pensar o
conteúdo destas notícias, ficamos na superfície. É impossível esperarmos
punição se nos orgulhamos da impunidade. Alojamo-nos naquele mecanismo de
defesa do ego, a identificação com o agressor, para escapar do medo de
enfrentar o agressor. Culpamo-nos uns aos outros, no entanto, todos, temos
responsabilidade na manutenção e agravamento das diversas formas de violência e
degradação da nossa sociedade. No planalto, no morro, na nossa casa, todos os
dias, a violência é endêmica.
No VIII Congresso Brasileiro do
Instituto Brasileiro de Direito da Família, IBDFAM, o Presidente Dr. Rodrigo
Pereira Cunha ressaltou a importância do momento: a inversão do público e do
privado. O Presidente do IBDFAM chamou a atenção para o aumento da importância
crescente do público, quase um desafio, em inversão revolucionária ao privado. Disse
ele: “Esta nova concepção de
política, a partir das questões privadas, não significa desistir das antigas
questões e ideologias que nos moveram até aqui. Significa apenas uma
reformulação sob a perspectiva de um humanismo que tem a dignidade da pessoa
humana como aspecto central”. E acrescenta: “Os problemas aparentemente privados são os
problemas politicos de hoje: a dívida pública, as questões ambientais etc, não
teriam tanta importância política se o que estivesse por detrás não fosse o
mundo melhor que queremos deixar aos nossos filhos e às gerações futuras”.
Somos cada vez mais muitos, e cada
vez menos um. Nossa identidade é grupal, mas, contraditoriamente, sentimos cada
vez mais solidão em meio à multidão. E continuamos com dificuldade de sentir o
público como nosso. A título de exemplo, é fácil reclamarmos com alguém que
jogou uma latinha usada no nosso jardim, mas não sentimos a mesma coisa se
vemos alguém jogando uma latinha na nossa praça. Nosso jardim. Nossa praça? E,
quando se trata de tratamento dado à criança, é privado, ou público? Podemos
bater quanto quisermos porque é nosso filho? As mães, que batem mais que os
pais, justificam-se: “é meu, saiu de mim”.
Assim, retomemos a lei, as leis.
Somos copiados por outros países, o ECA é brilhante, o DECA, um olhar
especializado. Mas nos comportamos na busca da vantagem egoísta, no vale-tudo
para “ser feliz”, para nos livrarmos de uma raiva. Quando não internalizamos a
noção de lei simples, o não pode, ficamos incapazes de empatizar com o outro e,
conseqüentemente, de nos sentirmos responsáveis pelo que causamos ao outro. A
dita medida disciplinar que serve de justificativa para o uso de castigo
físico, tratamento cruel e degradante não se sustenta. Faz-se necessário o
olhar de cuidado especial, necessidade da criança, que denuncia a patologia: a
Síndrome do Pequeno Poder. A humanidade ainda não é competente diante de seu
impulso agressivo e destrutivo. Violência doméstica, consumo e o tráfico de
drogas, corrupção, milícias de vários tipos, as policialescas e as políticas,
com leis próprias que incluem a pena de morte, pela ausência ou abuso dos
serviços públicos, são perversões humanas que trazem o prazer de “fortes” sobre
“fracos”, o prazer íntimo do exercício da opressão, que produz no agressor a
ilusória, mas prazerosa sensação de onipotência.
O comportamento
empático-responsável intra-familiar é a possibilidade de estruturação e
desenvolvimento saudáveis, e, conseqüentemente, a possibilidade da boa
convivência humana. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e nos
comprometermos com aquilo que vamos dar como resposta, pensando, o mais próximo
possível, em como o outro vive aquele momento ou situação. O outro e não eu.
Esta é uma capacitação, processual e não pontual, que deveria fazer parte do
desenvolvimento saudável das nossas crianças. Nós a perdemos, completamente,
para o egocentrismo com frieza afetiva, nos últimos tempos. A solidariedade,
que é apenas a parte inicial da empatia, surge na tragédia. Muito bonita, é fundamental
para o começo, mas, sabemos, ela se apaga com o apagar das câmeras. Trocamos de
foco e esquecemos sem ajudar a resolver o problema do outro, que também é
nosso. Vivemos um tempo regido por dois cultos. O primeiro, o culto ao egoísmo
narcisista. Não é preciso ser, é indispensável ter e parecer ter, a qualquer
custo. A passarela, o futebol, a mídia de imagem tem ido buscar na infância da
cidade e do interior os seus trabalhadores, pequenos sonhadores explorados
financeiramente pelas famílias e pelos agenciadores. Aqui, o público entrando
nos lares e o publicado do que é intra-familiar, não tem importância. O
segundo, o culto à impunidade que, de uma maneira ou de outra, todos nós
nutrimos, e que retira um dos dois elementos da base da internalização da lei,
a sanção e seu sentido. A sanção é registrada na mente como a conseqüência
daquela falha na regra e na conseqüente responsabilidade. Assim, nossa sensação
térmica de impunidade é cada mais intensa e, portanto, muito difícil de
suportar.
Tomemos como exemplo a Síndrome do Bebê
Sacudido. Pouco conhecida e não detectada nos serviços de emergência ou nas
anamneses, mas todos conhecemos a cena: um bebê de meses chora e a mãe,
irritada o sacode com crescente rispidez até a brutalidade. O movimento de
sacudir feito pela mãe, faz com que a cabeça do bebê seja jogada para frente e
para trás, sem que ele consiga controlar. O cérebro esbarra sucessivamente na
caixa craniana, fazendo com que ocorram inúmeras micro-hemorragias cerebrais.
Logo o bebê cala, fica molinho, e adormece. Por muito tempo. Ou seja, seu
sistema nervoso central tenta se proteger, e se recuperar reabsorvendo os
pequeninos sangramentos, entrando para isso em estado semi-comatoso. Esta letargia
do bebê dá à mãe a sensação de alívio da sua irritação, que, se questionada, se
justifica dizendo que era manha mesmo, tanto que parou de chorar e dormiu. A síndrome
do Bebê Sacudido é o exemplo mais ilustrativo que explicita bem a falsificação
da justificativa de “educativa” da conduta agressiva contra a criança. A mãe
experimenta uma extrema sensação de onipotência, de posse total, diante da mais
absoluta vulnerabilidade do bebê. Qual teria sido a desobediência do bebê que
precisava ser corrigida? Vale ressaltar que a metade das entradas hospitalares
de bebês até 02 anos de idade, deve-se ao diagnóstico de traumatismo craniano.
Os bebês não caem tanto dos berços como respondem mães e pais ao chegarem às
emergências. Assim é também com as crianças queimadas, marcadas, com fraturas, abusadas
sexualmente, humilhadas.
Faz-se necessário explicar o
funcionamento psicológico de uma mãe que sacode violentamente seu bebê para que
pare de chorar. De pronto, somos levados a reagir com indignação. Mas o que
acontece é que a conduta violenta desta mãe é movida pelo seu inconsciente. Ela
acredita que está apenas ensinando para ele que ela é que sabe que ele não está
sentindo nada para chorar, e que isto não é violento, é para ele aprender.
Também não percebe que tipo de sono ele teve em seguida e a sua duração. Por
outro lado, por menor que seja este bebê, ele vai “aprender”, ou seja, este
comportamento da mãe será captado como sinal de alerta para que ele a proteja
deste descontrole. Os bebês, muito precocemente, sentem o limite do descontrole
da mãe, e o marcam com uma espécie de alerta laranja. Afinal, a sua
sobrevivência depende disto. Assim, neste diálogo da relação mãe-bebê, é
inserido um código rigoroso de sobrevivência, do lado do bebê, e de poder, do
lado da mãe. A mente humana tem áreas, aparentemente, contraditórias, que se
devem ao inconsciente. Muitas vezes, em tratamento, chegamos a situações
antigas que foram enterradas e deletadas, sofridas por esta mãe, e que, como
não foram tratadas, permaneceram como verdadeiros aprisionamentos a uma cena de
violência. É a troca de lugar que sempre apontamos, agredido hoje, agressor
amanhã. Inconscientemente, alguém tem que pagar pelo sofrido. A objetividade
não contempla o funcionamento psíquico. Quando a lógica não explica, como é no
caso do sintoma psicopatológico, entramos em terreno que tem razões
inconscientes de difícil compreensão.
A miséria psicológica,
esta forma de miséria que acomete os indivíduos de qualquer classe
sócio-econômica, por adoecimento mental ou por embrutecimento social, se
instala quando o processo de humanização fracassa. E, diante de alguns
comportamentos que somos obrigados pela mídia a tomar conhecimento, a impressão
que nos fica é a de que, por vezes, estamos nos tornando sub-animais. Não há
mais espaço para estes erros. Urge trabalhar para acontecer, com qualidade e
responsabilidade, para implantar uma nova cultura, a da cidadania, e não
sucumbir ao desânimo, à desistência, porque existe uma criança que depende do
que fazemos hoje, da nossa atitude hoje, que não pode ser negligenciada,
abandonada e agredida na sua possibilidade de vir a ser um bom adulto para a
sua futura criança, garantindo assim um crescente processo de humanização das
próximas gerações, com a indispensável sustentabilidade psicológica.
Rio de Janeiro, 25 de novembro de
2011.
Ana Maria Brayner Iencarelli.
<anaiencarelli@gmail.com>
Nenhum comentário:
Postar um comentário