FAMÍLIA E ESCOLA: PAPÉIS E FUNÇÕES
Ana Maria Iencarelli.
Pai, mãe,
filho, filha. Formato simples, mas hoje quase inexistente. Professora, alunos,
sala com carteiras para os alunos, diretora. Formato também simples, mas também
quase inexistente. O formato da família mudou, se multiplicou em várias, se
recriou, mas a família não acabou. Hoje temos mais de 100 tipos de família, e
não mais o grupo que surge da união amorosa de um casal. Casal também mudou,
pode ser homo-afetivo. As novas modalidades incluem o pedido judicial de um
registro de filhos de duas mães e pai desconhecido. A sexualidade mudou. Temos
na adolescência a virgindade como vergonhosa ou sendo leiloada pela internet.
A escola
também vem mudando. Dividiu-se o conceito “escola” em dois grupos: o que tem
computador e o que não tem computador. O grupo que tem computador, instalações
e tecnologia, incluindo câmeras que podem ser acessadas pelas mães à distância.
Mesmo com todas estas ofertas, as crianças que estudam nestas escolas são
verdadeiros mini-executivos: fazem cursos de inglês, alemão, natação, judô,
futebol, balé, informática, komon, equitação, ginástica olímpica, preparação
para comercial de televisão, e, na época das provas, aulas particulares. As
aulas de artes e de música estão um pouco fora da moda.
O grupo de
escolas que não tem computador, muitas vezes, não tem as instalações mínimas
necessárias. Nem banheiros usáveis, nem carteiras inteiras para sentar, e, às
vezes, nem telhado em todos os lugares, e, muitas vezes, nem professores em
todas as disciplinas. Uma parte das crianças, de 7 a 14 anos, matriculadas
nestas escolas soma os mais de 2.1 milhões de analfabetos, não sabem ler nem
escrever, do total de 2.4 milhões de brasileiros analfabetos.
Papéis e
funções se avizinham e se completam, quando cumpridos. Organizadores, eles
orientam. Satisfazendo as necessidades, elas promovem o desenvolvimento
psicológico saudável.
Quando
pensamos no conteúdo da família e da escola as dimensões crescem,
assustadoramente. Tanto porque as funções destas duas micro-sociedades são
complexas e extensas, quanto porque a seqüência família-escola é responsável
pela qualidade do ser social que nos tornamos. Precisamos pensar em qualidade,
e não em processo compulsório de crescimento, de acumulação. Não é suficiente
matricular uma criança, e esperar que, no final das séries, quando diplomada
ela será alguém que pensa, que produz, que tem autonomia, que é capaz de fazer
suas escolhas, que, portanto, vai conviver bem com os outros, cumprindo seus
papéis e funções na vida adulta. Qual será, por exemplo, a conseqüência
psicológica da não aquisição da leitura e da escrita, tendo ido à escola para
isto durante 9 anos? Qual será, por exemplo, a conseqüência das câmeras ligadas
à internet das escolas para tranqüilizar as mães? E depois da tranqüilização? Este
não pode ser o papel da mãe, de fiscal desconfiada, não pode ser o papel da
escola, o de provar inocência antecipadamente, obstruindo assim a construção da
relação escola-família. A criança, aquela
que deveria ser o ponto de promoção de autonomia, se dá conta que as novidades
que, com esforço, vai contar para a mãe, ela já sabe e a corrige em alguns
detalhes. Isto pode parecer irrelevante, mas nos serve de exemplo do atual estado
de desmantelo dos papéis e das funções da família e da escola. Senão, vejamos:
no momento em que a separação deve ser vivida em toda a sua dimensão de
impotência e de processos de substituição das figuras parentais, tanto criança,
quanto mãe, tem este difícil, mas necessário processo abortado. Uma mãe
acredita que está cumprindo seu papel dando “escola” para o filho, e fica na
impotente esperança que no próximo ano ele vai, com certeza, se alfabetizar. A outra
mãe não precisa se preocupar em estabelecer uma relação com as pessoas que
deveria ter escolhido para lhe substituir junto à criança. E, esta, alimenta a
fantasia de onipotência da mãe, que tudo vê, tudo sabe e tudo pode, e faz seus
arranjos mentais para negar a dificuldade saudável da separação. Para um grupo,
a “escola”, enquanto representante institucional, esmagando qualquer tentativa
de questionamento, confirmará, mais uma vez, a enorme impotência. Para o outro
grupo, a não confiança, alimentada pela desconfiança forma a base desta
distância que reduz a possibilidade de relação afetiva mãe-escola a uma relação
utilitária. Esta sim, está muito em voga.
E, todos os itens da estruturação dos afetos, processo difícil, ficam
esvaziados. A desvalorização da empatia no discurso do “cada um que se vire”,
“você não tem nada com o outro”, e, o clássico, “não fale com ninguém”, empurra
a criança no isolamento e no medo do outro, fazendo com que ela busque se
acalmar alimentando o seu narcisismo. Há uma simplificação e uma redução que
levam à deformação das relações afetivas. A defesa deste discurso se aloja
sempre na questão da segurança, realística, claro, mas que não responde à
amplitude da questão. No nosso tempo de modernidade líquida, como nos
conceituou Bauman, os vínculos afetivos perderam sua consistência e foram
liquidificados. Escorrem e se espalham superficialmente, tomam formas imediatas
que também se desfazem em um segundo. Um adolescente tem no número de “amigos”
adicionados no seu Orkut um bom exemplo deste fenômeno atual. Este mesmo
veículo, o Orkut, pode ser uma arma que vai destruí-lo afetivamente. Tocamos um
ponto muito atual que diz respeito aos papéis. Hoje, dispomos de várias formas
de ocultamento de responsabilidade e, portanto, de várias formas de realizar
nossas perversões, ou consentir, silenciosamente, que sejam realizadas. Esconder-se
na virtualidade contrasta com o sucesso da programação das férias nacionais,
cuja proposta é a exposição exaustiva de um grupo de pessoas que passam a ser
julgadas e eliminadas pelo público, que passa a se sentir profundo conhecedor
das personalidades expostas. Por um lado ensina-se às crianças que não devem se
importar, não devem se solidarizar com os seus colegas, por outro lado,
ensina-se que devem se importar e se solidarizar com desconhecidos que exibem e
vendem sua intimidade.
Assistimos impávidos à escalada progressiva
da violência. Violência física, violência sexual, violência social, violência
da mídia, violência do tráfico, violência política, violência institucional. A
violência é endêmica. Mergulhadas no medo, nossas crianças sofrem e tentam se
defender, se identificando com os violentos. A prática de bullying é
minimizada, principalmente pelos adultos da escola, assim como os
alunos-testemunhas são cada vez mais silenciosos e omissos, como é omissa aquela
diretora que desencoraja e até ameaça a professora que, tendo sofrido bullying
de um aluno, quer ir prestar queixa. Ela, a professora, acaba por também
calar-se. O trabalho de redução do bullying é feito com o enfrentamento através
da escuta e da comunicação de sensações e sentimentos, envolvendo o
aluno-autor, (quando é um aluno), o aluno-alvo, alunos-testemunhas, professor,
pais, coordenadores, funcionários, enfim aquele universo social implicado,
porque é preciso conectar-se com todos. Mas, conexão hoje, só a digital.
Dentro deste
estado, que tem sido intenso e crescente, o mecanismo de defesa que, mais
freqüentemente, é utilizado é a identificação com o agressor. Como o medo é
insuportável, a desistência é crescente e inevitável. A desilusão chega antes mesmo
da aquisição da capacidade de fantasiar e da saudável ilusão da infância. Não
há lugar para a necessária fantasia e a brincadeira de faz de conta. Afinal a
realidade violenta inunda o imaginário, esquecendo que, para a criança, o mais
importante é fantasiar.
A banalização
da agressão tem produzido uma espécie de anestesia emocional. Também a
banalização da transgressão, igualmente danosa, tem deixado a confirmação da
impunidade, hoje, alçada a “orgulho nacional”. Internalizar limites, regras e
leis neste estado de desordem é uma missão impossível, quando as funções de
estruturar, organizar e promover o crescimento responsável não são exercidas
pela família e pela escola.
Papéis e
funções estão, na melhor das hipóteses, em branco na família e na escola,
porque, se considerarmos a “normalidade” dos comportamentos desviantes e
perversos praticados, observaremos que a desejada estruturação saudável do
desenvolvimento psicológico, não consegue acontecer. O desenvolvimento da
criança está sendo deformado. Privada da aquisição da capacidade de empatia, proibida
de fantasiar pela invasão de uma realidade violenta, encarcerada em seu
narcisismo primitivo, incentivada em suas respostas agressivas, desconhecendo
limites e regras sociais, a nossa criança é a maior vítima de enorme violência
psicológica. Nesta mistura de miséria psicológica com as mais variadas formas
de violência escorre um caldo, escuro e fétido, não apenas de sub-humanidade,
mas de sub-animalidade.
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