O QUE DÓI
A
polêmica sobre certo gênero de música está lançada. A coreografia também está
em questão. Sons, palavras, gestos, são discutidos, imitados e adotados. Mas,
sons, palavras e gestos, vão produzindo uma contaminação própria da nossa época:
a lei do consumo. A zoologia entra em voga e, vorazmente, consomem-se tigres,
cachorras, potrancas, sem nenhum critério de higiene sanitária. Mas não venho
para defender os animais, estes tem muitos protetores, e sim as crianças e
adolescentes, enquanto especialista em saúde psíquica deste período em que o
ser humano opera seu desenvolvimento.
Começam
a surgir, em tempo, incômodos com relação ao gestual e aos conceitos contidos
em músicas que andam na moda. Aparecem os primeiros sinais de uma certa
inquietação movida por posições feministas, anti-machistas, conservadoras,
etc., etc., etc. Por outro lado, posições
pseudo-libertárias bradam até
pelos sintomas sado-masoquistas, como se fossem saudáveis. E ainda, a turma que
está lucrando, financeiramente, também começa a se preocupar, pensando que
querem “queimar” este filão, e defendem-se dizendo que são boatos o que circula
sobre sexo e violência. Boatos aliás, que nascem após nove meses, crianças
filhas de crianças de 15, 14, e até 12 anos, geradas em cantos escuros ou em cantos claros, explicitamente, na “dança
das cadeiras” de bailes super-lotados.
Em zona
“nobre” da cidade, adolescentes ainda muito jovens bebem, fumam, tomam ecstasy,
cheiram lança. E assistem a cenas explícitas de violência quando um pobre
garoto medroso, mas cheio de músculos deformados pelo uso de esteróides
anabolizantes, as bombas, decide, por motivo fútil, eliminar um outro pobre
garoto distraído ou ingênuo nas regras espartanas da “night” carioca. O sangue
é obrigatório nestas cenas de violência explícita, que deixam lesões, algumas
irreversíveis, e, por vezes, trazem a morte para a festa. Há várias outras
modalidades de violência praticadas nestas festas. Entre elas, gostaria de
destacar aquela que é executada quando um desses musculosos decide “ficar” com
uma garota e ela não aceita: ele lhe dá um soco na cara. O que deveria ser uma
proposta de prazer é, instantaneamente, transformada em violência.
Talvez
alguns pensem que estou dramatizando, exagerando, que seja de alguma seita
religiosa contra a diversão e o prazer, ou que estou fazendo uma maldade com os
pais e os filhos, os primeiros porque não sabiam destas coisas e ficaram
horrorizados, e os segundos porque vão ser prejudicados não podendo mais sair
no próximo sábado. Não é, em absoluto, isto que pretendo. Faço parte desta sociedade,
e, de alguma maneira, sinto-me também responsável pelo que está acontecendo e
pelo que penso vir a acontecer. No entanto, quando ouvimos o noticiário, ou o
relato de alguém, temos tendência a
sentir como muito distante de nós, a sentir estranheza, pois afinal se não
aconteceu com um de nossos filhos, estes fatos não conseguem nos atingir por
mais de alguns minutos, tempo suficiente para se deletar mais uma das inúmeras
informações que sofremos por dia . São tantos os casos, tamanha a freqüência,
inúmeras as modalidades, que parece se tornar comum, e, aqui está um dos problemas
que gostaria de abordar: já nos acostumamos. Não dói mais. A banalização da
violência e do sexo é a maior das violências que está a nos destruir. E
banalizamos.
Caminhamos a passos largos para um caos social onde não haverá mais
regras, não haverá mais sentimentos, não haverá mais “humanicidade” –
neologismo que arrisco para definir um certo sentimento de pertinência ao que
há de mais humano em cada um de nós, e que nos une a quase todos. E neste estado de não-direito,
tudo pode. A perversão é a marca mais prestigiada das relações que deveriam ser
afetivas e se tornaram descartáveis. Os modelos identificatórios são os ditados
pela mídia sob as leis do consumo descartável. É nesta perspectiva que se
insere a valorização da aquisição de cada nova “dancinha”, percorrendo em pouco
tempo um caminho que, partindo do simbólico (há alguns anos), foi se
animalizando em uma concretude feia, para assim reinar hoje, insistindo em
dominar tudo. A sutileza que alimentava o imaginário não tem mais lugar na
grotesca cena erótica atual. Com que realismo crianças dançam e cantam relações
sexuais perversas em festinhas infantis. E com que realismo, adolescentes,
quase crianças, dançam nas cadeiras relações sexuais ao vivo e em público. Uns
e outros patrocinados pela permissividade que se instalou nos quatro cantos da
nossa malha social. Pais tem medo de seus filhos, mesmo quando eles tem apenas
sete anos de idade. Temem dizer não. Saímos da época que criança não existia
como gente, para a era da tirania infantil. As crianças passaram a dar as
ordens, e, na sua imaturidade, quantas vezes se desorganizam mentalmente porque
esta tarefa está acima de suas possibilidades. A psicanálise contribuiu para
que descobríssemos a riqueza e importância da infância, mas também contribuiu
para que se vulgarizasse, erroneamente, o conceito de trauma. Exageros foram
cometidos em nome de um “psicologismo verborreico”, que tem nos levado à perda
do exercício dos limites nas relações pais-filhos, professores-alunos,
adultos-crianças, à perda do saudável “não pode”. Estabelecer limites para uma
criança é respeitá-la e amá-la, porque os limites são estruturantes para o
desenvolvimento de sua mente, capacitando-a a exercer a liberdade, de maneira
responsável. Dar limite não é castrar, assim como dar liberdade não é ser
permissivo. Também o adolescente necessita de limites para contê-lo em seus
impulsos onipotentes, próprios desta fase. Os adolescentes de hoje fazem parte
da primeira geração anti-trauma, quando todo o sistema educacional foi revolucionado, modificando papéis exercidos
dentro da família. Esta tomou cara nova, aliás, caras novas chegando a atingir
a marca de 104 formas atuais de família, segundo pesquisa recente. Filhos do divórcio, da sexualidade liberada,
da psicanálise, de uma mãe profissional, do computador, eles são usuários de
drogas em progressiva curva ascendente. Drogas usadas pelos seus pais e drogas
novas, ainda pouco conhecidas nos seus efeitos e lesões. Valores, quais?
Bandeiras, quais? Projetos, quais? Desejos, quais? São portadores de dois vírus:
o vírus da droga e o vírus do desafeto. O primeiro é uma virose social de
grandes proporções e crescimento descontrolado, o segundo uma virose familiar
também avassaladora, ambas epidemias que estão destruindo o presente e o futuro
de todos. Se estes dois vírus são hoje duas epidemias, em suas diversas formas,
a violência, doença contagiosa e degenerativa que as permeia, já é endêmica.
Dirão
alguns, e o salário mínimo, e a reforma agrária, e a reforma tributária, e a
lei de responsabilidade fiscal, e a mortalidade infantil, e a política de saúde
mental infantil, agora com as vítimas do vírus Zica, e a corrupção, e a falta
de educação no Congresso, e a falta de escola, e a fome, e a miséria? E a
miséria. Aprendemos a gritar nestes últimos anos. A denúncia ocupa lugar de
destaque na mídia, o que é muito importante para um povo que teve sua boca, arbitrariamente,
calada por um período. Denunciamos, denunciamos, e denunciamos, mas não nos
responsabilizamos. No entanto, somos todos responsáveis pelo estado social que
vivemos. Nossos governantes não tem dado conta destas coisas por razões várias
que, de tão extensas, não caberiam aqui. E, como eles não fazem nada ou quase
nada, temos a desculpa de que nada podemos fazer. Aqui reside um grande erro
onde nos escondemos. Continuamos a nos comportar como se continuássemos em exceção,
a ter um árbitro diante do qual
somos impotentes. Perpetuamos uma situação infantilizada de dependermos de um
poder maior, e nos fazemos impotentes. Mas, a mortalidade infantil tem mudado
sua marca pela ação da pastoral da criança, sem esperar pelas verbas. A miséria
tem sido combatida com a farinha nutritiva do cuidado e da dedicação de alguns
que vem se multiplicando. Portanto, podemos!
Se a
miséria social é vergonhosa e pode matar uma criança, a miséria psicológica é
perversa e mata uma sociedade. Combatemos o trabalho infantil dos pequenos
carvoeiros, mas nem sequer identificamos a exploração infantil pela mídia. As
pequenas prostitutas nos horrorizam (por alguns minutos...), mas não
identificamos o abuso sexual praticado por adultos que se divertem a olhar
meninas se contorcendo e latindo. Este é o mal maior que nos aflige. A miséria
psicológica não depende da situação financeira, nem mesmo da maior das pobrezas
sociais. A miséria psicológica nasce do descompromisso com o outro, do egoísmo,
do uso descartável do outro, da visão curta que não reflete, da desvalorização
do sentir, do vazio afetivo, da banalização das dores, da concretude que matou
a fantasia, da perversão com o outro para se dar bem. Crianças do carvão ou da
televisão, adolescentes dos bailes ou das discotecas caras, descuidados e perdidos
de seu rumo, estão unidos pela miséria de uma sociedade que não sabe proteger
seus filhos, não cuida e nem se responsabiliza por eles, que não sabe ser pai e
mãe, uma sociedade filicida.
Dói. Dói
muito.
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