Setembro de 2013.
ABUSO
SEXUAL: A TORTURA QUE CONTINUA SE REPETINDO
É inacreditável ouvir uma psicóloga de
inteligente respeitabilidade, em grande rede de rádio, afirmar para uma mãe que
ficasse calma, que não se preocupasse porque seu filho já sabe se defender do
pai, e que isto, abuso sexual, é uma coisa da vida, normal. Ela estava
respondendo uma mãe cuidadosa que perguntava sobre sua preocupação com o filho
de 08 anos que havia revelado o abuso sexual praticado pelo pai, desde que ele,
o menino, era pequeno. A mãe buscava uma orientação porque as visitas com o pai
iam acontecer, como deveria fazer, a quem buscar, como proceder.
Ouvir que uma criança, que foi
abusada desde pequena, já sabe se defender de seu pai abusador é estarrecedor, mesmo
quando este absurdo é dito por um leigo. Empurrar para a própria vítima a culpa
e a solução do que sofreu é desampará-la no momento em que mais precisa, e,
infelizmente, muito mais comum do que se imagina. Uma mulher adulta, eu mesma, por
exemplo, a mãe desta criança ou a psicóloga que está afirmando isto, me
sentiria tranqüila ao conviver com um parente que tivesse me estuprado,
recentemente? Então, por que exigir isto
de uma criança? Como ela já sabe se defender de um psicopata que o usa como
objeto sexual?
Senão vejamos. Por que um elefante ou um
leão obedece ao seu domador, sendo ele tão menor que o animal? Vale só lembrar
que como os animais, o menino também foi oprimido desde pequenino. Continua em
vigor em sua mente a sua impotência diante de um adulto forte a quem ama e deve
obediência. Crianças abusadas. Como animais domados para demonstração de poder
do serzinho humano que tem o chicote na mão, o concreto ou o verbal da ameaça
terrorífica, não tem nenhuma condição de se defender das ordens do “poderoso
dono”. Se fosse tão simples se defender aos 08 anos, aquela autora, abusada
desde os 07 anos, que escreveu sua história não teria tido um filho do próprio
pai aos 15 anos e outro filho do meio-irmão aos 17 anos.
Ao longo da minha experiência como
psicanalista, tenho visto homens e mulheres de 30, 40, 50 anos, trazerem seus
prantos viscerais, seus tremores incontroláveis, suas tonturas imperiosas, enfim,
as várias respostas vago-simpáticas ao contato com seus abusadores da infância.
O medo permanece igual, como que congelado pelo poder aniquilador anunciado
pelo abusador para manter o abusado como seu segredo protetor. Quem tem
responsabilidade empática consegue dimensionar este desastre interno.
Tratar o abuso sexual, crime hediondo
escrito na lei como estupro a vulnerável, como coisa normal, da vida, é minimizar,
é banalizar o crime e ficar conivente com o abusador. É ignorar o conceito
contido na lei, achando que só é estupro quando há rompimento de vagina e ânus.
É dar as costas ao vulnerável. Nossos deputados também nos deram as costas para
transgredir institucionalmente, escondidos pelo voto secreto, ou pela saída
estratégica do plenário, mantendo os direitos de um deles, hoje hóspede de uma
penitenciária.
Tomo a liberdade, como especialista que
me tornei em tratamento de crianças e adultos abusados na infância, de
responder às mães que vivem esta angústia. Seu filho de 02, 04, 06, 08, 12
anos, ou por vezes pelo resto da vida, não consegue se defender do pai abusador.
Exigi-lo é crueldade. A Justiça demorará anos e anos para concluir um processo,
quase sempre como inconclusivo. O abusador goza de todos os direitos, nunca é
condenado por este crime. Facilmente, confirma-se, institucionalmente, a
inversão de papéis da cena do abuso, e a criança, que revela, é acusada de
mentir. Hoje, arrumaram mais um artifício técnico, a construção cognitiva, para
desviar o olhar da palavra da criança, já considerada juridicamente sujeito de
direito. Nenhuma criança pequena formula uma construção cognitiva de conteúdo
sexual se não tiver tido contato concreto com a sexualidade de um adulto. Este
conceito teórico está sendo usado, ou melhor, mal usado em laudos para embasar
a precariedade de competência na revelação do abuso sexual junto a crianças.
Impressionando leigos no assunto, induz a decisões jurídicas equivocadas.
Continua a ser pedida a prova de um
crime que não deixa vestígio, crime quase perfeito, praticado por alguém que
está sempre acima de qualquer suspeita. É palavra da criança abusada,
aterrorizada pelas ameaças feitas, frente à palavra do abusador, psicopata
manipulador portador de perversão. Operadores de Justiça continuam a se
equivocar praticando a revitimização sob a alegação de que é bom para a criança
ter convívio com o pai, neste caso exatamente aquele que rompeu o marco
civilizatório da interdição ao incesto. Ingênuo pensar que um pai/abusador
deterá sua compulsão sexual perversa porque está no regime de visita
supervisionada, ele conseguirá um segundo, um subterfúgio, um momento de
descuido por ele provocado, e fará parte do abuso, ali mesmo. Psicopata não
teme a lei, se temesse não seria psicopata, isto está na essência desta
patologia, seu esporte favorito é desafiá-la cada vez mais, para ter cada vez
maior a sensação secreta da onipotência. Mas as pessoas que devem proteger não
conseguem imaginar tamanha ousadia. Colocar esta criança que sofreu várias vezes
a tortura sexual do prazer exposta a quem o fez, aquele que tem o título civil
de pai, é destruir oficialmente qualquer possibilidade de reconstrução afetiva
da figura masculina, figura representante da lei no desenvolvimento psicológico
saudável e, consequente, saúde social. No entanto, o que se vê é que na dúvida,
sacrifica-se a criança, acreditando-se que ela já sabe se defender, ela vai
dizer não para o pai. É tão simples... Será mesmo? Ser abusado é para sempre, uma
tatuagem na alma, ser revitimizado institucionalmente é matar de imediato a
cidadania.
Ana Maria Iencarelli. Psicanalista de Criança e
Adolescente.
artigo publicado pelo site www.avozdocidadao.com.br
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