Desenvolvimento
Afetivo, como nos tornamos humanos. Parte III
A difícil tarefa de traduzir afeto em
palavras deixa sempre o gostinho de é mais do que isso. Mas, talvez o colo seja a palavra mais
difícil de definir. Para muito além da configuração física, colo é acolhimento,
colo é proteção, colo é segurança, colo é acalanto, colo é limite, colo é cura,
colo é aconchego. Mas colo também é não, colo também é desespero, colo também é
violência.
Colo talvez seja a figura que mais se
aproxima do conceito afeto. O colo e a necessidade dele permanecem. É um equívoco
associar afeto com carinho, beijos e abraços. Como também é equivocado pensar
que vínculo afetivo familiar é resultado de convivência. O vínculo afetivo é uma construção que
processa vários elementos por vias sensitivas, todas, vivências, construção que
sediará o alicerce de todos os vínculos que surgirão durante a vida. A importância
da sensação de segurança prazerosa é a primazia do desenvolvimento afetivo.
O afeto tem roupas e formas variadas. Mas
são as suas qualidade e intensidade que vão se aglutinando em construção, e que
o tipificam. O afeto, em sua qualidade predominante recebida, é constitutivo de
caráter. Afetos de raiva, de inveja, de desprezo, vão aglutinar atitudes
correspondentes, que desenharão o perfil de resposta de alguém, agressivo,
invejoso, insensível. Ou seja, a criança que sofre carência de colo/afeto,
carência de cuidados básicos de qualidade, será um adulto que pouca ou nenhuma
capacidade empática terá. Para se defender da dor do abandono sentido, mesmo
que haja presença física, ela pode não ter satisfeitas suas necessidades
afetivas, e cristalizar esta defesa para se anestesiar da dor. Há um
ressecamento afetivo, que funcionará como um terreno defendido do “risco” de
afeto. Sentir afeto passa a ser arriscado, não sabe o que fazer e percebe como
se passasse a perder o controle da situação, como se o outro passasse a ter o
domínio.
Por vezes, a dureza da realidade afetiva é
difícil de ser suportada, então a mente lança mão do imaginário como saída em
momentos críticos. Não raro a criança maltratada ou que sofre abandono
intrafamiliar, busca consolo em saída imaginária. Fantasia frequente é que ela
é filha de rei e rainha, que virão resgatá-la a qualquer momento, porque assim
ela diminui a dor, aqueles não são seus pais verdadeiros e por isso não gostam
dela. Mas, mesmo usando a imaginação como defesa, ela não se perde da
realidade, mesmo que dolorosa.
O colo/afeto permanece e nos acompanha por
toda a vida. Costumamos pedir colo, a alguém da confiança afetiva, quando, na
vida adulta, nos deparamos com uma decepção amorosa, por exemplo. Não devemos
considerar isto uma atitude de regressão, é saudável deixar que a dor tenha
fluidez, possa ser sentida e, daí, elaborada para que uma nova organização
afetiva ocorra, nos proporcionando a superação do processo de luto por um amor
findo. Este movimento foi aprendido na infância quando uma queda com um
machucado, uma frustração difícil de suportar, nos levou ao colo de quem podia
nos consolar e fortalecer, nos colocando, após o tempo adequado de sustentação,
de volta para a batalha da vida. Se este processo de nutrição afetiva de
qualidade foi bem executado, podemos enfrentar as dores da vida.
No entanto, se este processo foi falho,
intermitente por algum motivo, ou foi interrompido, consequências nefastas
podem se constituir como defesas contra o sentir. E é este processo edificará
nossa memória afetiva. Não esquecemos jamais as experiências de fortes e
intensas emoções. Uma criança pode guardar uma imagem, por exemplo, a repetida
imagem do avião que levava o corpo de Tancredo Neves, recém eleito, percorrendo
algumas capitais brasileiras. Lembram? A criança tinha apenas 5 anos, não sabia
quem era Tancredo, não sabia o que era eleição, não sabia ainda muito sobre a
morte. Mas, a emoção que ela captou da mãe, do pai, o silêncio paralisante
daquele momento, fez com que aquela imagem na televisão tivesse um lugar em sua
memória afetiva. Precisamos entender que, ao longo da infância, várias partes
de ocorrências são arquivadas, às vezes em forma de imagem, às vezes, com mais
complexidade de compreensão, em forma de luminosidade, às vezes em forma de som
ou de cheiro, ou gosto. Os sentidos produzem memórias para nosso acervo, muitas
vezes de difícil encaixe, mas sempre verdadeiras porque foram as experiências
de afeto possíveis naquele ponto do desenvolvimento.
Assim como a memória guarda estas
lembranças afetivas, ou pedações delas, a cognição é muito importante para o
bom armazenamento dos afetos, e a elaboração dos efeitos danosos que marcam
nossa mente. Poder pensar um episódio afetivo é de grande valia para a saúde
mental. Não falo em supremacia de nenhum dos vetores do desenvolvimento, o
motor/neurológico, o linguístico, o cognitivo e o afetivo. Refiro-me aqui à
sintonia, ou à desconexão de aspectos da mesma vivência, que se sedimentarão
favorecendo ou desfavorecendo a saúde mental da criança.
A memória afetiva, este arquivo de nossas
vivências, as mais genuínas, é responsável pela nossa humanicidade. É o que nos
torna humanos, capazes de estabelecer relações entre os iguais e os diferentes.
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