Agosto de 2013.
ABUSO
SEXUAL: A TORTURA QUE SE REPETE
Venho me dedicando a este tema, por
força de várias circunstâncias. Quanto mais avanço, mais me horrorizo. Mas, não
tem mais volta. Macaquinho não vê, macaquinho não ouve, macaquinho não fala, o
desvio do olhar, são atitudes de negligência por omissão. No entanto, são as
posturas de conivência e as de promoção oficial de abuso sexual que me chocam!
Recentemente, fui ao Congresso
Internacional de Psicanálise, em Praga, promovido pela International
Psychoanalytical Association. Abuso sexual contra crianças, violência sexual
contra mulheres, nenhuma conferência, nenhuma apresentação clínica, nenhuma
referência. Voltava no final de tarde muito quente com a pergunta: por que esta
lacuna científica se o tema do Congresso era a dor psíquica? Será que só
existem estas coisas na minha cabeça? Apenas no meu consultório e na minha experiência
na O.N.G. de proteção à criança e adolescente que trabalhei por muitos anos, há
este tipo de sofrimento? E logo me vieram os últimos casos, agora já são os
penúltimos ou antepenúltimos casos de estupros múltiplos de mulheres, seguido
de morte, em via pública, publicados pela mídia, seguidos de grandes
manifestações de revolta e indignação da população não só feminina. Tive
dúvida, tinha acabado de ouvir uma psicanalista indiana em grande exposição com
um renomado mestre, discussão que cabia claramente, pelo menos a dúvida sobre
um abuso sexual incestuoso. Nada havia sido dito.
No hotel, a televisão ligada à procura de
noticiário em língua que pudesse compreender e me tirasse daquele mal estar
difuso, me deparo com uma campanha sobre abuso sexual. Havia um homem, seu
rosto maduro, o tempo mostrando suas marcas. O olhar era de uma pessoa boa,
serena, agradável, “normal”. Alguma coisa ia sendo dita, em tcheco, e algo
diferente aparecia neste olhar. Um tom desejoso, sedutor, compulsivo talvez,
mas tudo era muito sutil. As palavras iam sendo ditas e o perfil do tronco de
uma garotinha, vestindo azul claro, cintura que subia para alojar uma barriga
de uns oito meses de gravidez, o braço que caía ao longo do corpinho ainda
infantil, terminava no ursinho de pelúcia pendurado na mão. Voltava então à
imagem do homem com a mesma cara boa do início, e algo era falado. Terminava. A
barriga e o ursinho. Imagem inesquecível.
O contraste entre a negação de
existência e a obviedade da existência desta perversão humana invadiu a minha
mente. O que ficou foram perguntas. Por que a Psicanálise e seus seguidores não
olham para esta perversão, não estudam esta perversão, não tratam clinicamente
esta perversão. Responderiam logo, perversão não tem jeito. Mas, os prejuízos
dela numa criança, tem sim. Há que ser re-organizado seu sistema de afeto, de
confiança no outro, trabalhado seu legítimo ressentimento da vida em longo
tratamento psicológico. Por que não existem políticas públicas que atendam à
legião de marcados pelo abuso sexual? Responderiam também logo, não temos
assistência eficaz nem para emergências, cirurgias, enfartes, doenças mentais,
adicção, doenças infecto-contagiosas, etc., etc., etc..
Em novembro passado fui chamada para
uma audiência individual com uma Ministra que me pediu para elaborar um projeto
de atendimento psicológico a crianças abusadas que pudesse ser aplicado em todo
o nosso território. Uma alegria que mal conseguia conter, diminuir a dor
psíquica destes 25, 30, ou 40% de crianças que sofrem abuso sexual. Não se
sabe, o segredo obtido junto à criança, pelo medo das ameaças feitas, não
permite uma melhor apreensão do tamanho do grupo atingido. Voltei em fevereiro
em outra audiência, e lá deixei o projeto piloto, que, se iniciando em três
capitais, se multiplicaria na capilaridade do sistema já implantado. Março,
abril, maio, junho, julho, agosto.
Em outubro próximo estou lançando um
livro, “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”, e tanto mais
já tenho a dizer. A todo momento, me deparo com o que mais me assusta: a
incompetência de profissionais que detém o poder de decisão sobre a vida das
crianças abusadas. Já se conseguiu uma maior consciência de que abuso sexual é
errado, de que a criança não esquece, de que guardar segredo não apaga o mal.
Já foi conquistado o conceito jurídico de que a criança é sujeito de direito,
com voz. Já há um estado que possui sala de D.S.D., Depoimento Sem Dano, em
todas as Comarcas, respeitando a necessidade de proteção e cuidado da criança
abusada. O curioso é que foi um Juiz, M.M. Dr. Daltoé, e uma Desembargadora, M.M.
Dra. Maria Berenice, que patrocinaram e garantiram a instalação destas salas. Nosso
maior agradecimento. Eles entenderam o deplorável estado traumático da criança.
A ausência dos profissionais que se ocupam do cuidado psicológico nesta luta é
compatível com a fragilidade de profissionais da Psicologia Judicial que nutrem
equívocos danosos. Há excelentes Conselheiros Tutelares, excelentes profissionais
na área da revelação, avaliação, e perícia psicológica. Há excelentes Promotores
e Juízes. Mas há uma deficiência de formação de competência, de gabarito para
que haja uma compreensão de questão tão delicada. Entre estes fracos profissionais,
o medo de errar justifica que a criança pode ser sacrificada no caso de dúvida.
O conceito psicológico de pai tem sido entendido apenas em único sentido, é
importante o pai para o desenvolvimento da criança. Sim, claro. Mas o pai que
abusa sexualmente de um filho ou uma filha, está rasgando seu título e sua
função que nunca tinha sido exercida. O fator biológico isolado como
determinante, caducou. Em tempo em que o pai é mais do que nunca uma suposição
que pode estar num laboratório, ou, em que há registro de criança onde constam
dois pais, casal homoafetivo, ouve-se o argumento machista e ultrapassado de
que pai é pai e tem garantido seus direitos.
Para as mães que, exercendo seu dever
de proteção, denunciam um abuso praticado, há o terror da punição por alienação
parental, e conseqüente perda da guarda da criança. Os laudos psicológicos são
confeccionados por peritas de confiança de Juízes, que desprezam os laudos de
profissionais de notório saber, alegando que estes laudos são pagos pela parte.
Mas as Peritas Judiciais não recebem pagamento pelo trabalho realizado? Os
Juízes também recebem seus salários, então, por que a insinuação de que os
profissionais assistentes técnicos estão vendendo pareceres corrompidos? A
dignidade e a respeitabilidade profissionais são conquistadas pela seriedade de
cada trabalho realizado. Cada um.
A impunidade reina porque não são
usados os métodos corretos e reveladores quando se pesquisa uma suspeita. O
ranço da prova do crime, que neste campo não se aplica, é substituído por
certezas preconceituosas e infundadas, ditas em ambigüidades inconclusivas. Difícil
de entender, sei. O abuso sexual é um crime quase perfeito. O abusador como
psicopata não deixa rastro, como excelente manipulador, é só a palavra da
criança contra a dele, que em geral é alguém acima de qualquer suspeita e,
detalhe, devotado pai daquele que ele abusa. Claro, é seu objeto sexual. Os
abusadores gozam de privilégios, enquanto as mães cuidadoras que denunciam
gozam de ameaças e engessamentos. Tudo se torna prova de alienação parental. Lamentável,
pois este artigo da lei é de imensa importância para a proteção de outras
crianças. Blindados pela própria justiça, os abusadores seguem protegidos, se
divertindo com a mumificação daquelas que tentam proteger a criança abusada.
Neste caldeirão, é muito freqüente que ainda pratique o Backlash, movimento
internacional já estudado há mais de 15 anos, processo junto aos Conselhos
Profissionais contra os técnicos especializados que ousaram relatar a revelação
de abuso feita pela criança. Cada vez mais este número é maior, em relação
direta com o decréscimo dos técnicos, psicólogos, psicanalistas e pediatras,
que aceitam trabalhar com a Assistência Técnica, por medo dos processos,
abandonando a criança. São muitos profissionais que estão respondendo processos
por terem escrito o que lhe foi comunicado pela criança vitimada.
É estarrecedor ver um abusador de um
filho pequeno ser inocentado, apesar de seu relato repetido dos abusos
cotidianos sofridos, porque quem sentencia justifica sua convicção por ouvir
seu coração e olhar bem nos olhos e nos gestos, e, assim, ter a certeza que a
criança estava mentindo. Desconsiderando os conhecimentos do especialista,
escolhe a psicologia do senso comum, aquela que não está escrita em lugar
nenhum, cheia de certezas. Ingênuo pensar que um psicopata escreveria na testa
ou deixaria algum indício à mostra de que é psicopata. Este é um diagnóstico muitas
vezes difícil até para os especialistas. As perversões são mantidas a sete
chaves. Alguém conhece um necrófilo? Certamente conhece, mas não sabe que ele o
é. Existem muitos. Assim também com os pedófilos.
O que acontece é que no lugar de uma
sala de D.S.D. encontra-se uma psicóloga judicial que obriga uma criança
pequena a uma acareação com o pai abusador. Desconsiderar a tradicional ameaça
verbal feita pelo abusador a sua vítima, se você falar para alguém eu mato a
sua mãe, presente em 10 de cada 10 casos de abuso, é se atribuir um poder
divino de que a criança se sentirá completamente segura para repetir a denúncia
ali diante do pai e de uma pessoa desconhecida, a perita, realizando o milagre
da garantia de que o pai não vai matar a mãe, terminando instantaneamente com o
terror já implantado na mente do pequeno sexualmente torturado. Basta um olhar,
apenas um lance de olhar, e o abusador reinstala o medo na mente da criança e
restabelece a dominação sobre ela, porque é reativada a onipotência que ele
implantou pelas ameaças feitas e pela opressão sofrida. Obrigar uma criança a
falar o que aquele pai ali na sala fazia em seu corpo, e não satisfeita com a
resposta, pressionar para que a criança mostre ao vivo como era o abuso, é uma
verdadeira aberração técnica e uma crueldade humana. Desconhecer os
instrumentos específicos e o procedimento adequado para a revelação do abuso
sexual, substituindo esta especificidade pelo padrão adultiforme do inquérito
no imperativo verbal, prática da indução intencional, na frente de seu
agressor, fere os direitos básicos da criança. A tortura tem várias faces. Exigir
a encenação do abuso é cometer crime de abuso, acrescido de exibicionismo e
voyeurismo, tudo sob os auspícios da Justiça. A pornografia infantil na
internet, por exemplo, é voyeurismo, e é crime. A violação da mente da criança por
um profissional que deveria avaliar é a revitimização chancelada por
procedimentos ditos técnicos, mas tão perversos quanto o próprio abuso. E, o
laudo que decorre desta perversão, irá decidir o processo. O que define um
Perito designado é o cargo de confiança, e não a competência. Mas, quais seriam
os critérios desta confiança?
As histórias de abuso sexual são
muito bizarras. A perversão é o país que dá nacionalidade às bizarrices e
aberrações humanas. Muitas vezes quando uma criança revela um abuso ela nos
apresenta um adulto que, até aquele momento, gozava de respeitabilidade, e que,
com a revelação, de repente surgem os comportamentos ocultos de “non sense”,
absurdos, as manias estranhas. O primeiro movimento é de buscar um mecanismo de
defesa pelo horror que invade a mente, abandonando a criança e jogando-a de
volta à tortura do prazer daquele adulto pervertido. Assim, não raro, alguém
que é escolhido para ouvir uma revelação deste tipo de perversão contra a
criança, joga de imediato a autoria para a imaginação infantil. É a saída mais
rápida para se livrar da angústia insuportável da dor psíquica de uma criança. Mas
é o psicanalista especializado, gabaritado neste tema, que pode investigar a
veracidade e a repercussão do que está sendo revelado. O preconceito da mentira
da criança só evidencia a ignorância do conhecimento dos estudos que apontam
para um índice de 6% de mentira após os 10 anos, com o claro objetivo de ganho
secundário. Até os 7 anos uma criança não inventa uma mentira com conteúdo
sexual por não ter ainda desenvolvimento cognitivo suficiente para tal. Só fala
de erotismo quando teve contato direto, vendo, ouvindo e quando teve o seus
genitais tocados por alguém com 5 anos ou mais que sua idade, ou quando tocou
partes erógenas do corpo de um adulto que a dirige, como um cineasta. A criança
não tem capacidade de fantasiar sem estes estímulos. É só ler nos livros que
tratam disto.
A cultura da transgressão é endêmica.
E, quanto mais transgressora uma sociedade, mais abusados são os seus
vulneráveis. Mas é devastador conviver com a prática da transgressão
institucionalizada. Esta é perversa. Pais/abusadores rasgam seu título formal,
para buscar através de nova perversão, a falsa alegação de alienação parental,
e como exímios psicopatas que são, arrastam Operadores de Justiça que, por sua
vez, rasgam o E.C.A., garantindo proteção ao abusador. As políticas públicas
inexistem, não ultrapassam uma única propaganda na televisão por alguns dias
que surge a cada seis ou oito meses, talvez mais, o que está muito longe de
atingir um objetivo de cultura de cuidado com a saúde de nossos pequenos. A
cidadania só será alcançada quando todos tiverem o compromisso vivo de cuidado
e responsabilidade com a criança. Quando tivermos todos e cada um,
responsabilidade empática. Este compromisso internalizado fará com que a
criança possa repeti-lo sucessivamente, construindo uma cadeia saudável
psiquicamente. Esta é a sustentabilidade psicológica. O que temos hoje é a
repetição da perversão internalizada. Abusado hoje, abusador de algum tipo,
amanhã.
Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Criança e Adolescente.
Artigo publicado pelo site A Voz
do Cidadão. Agosto de 2013.
Olá, Ana obrigada por suas reflrxões..trabalho em educação e está é uma realidade. Estou lendo "infância interrompida" e sinto-me questionada sobre a sanidade humana. Vou em busca de seu livro...que vc continue a colaborar para que a vida de muitos se torne melhor...
ResponderExcluirCom atraso, obrigada pelo incentivo, estecaminho é duro e frustrante. O livro está à venda na Livraria da Travessa, no Rio, e a Editora pode lhe indicar outros pontos Abraço, Ana Maria.
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