Respeitar
o brincar da criança, é fundamental - Parte II
A
nossa inteligência nasce de descargas gestuais descoordenadas. Daqueles
impulsos espasmódicos surge o estímulo sonoro ou tátil que será buscado por
repetição. Inicialmente, estes movimentos continuam sendo descoordenados, mas a
insistência do bebê em procurar aprimorar os movimentos para reencontrar a
sensação do chocalho, não mais por acaso, mas por intenção. É a
intencionalidade nos movimentos motores, o uso de um movimento para obter um
estímulo, que atesta o nascimento da inteligência.
Com a destreza melhorando, o bebê consegue
tornar mais complexa a sua exploração do seu entorno. Nesta direção do
desenvolvimento, os movimentos repetitivos ganham um componente relacional. Surge
o brincar. Experimentar o “deixar de existir” e o “voltar a existir” na
brincadeira de esconder o rosto atrás de um de seus paninhos que o adulto
propõe com a simples pergunta “cadê o nenê?!”, e a alegria salta barulhenta.
Este é o primeiro brincar e se estabelece na relação entre o bebê e um adulto
preferencial.
Parece um comportamento apenas engraçado,
só uma nova gracinha. Mas, esta brincadeira é muito importante no
desenvolvimento cognitivo e afetivo. A conduta do “cadê o nenê” amplia o
movimento motor, introduzindo o tempo de espera atrás do anteparo/paninho, e a alegria
do voltar a ver o outro. Há uma interiorização da experiência agradável, com
uma representação mental, que dará lugar à função simbólica. Está fundado o primeiro
jogo simbólico, em linguagem gestual.
Este
é o início do período pré-operatório do desenvolvimento cognitivo. Foi
denominado por Piaget, de Função Semiótica o conjunto de 5 condutas que avançam
na direção da capacidade de simbolização, quais sejam: a imitação diferenciada,
o jogo simbólico, o desenho, as imagens mentais e a linguagem. A Função
Semiótica inaugura a compreensão e uso do indício, do símbolo e do signo, este,
o signo, tem na aprendizagem escolar, um pouco mais tarde, sua ampliação,
porquanto as letras, palavras e algarismos são a representação arbitrária
convencionada. Ou seja, convencionou-se no ocidente, por exemplo, que as letras
do alfabeto têm o desenho reconhecido por todos, e correspondem ao som que as
fundamenta. Foi uma decisão de representação arbitrária. E esta cadeia de
condutas que contempla os conceitos de indício/sinal, símbolo, e signo, vai
tornando a experiência relacional cada vez mais aprimorada.
Este processo de interiorização se faz em sua
maior parte pelo comportamento de imitação. Aquela cena, que quase todos viram,
da criança chegando à sala com os sapatos do pai ou os da mãe, caminhando com
dificuldade pelo esforço de carregar nos pés calçados tão maiores, retrata bem
uma série de pontos afetivos. O momento mostra o desejo saudável de
identificação através da imitação. Palavras, gestos, preferências, são a
comunicação deste processo de interiorizar aquela figura afetiva, pela
identificação.
Nossos avós diziam que se ensinava com
exemplos, não com palavras. Esta é uma maneira de falar da importância da
imitação. Este comportamento constrói uma grande parte do desenvolvimento, seja
cognitivo, motor, linguístico, ou afetivo, de cada um durante a infância. Mas
deve ir abrindo espaço para a subjetividade própria numa mistura harmoniosa e
saudável. A adolescência chega para dar um corte nos modelos “copiados” que
fizeram a imitação na infância. Para o adolescente, nada daquilo serve, ele “descobriu”
o melhor de tudo. E isto, mesmo que não muito agradável de acompanhar, é muito
necessário para a construção de sua personalidade. Com a maturidade, ele vai
faze as pazes com muita coisa que rejeitou na adolescência, mas já terá
apaziguado impulsos, muitos movidos à transformação hormonal do crescimento,
fazendo com que seu medo de continuar criança, dependente da aprovação dos
pais, tenha se dissipado um tanto.
No entanto, por vezes, os adultos apelam
para o comportamento imitativo. O medo da rejeição é um fator que influi muito
em momentos que irá contrariar seu grupo. A imitação traz uma espécie de
blindagem por ficar com a ilusória sensação de proteção dos seus pares. E a
regressão é uma saída para a insegurança que surge, principalmente, em
situações em que há uma radicalização, uma pobreza de reflexão do ou isto ou
aquilo.
Na prática de bullying entre crianças,
observa-se a conduta de imitação dos alunos testemunhas, pelo medo de
contrariar o autor das agressões. Esta é uma atitude que evidencia o medo, a
insegurança, e a inautenticidade. O autor de bullying exerce esta intimidação,
explícita ou velada, entre o grupo, por vezes com um simples olhar que anuncia
sua violência contra quem não ficar do seu lado. Este fenômeno reaparece
durante a vida toda em pessoas que carregam sintomas leves ou moderados de
estresse pós-traumático porque sofreram na infância com situações opressoras.
São os prejuízos permanentes da irresponsabilidade dos deveres de todos, e do
Estado, através das violações de Direitos de Crianças.
A capacidade
de representação, já que, como nos ensina a Filosofia, a coisa em si não pode
ser tocada, é construída em processo longo que por contiguidade, por analogia,
ou por convenção arbitrária habilita, gradativamente, a criança neste contínuo
da experiência cognitiva, afetiva e mnêmica, que dá voz e vozes ao estar no
mundo. E isso tudo começa no “cadê o nenê?!”
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